Mudança de Planos

Capítulo XXIV • Recomeçar


[CAPÍTULO XXI • RECOMEÇAR]
Sophie Dallas

Senti meu corpo despertando aos poucos. Quando minha cama tinha se tornado tão firme? E por que meu quarto estava tão frio e claro? Meus olhos se abriram por completo, e ainda que eu estivesse um pouco confusa, percebi que aquele lugar não era minha casa.

Onde eu estava, afinal?

Senti tubos finos presos ao meu corpo, enquanto uma manta com cheiro de hospital tentava me aquecer. Cheiro de hospital? Olhei para o meu lado e percebi diversas máquinas e aparelhos medindo minha saúde constantemente. O bipe começou a soar sem parar e acho que a culpa era minha. Estava nervosa, ansiosa.

Que lugar era aquele? E por que eu estava ali?

Minha resposta não demorou a vir. Logo que as máquinas ao meu lado começaram a apitar muito alto e inconscientemente comecei a me debater para me soltar, uma moça de trajes claros entrou.

— Sophie, eu sou a Dra. Brown. Preciso que fique tranquila – ela falou com uma voz mansa e séria ao mesmo tempo.

Onde estou?— perguntei aflita.

— Você está no hospital da cidade, sofreu um acidente de trânsito. Estamos cuidando de você – ela tentou explicar de um jeito resumido, a fim de me situar e me deixar mais calma.

— Onde está minha mãe?

— Ela já deve estar chegando, foi apenas tomar um café. Não tem motivo para se preocupar, ok? – ela me garantiu, enquanto conferia meus batimentos, pressão e meus sentidos.

Ela me fez diversas perguntas e em uns 5 minutos minha mãe chegou ao quarto, acompanhada por um enfermeiro baixinho. Janice correu em minha direção e beijou o topo da minha cabeça diversas vezes.

Que mundo paralelo era aquele onde minha mãe ainda gostava de mim e sabia demonstrar algum tipo de afeto?

— O que está acontecendo, mãe? – perguntei confusa. Como eu tinha ido parar ali? Que tipo de acidente eu havia me envolvido para estar cercada por tantos aparelhos?

— Minha filha – mamãe deu um passo pra trás e respirou fundo – Você sofreu um acidente de trânsito e esteve desacordada pelas últimas 3 semanas.

Ah, ali estava minha mãe. Sem rodeios. Sempre racional e direta ao ponto.

O que quer dizer que aquela situação era mesmo real, não uma alucinação.

— Fiquei tão preocupada. Mas agora você está aqui! – ela se aproximou novamente – Obrigada por ter voltado. E me desculpe por tudo.

Seus olhos se encheram de lágrimas, e foi naquele momento que senti minha cabeça se acender de lembranças. As memórias vinham à tona com toda força. Eu me lembrava do momento do acidente, me lembrava de ter fugido da casa de Rob.

Meu Deus, como eu tinha sido tão burra por acreditar nele?

Tudo não passara de uma grande mentira.

Pensei na briga que havia tido com minha mãe no dia anterior e ela estava certa. Tão certa, e eu tão arrependida. Senti o amargor em minha boca e uma pontada no coração. Eu tinha me tornado uma ingrata do pior tipo: a que tem tudo e não se contenta com nada.

— Desculpe ter fugido. Desculpe, mãe – foi o que consegui dizer diante daquela situação. Janice pareceu alarmada com meu pedido de desculpas tão repentino. Ela não estava esperando.

Realmente não estava.

— Querida, eu errei— ela segurou em minhas mãos, olhando no fundo dos meus olhos – Não quis te ouvir. Não soube ser presente como você precisava.

Era verdade. Por mais que, naquele momento, eu me sentisse culpada, o que ela dizia também era verdade. Talvez nós duas tivéssemos errado feio uma com a outra. Dava pra ser muito melhor.

...

Passei o resto do dia recebendo visitas dos enfermeiros do Hospital. Eles vinham conferir meus batimentos, minha pressão. Checar como eu estava, se estava comendo, se sentia algum tipo de náusea ou mal-estar. Se tudo estivesse estável, no dia seguinte estaria liberada. Eu iria, enfim, pra casa.

Três semanas tinham se passado. Era tempo suficiente para que ninguém mais se lembrasse de mim, inclusive ele. Desde que acordara, nem sombra de Robert Müller. Era mesmo um grande, um enorme, babaca.

Como pude ser tão burra de ter caído na lábia daquele imbecil?

— Talvez eu seja igualmente idiota – murmurei pra mim mesma, indignada. Por ele, tinha me acidentado tantas vezes, que sinceramente já devia ter entendido os sinais que o Universo estava tentando me dar.

Passava da hora de dar um basta.

O dia anterior tinha sido agitado, mas aquela manhã estava custando a passar.

Não tinha muito o que fazer além de mexer no meu celular, assistir a algum programa de TV aleatório ou ler o livro que minha mãe havia trazido. E eu já tinha feito de tudo. Pensei então em dar uma volta, mas quando estava prestes a tomar coragem para saltar da cama e sair na ilegalidade, ouvi um barulho no corredor e me contive.

Eram vozes masculinas – um tanto sérias, devo dizer.

Fechei meus olhos, imaginando que fosse algum enfermeiro vindo conferir meus sinais pela milésima vez. Não queria ter que socializar, então preferi fingir um sono profundo e relaxante.

Engoli em seco várias vezes até a porta se abrir.

Me mantive focada em parecer um corpo adormecido, até que senti aquele perfume atravessar o quarto e me acertar em cheio. O visitante se sentou bem próximo da minha cama, sua mão tocou a minha suavemente.

Era ele.

Enquanto eu resistia a vontade de arrancar minha mão de baixo da sua, ele respirou fundo sucessivas vezes. Devia estar me olhando e sentindo remorso. Era o que eu esperava que ele sentisse, sendo muito sincera.

Mas, no fundo, não contava muito com isso. Narcisista, era isso o que ele era.

— Sou eu de novo – ele falou pela primeira vez, com a voz baixa e embargada. Fui surpreendida por um arrepio que percorreu todo o meu corpo. Para minha sorte, acho que ele nem percebeu. Estava deprimido. O tom de voz era de alguém triste pra caramba – Quando vai acordar?

Silêncio completo.

— Desculpa de novo por não ter sido sincero quando deveria – ele continuou, dessa vez apertando minha mão. Meu coração acelerou. Felizmente eu já não estava mais conectada aos aparelhos. Sério que ele não tinha percebido isso? – Desculpe não ter conseguido contar. Não queria perder você.

Estava difícil continuar fingindo um sono profundo, quando na verdade queria colocar o dedo na cara dele e tirar toda aquela história a limpo. Ele tinha me usado num desafio ridículo e agora estava ali dando uma de bom moço?

Robert Müller era um traste.

Não posso perder você — sua voz ficou trêmula de repente, e quando achei que a situação não poderia piorar, ele abaixou a cabeça e senti seu rosto úmido. Abri os olhos rapidamente e o vi. Continuava lindo, mas parecia desolado.

Rob chorou por um bom tempo, com a testa encostada no meu braço, enquanto segurava minha mão.

Apesar de tudo, fiquei com pena.

Droga, Sophie. Por que você é tão facilmente manipulável por esse babaca?

— As coisas começaram de um jeito errado, mas eu amo você— ele falou se recompondo. Soltou minha mão com cuidado e, pelo som, deduzi que estivesse de pé logo ao meu lado. Senti seus dedos quentes tocando minhas bochechas, e depois ele ajeitou uma mecha solta – Não sou mais o mesmo depois de você. Volta pra mim.

Mais alguns longos minutos de silêncio.

— Se eu for melhor, você vai querer continuar comigo? – ele perguntou baixinho – Vou entender se não quiser.

Aparentemente ele já estava de saída. Percebi isso quando segurou novamente minha mão e encostou na sua bochecha. Ele estava tão quentinho, tão cheiroso. Será que tinha alguma verdade em tudo aquilo que havia acontecido ali?

Rob tinha aprontado tanto. Tinha medo de perdoá-lo, de confiar e, no fim, ser tudo em vão. Não queria me decepcionar mais uma vez. Porém seu choro tinha sido genuíno, e o que eu estava sentindo me parecia ser real.

Um bom pressentimento em meio àquele turbilhão de pensamentos confusos.

Como podia confiar na minha própria sanidade diante de toda aquela novela?

— Quer ser minha namorada? Prometo fazer direito dessa vez – ele falou, me pegando de desprevenida.

O beijo na testa foi a última coisa que recebi dele antes de ir embora.

...

Meu coração estava acelerado e as mãos trêmulas. Seu cheiro tinha ficado por toda parte, e apesar de tanta raiva, tanta decepção, aquele era meu mais novo cheiro favorito.

Não podia negar o óbvio: eu ainda tinha sentimentos pelo Müller.

Sua visita só serviu para ter ainda mais certeza disso. Depois de tudo o que ele disse, dos toques, carinho, desabafos. Como eu podia saber se aquilo não passava de um teatro?

Quem poderia me dizer?

Chegamos do hospital por volta das onze da manhã. Enquanto minha mãe colocava as mantas e roupas pra lavar, fui ao meu quarto tomar um banho e me trocar para, enfim, matar a saudade de casa.

Eu e minha mãe estávamos bem de novo. Na verdade, melhor do que antes do acidente. É verdade isso o que dizem de que a gente só valoriza quando perde. Minha mãe e eu estávamos vivendo na pele – ela mais, talvez, depois de tantas ausências.

De todo modo, o sofrimento de pensar numa possível perda nos mostrou a importância de prestar mais atenção uma na outra, valorizar cada momento juntas, respeitar as opiniões diferentes e, claro, de pedir perdão no tempo certo.

Depois de tanto tempo usando somente roupas de hospital, decidi que era hora de colocar um vestido mais arrumadinho. Assim que me vi pronta, fui ao encontro da minha mãe, que estava no quarto, terminando seu banho.

Sentei na cama de casal espaçosa, coisa que há muito tempo não fazia, mesmo antes do acidente –, e distraída, fiquei reparando em como aquela minha perninha tinha sofrido naquelas últimas semanas. Finalmente tinha me livrado da tala, e agora era a hora de encarar algumas sessões de fisioterapia.

Boa sorte pra mim.

— Ah! Oi, filha – Janice falou, terminando de secar o cabelo com a toalha, e surpresa por me ver ali tão à vontade – Nada como estar em casa de novo, não é mesmo?

— Estava com saudades – admiti, passando a mão pela colcha bordada – É estranho pensar que fiquei tanto tempo desligada.

— Você não estava desligada – mamãe falou pensativa e depois deu uma risadinha – Só tirou umas semaninhas de férias. Por que não me avisou que precisava tanto descansar? Eu não teria ficado tão preocupada.

Era um pouco estranho estar naquela situação. Minha mãe, a mulher mais politicamente correta que eu já conhecera, tentando fazer uma graça para me animar depois de tudo que havíamos passado.

Ri em resposta.

— Brincadeiras a parte, sinto muito pelo acidente. Sinto muito por tudo que aconteceu antes do acidente também – ela se sentou ao meu lado, segurando minhas mãos – Me senti muito culpada. Descontei muitas frustrações minhas em você. E criei muitas expectativas ridículas.

Um silêncio reinou entre nós antes que eu conseguisse falar alguma coisa.

— Não foi culpa sua, acidentes acontecem – tentei confortá-la e tranquilizá-la. Afinal, de fato tudo aquilo nada tinha a ver com mamãe.

Meu acidente tinha sido causado por outras circunstâncias – e uma dose extra de azar.

— Seu pai jamais me perdoaria – ela finalizou, com os olhos marejados.

— Isso não é verdade, mamãe – falei envolvendo-a num raríssimo abraço apertado – Eu fui ingênua no trânsito, não estava prestando atenção. A culpa foi minha, dei azar.

Ela fez que não com a cabeça e continuou chorando.

— Me perdoa. Vou cuidar melhor de você.

Aflita com a ideia de ver minha mãe chorando e se culpando sem parar, tentei procurar outro assunto que pudéssemos falar para que ela se esquecesse do meu acidente. Afinal, agora eu estava bem, estava em casa e tinha uma vida para viver.

— O que são aquelas coisas ali no canto? – percebi um aglomerado de ursos e caixas no outro lado da cama e fiquei intrigada. Minha mãe tinha arrumado um namorado nesse meu tempo fora?

Acho que não. Isso seria irreal demais.

Será que ela tinha comprado pra mim? Queria me fazer uma surpresa?

Isso também me pareceu um pouco improvável.

— Ah, são presentes – ela falou tentando se recuperar das lágrimas – Do Robert. Vocês estão namorando, não é?

Meu coração errou a passada.

— Robert?

— Você se lembra dele, né?! – minha mãe arregalou os olhos, já suspeitando que eu estivesse sofrendo com algum tipo de amnésia.

Continuei reparando nos presentes, e tinha de tudo um pouco: ursinhos de pelúcia, corações de pelúcia, caixas com perfumes e hidratantes, alguns kits de utensílios de cozinha super fofos. Até mesmo um vestido cor-de-rosa ele tinha comprado pra mim.

Aquele menino era maluco. Definitivamente louco.

— Claro que sim – respondi fechando os olhos e respirando fundo – Só não acreditei que ele pudesse ter mandado alguma coisa.

— Sério? Mas achei ele tão dedicado. Robert esteve com você durante todo esse tempo – minha mãe contou, bastante impressionada – Muitas visitas, passou algumas noites também. Sempre preocupado em ajudar.

Minha mãe continuou falando das peripécias de Robert como se ele e eu fôssemos mesmo um casal. Não quis destruir a fantasia dela logo de cara, então não me opus. E pra falar a verdade, acabei ficando mesmo curiosa para saber de tudo que tinha acontecido na minha ausência.

E depois de saber o tanto que Rob tinha se comprometido desde que resolvi tirar um tempinho off, comecei a pensar que talvez ele estivesse sendo sincero no hospital. Tudo tinha mesmo mudado, e ele queria ter me contado.

E no fim, por mais que eu tentasse odiá-lo com todas as forças, eu me vi ainda mais insana, tentada a dar mais uma chance para enfim poder amá-lo de volta. Mas dessa vez, sem amizades duvidosas, estratégias e planos esquisitos.

Sem apostas, desafios. Sem mentiras.

E sem empecilhos para ser feliz.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.