Mudança de Planos

Capítulo XXIII • Despertar


[ CAPÍTULO XXIII • DESPERTAR ]
Robert Müller

Há dias me sentia distante, desconexo da realidade. Naquela tarde não foi diferente. Estava lavando meu carro na frente de casa e sequer percebi quando meu pai se aproximou.

Ele pigarreou de leve, me tirando dos meus pensamentos e lamentos.

— E aí, pai! – falei, tentando parecer vivo o suficiente.

— Não sabia que vinha hoje – ele comentou.

Depois do divórcio, meu pai acabou ficando com a casa e minha mãe se mudou para o apartamento no centro da cidade. Pode soar estranho para alguns o fato dela ter “saído de casa” ao invés dele, mas a verdade é que foi decisão de Grace.

Ela não queria uma casa tão grande e cheia de memórias pra lidar.

Assim, vez ou outra eu aparecia na minha antiga casa pra tomar um banho de piscina, lavar meu carro com mais calma e, claro, trocar ideia com Frankie pra colocar o papo em dia.

— Precisava lavar o Mustang – expliquei e ele assentiu.

— Como você tem passado? Sophie está melhor? – seu tom parecia um pouco incerto. Acho que ele tinha medo de perguntar algo e aquilo me deixar ainda mais fodido da cabeça.

— Os sinais estão estáveis – respondi – Mas ela ainda não acordou. Nem sinal disso.

— E sua inscrição pra Universidade? Fiquei sabendo que foi aprovado, sua mãe me contou.

Pois é. Minha carta convite para a Universidade de Washington tinha mesmo chegado, mas honestamente não estava pronto para nada daquilo. Sophie estava desacordada há dias e só isso importava naquele momento.

Não me permitiria viver meus sonhos enquanto ela não pudesse viver os dela também. Eu havia causado aquilo, e não era justo seguir em frente.

— Não sei se vou – foi o que consegui responder, com medo de olhar para meu pai e enxergar a decepção escancarada.

— Como assim “não sabe se vai”? – ele perguntou, mas não de um jeito agressivo. Parecia mais preocupado com a minha decisão.

— Sophie estar nessa situação é culpa minha. Como posso seguir com a minha vida sabendo que estraguei a dela?

Meu pai ficou pensativo por um momento, mas não deixou de me encarar. Então balançou a cabeça em negativa e andou na minha direção, colocando uma mão no meu ombro me fazendo encará-lo de volta.

— Filho, Sophie vai acordar. É questão de tempo. Você não precisa parar a sua vida por culpa ou qualquer outra coisa assim.

Foi minha vez de negar com a cabeça.

— Pai, eu não posso. Nem sei se consigo. Quando ela acordar, o que Sophie vai pensar de mim?

Meu pai parecia um pouco desacreditado com o que eu estava dizendo, e eu ainda não tinha conseguido entender onde ele pretendia chegar com aquela insatisfação. Qual é, a garota que eu amava estava em coma. Porra.

Como eu poderia seguir “normalmente”?

— Robert, se você errou, precisa se redimir. E se você deseja tê-la novamente quando ela acordar, precisa mostrar que mudou – ele explicou com muita calma, respirando fundo antes de cada frase.

Tentei acompanhar seu raciocínio, embora eu ainda me sentisse relutante com tudo aquilo. Observei a expressão do meu pai se iluminar, como se ele também estivesse tendo uma grande revelação enquanto tentava me dar aquele conselho.

— Sabe, filho, Sophie não vai te perdoar se continuar igual ou pior. Ela sequer vai acreditar em qualquer coisa que você diga, porque vai ver a verdade na frente dela: você, desistindo de tudo. Inclusive dela.

E então ele tirou a mão do meu ombro e me deu um abraço acolhedor. Abracei de volta, recebendo aquela pancada com lágrimas nos olhos.

Frankie tinha razão. Puta merda, como meu pai tinha razão!

Eu não podia ficar parado, esperando a vida passar. Por Sophie, eu já tinha mudado muito em mim desde que começamos a conviver, e eu não podia – e nem queria – jogar no lixo todo o progresso que havia feito.

Não podia deixar de tentar ser alguém ainda melhor.

Pra mim. Pra ela. Para a relação que eu esperava ter com ela.

Sim, eu cometi erros. Muitos. Contudo, meu arrependimento era real – assim como a dor de pensar em perder quem eu amava de verdade. E quando ela acordasse, não queria que Dallas soubesse que eu havia desistido de tudo por medo e culpa.

Não queria que ela pensasse que o que vivemos tinha sido em vão.

— Acho que você tem razão – assumi depois de um tempo e respirei fundo.

Eu não me permitiria desistir de mim, porque não podia desistir dela.

...

Já fazia mais de duas semanas desde o acidente, e o que tinha se tornado assunto principal, logo esfriou e não era mais uma preocupação para a grande maioria dos alunos do Instituto Dimsdalle – em especial porque as cartas de Universidades tinham começado a chegar e em breve teríamos o baile de formatura.

Eu, no entanto, não me esqueci do acidente. Nem de Sophie.

E por ela tinha feito minha inscrição para a Universidade de Washington e abandonado de vez o pessoal do colégio – com exceção de Joshua, que acabou se provando um cara decente, e uma das pouquíssimas pessoas com quem manteria contato após o último ano.

Acho que o acidente mudou a ele assim como fez comigo, e por isso a gente se aproximou ainda mais. Josh costumava inclusive visitar a Dallas no hospital, e todas as vezes implorava para que ela acordasse logo.

— Vamos lá, Nerd. Levanta! Não aguento mais ter que ouvir sozinho esse Müller pé no saco! – era o que costumava repetir inúmeras vezes, até eu ter vontade de socá-lo e ele nos deixar a sós.

E assim, ficávamos apenas nós dois. Sophie em completo silêncio, e eu tagarelando, chorando ou lamentando por ela estar passando por aquilo tudo. Às vezes, uma coisa ou outra; em outros dias, tudo de uma vez.

Sinceramente, só queria que ela visse em mim a mudança que meu pai havia mencionado. Estava obstinado a me tornar um filho melhor, um estudante mais comprometido, um homem de verdade.

Porque quando ela acordasse, eu só teria uma chance de provar a minha verdade.

Não podia errar com Sophie de novo. Não me permitiria fazer essa burrada mais uma vez.

— Cabeça nas nuvens, Müller – estava sentado na arquibancada de frente para a pista de corrida da escola quando Joshua chegou para me fazer companhia.

Respirei fundo, tirando as mãos do queixo e jogando os braços para trás, apoiando a coluna. Em silêncio, ele se acomodou ao meu lado, colocando a mochila no chão para ficar mais confortável.

— Fico pensando nela o tempo todo – admiti para Josh, antes mesmo que ele me perguntasse qualquer coisa sobre a Dallas. Ele sempre perguntava.

— Imagino que sim – ele respondeu frustrado – Queria poder ajudar mais.

— Eu sei, mas o negócio é ter paciência. Tive que aprender isso na marra – falei e ele assentiu. Nunca fui o cara mais paciente do mundo, mas ela tinha surgido na minha vida para me dar uma lição daquelas quanto a isso.

E ali estava eu, tentando meu melhor.

Ei, Müller— ouvimos outra voz soar nas nossas costas e viramos para ver do que se tratava. Era Fred, parecendo muito desesperado e surpreso.

— O que foi, Anderson? – perguntei.

- Cara, eu acho melhor você ir ver o que o Dylan está fazendo com o seu carro – ele falou sem rodeios e me levantei depressa.

Era impressionante como aquele merda do Dylan não conseguia me deixar em paz.

Onde ele tá? — foi o que consegui perguntar, saltando a arquibancada e indo atrás dele. Joshua veio junto. Caminhamos até o estacionamento do colégio e tinha muita gente ali.

Assim que perceberam que tínhamos chegado, os outros alunos se afastaram, abrindo espaço para que eu pudesse ver meu lindíssimo Mustang coberto de uma tinta fedorenta e de cor duvidosa, que eu sinceramente não sabia se iria conseguir limpar apenas com água e sabão.

Caralho. Eu odiava aquele cara.

Como pude ser tão cego ao ponto de ter me tornado amigo de alguém assim?

Samantha e as outras meninas com quem ela andava riam, mas sem fazer muito alarde. A ruiva parecia extremamente satisfeita em ver o sofrimento estampado na minha cara. Dylan tinha se vingado, e pelo visto vingado ela também – seja lá por qual motivo fosse.

Nenhum deles era compreensível ou digno de nada daquilo.

Mais uma vez precisei respirar fundo. Mais uma vez minha paciência estava sendo posta à prova. Sorte a deles que eu estava obstinado a deixar Sophie orgulhosa.

— Que circo é esse? – foi o que perguntei, controlando minha respiração e focando no fato de que, honestamente, nada daquilo ali realmente valia a pena.

Afinal, no fim das contas era um carro.

Embora fosse meu xodó, estava tão cansado e triste por outras coisas; tão preocupado em ter Sophie de volta, que Dylan poderia pintá-lo com todas as cores do arco-íris que não seria um problema real.

— Seu prazo acabou. Você perdeu a aposta – foi o que ele respondeu, frio e ameaçador, ignorando completamente o fato da garota envolvida nesse maldito desafio estar desacordada.

Acho que por isso é que, dessa vez, e diferente das outras, ao invés de sentir algum tipo de medo e receio, fiquei com pena por ele ser tão pequeno. Pensei um pouco e analisei a situação. Meu carro parecia intacto, exceto por aquele líquido mostarda, que escorria lentamente por toda a lataria.

Tinha mesmo perdido a aposta. Não tinha ficado com a Dallas pra valer, e agradeço por isso. Ela não merecia perder a virgindade com um cafajeste mentiroso como eu costumava ser antes de tudo.

Eu precisaria provar meu valor para merecê-la por completo, e já tinha aceitado no meu coração caso ela decidisse nunca mais olhar na minha cara.

Tudo bem, então— falei manso e dei as costas, depois de chegar à conclusão de que não adiantaria lutar contra aquilo. Eu tinha sido desafiado e perdido. Não havia mais o que questionar ou discutir.

Houve um burburinho entre os alunos.

Estavam incrédulos com a minha reação, e eu não vou negar: entendia a surpresa deles. O Robert de quase dois meses atrás teria socado o culpado sem antes perguntar. Teria dado um jeito de se vingar mesmo errado, mesmo tendo perdido o tal desafio.

Eu era mesmo um sem noção Classe A.

— Vai simplesmente aceitar, Müller? - Dylan esbravejou indignado. Continuei andando – Você virou uma mocinha!— ele gritou mais uma vez e, em seguida, ouvi o barulho de algo se partindo. Caralho. Quando Dylan tinha se tornado tão insuportável?

Virei para ver o que tinha sido aquele barulho e me deparei com um dos meus retrovisores pendurados, balançando por conta da recém pancada. Só podia ser uma sacanagem daquelas. O que ele estava tentando fazer? Queria apanhar? Queria que eu desfigurasse a cara dele com um soco bem dado?

Ele só quer te ver sendo igual a ele— escutei aquela voz e senti meu corpo inteiro se arrepiar. Como jogar água no fogo, o ódio que Dylan estava tentando reacender dentro de mim se apagou completamente.

Ouvir Sophie falando na minha cabeça bastou para esquecer tudo ao meu redor, ainda que aquilo significasse a minha loucura se concretizando pra sempre.

Mas então olhei em volta e percebi que todos ao meu redor encaravam algo logo atrás de mim, como se tivessem acabado de ver um fantasma.

E então eu me virei e a vi, parada, usando o vestido cor-de-rosa que havia comprado, um tênis cano médio e cabelo solto. E ela me olhava daquele jeito que fazia meu estômago rodopiar. Eu queria correr, abraçar e beijar a minha garota. Queria dar tudo que não consegui, ser tudo que ela sempre precisou.

Mas eu congelei.

Será que ela ainda queria ser a minha garota?

— Você está aqui mesmo? - foi o que consegui perguntar - Estou ficando louco.

Ela deu um sorriso leve, balançou a cabeça olhando para os próprios pés e depois me encarou.

— Seu bobo - Sophie disse bem-humorada - Claro que estou aqui. Alguém tinha que te defender, não é mesmo?!

Nem percebi quando comecei a chorar e andar na sua direção, e já não estava mais em mim o antigo Müller quando me ajoelhei e abracei sua cintura aos prantos.

Depois daquelas últimas semanas de muito medo e apreensão, aquela era a visão mais perfeita que eu podia ter em toda a minha vida: Sophie de pé, saudável e, aparentemente, disposta a me perdoar por todas as merdas.

Será que ela se lembrava de tudo que eu tinha feito para estar sorrindo pra mim daquele jeito?

Que ridículo— Dylan falou desacreditado e indignado, enquanto eu ainda estava aos pés da minha garota. Respirei fundo, secando o rosto e tornei a me levantar.

Cochichei para Sophie, revelando um dos meus maiores desejos naquele momento e ela assentiu, depois de ponderar um pouco. Achei que não fosse concordar, mas pelo visto não estava interessada em continuar sendo tão boazinha assim com gente como Dylan.

E com a permissão da minha mulher, talvez eu pudesse continuar sendo, vez ou outra, um sem noção Classe A.

Então, me recompondo, e ainda sendo observado por dezenas de alunos desocupados, caminhei na direção dele e, sem falar uma palavra sequer, dei um soco muito bem dado na sua cara magrela. Percebi que ele não estava esperando por aquela reação, já que caiu no chão como fruta podre e ficou me encarando embasbacado.

Segurei a gola da sua camisa, colocando Dylan de pé, e usando todo o meu estoque de força, arrastei ele até o carro e esfreguei sua cara na tinta fedorenta que havia jogado ali.

— Você não aguenta um soco, seu idiota— ergui aquele merda mais uma vez, e nessa hora ele começou a tentar reagir para me bater. Não aguentei e meti mais um soco. Seu corpo amoleceu com a dor e o gemido oprimido me deu uma satisfação sem igual.

Ri daquela cena patética.

Onde está o valentão agora?— olhei ao redor, e todos nos encaravam com espanto. Samantha observava atenta, e aparentemente revoltada com tudo aquilo – Não quero saber de gente me enchendo o saco, e muito menos da Dallas. Estamos entendidos?

Acho que acabei com o show de Dylan. Depois daquela situação constrangedora, o pessoal que ali estava logo se dispersou – afinal, ninguém queria ser testemunha daquela confusão.

Já ele ficou deitado no chão por um bom tempo, mas acredito que tenha sido mais pela vergonha de ter que se levantar e lidar com o mundo real do que pela dor em si.

Não ia perder mais tempo ali, então me despedi de Josh e fui embora. Com ela. Sophie e eu juntos, depois de tanto tempo. Mal podia acreditar. Os últimos dias duraram anos, e estar ao lado dela depois de tanta coisa parecia mesmo um milagre.

— Quando você acordou? – foi a primeira coisa que perguntei a ela, assim que dei partida no Mustang, que precisava de um dia no Spa – Te devo desculpas e muitas explicações, mas preciso entender. Te visitei pela manhã, e agora você está aqui!

Ela pareceu pensar um pouco e logo vi um sorrisinho brotar na sua boca.

— Estou acordada desde ontem – Sophie admitiu e então meus neurônios começaram a trabalhar. Ela tinha ouvido minhas lamentações, tinha ouvido minhas confissões.

Liguei os pontos.

— Você ouviu tudo que te disse? – perguntei sem acreditar.

— Ouvi sim, e depois de saber do tempo que passou no Hospital comigo, dos presentes, do cuidado – ela colocou uma de suas mãos na minha perna e, olhando pra mim, finalizou – quero te dar mais uma chance.

Senti um arrepio correr por todo o meu corpo.

— Nunca vai ser suficiente, preciso ser melhor pra você – falei sincero, e ela balançou a cabeça concordando.

— Você vai, porque eu já aceitei seu pedido.

Parei por um momento, pensando se tinha entendido certo, e meu coração disparou de felicidade quando a olhei e vi que ela estava falando exatamente do que eu estava pensando.

Voltando minha atenção ao trânsito, dei seta e estacionei na primeira oportunidade. Eu não conseguiria dirigir com aquilo acontecendo, afinal de contas, Sophie tinha aceitado meu pedido.

Tinha aceitado ser minha namorada. Tinha me aceitado de volta.