“Alice! Recebe essa estória

E com mãos gentis deposita

Lá longe, onde os sonhos da infância

Se confundem com lembranças idas,

Tal guirlanda de flores murchas

Em distante terra colhidas”

Já estavam me esperando lá em baixo quando desci.

Eram dois homens. Dois homens altos como o teto de minha casa, com ombros largos como a largura de minhas paredes e sérios como a moça no quadro pendurado em cima de minha lareira.

Os dois homens usavam ternos pretos alinhados, que pareciam ser tão caros quanto os que vovô tinha até sua morte no inverno passado; mas usavam sapatos tão baratos que pareciam ser tão ruins como aqueles que meu mordomo nunca teve coragem de jogar fora.

Os seus rostos eram duros feito pedra, não deixando transparecer nenhum sentimento por trás dos olhos e nenhuma indicação de sorriso pelos lábios. O que fazia daquela situação muito engraçada, já que um deles segurava com cuidado uma xícara minúscula de porcelana coberta por flores rosas.Uma xícara com chá que minha avó provavelmente ofereceu quando os homens bateram na porta de sua casa e disseram que precisavam falar com sua neta.

Ao ouvir isso, minha avó provavelmente sorriu um sorriso meigo de velhinha, que fazia qualquer desconhecido a considerar inofensiva, acomodou os homens no sofá e no caminho até a cozinha para trazer o chá, conferiu se a porta da nossa biblioteca estava bem trancada. Estava. Como sempre.

Serviu aos homens o chá e subiu as escadas em espiral até o meu quarto, batendo duas vezes na porta e sussurrando:

“Dois homens estão lá em baixo querendo falar com você”

Eu sabia que eles viriam eventualmente, vovó.

“Desça”

Em um instante estarei lá em baixo.

“Converse com eles”

Conversarei. Não quero, mas o farei. Sei do que eles querem falar.

“ E faça-os ir embora rápido, Alice”.

Farei, vovó.

– Boa tarde, senhores. Em que posso ajuda-los?

Sentei em frente aos homens. Cruzei as pernas. Um deles balançou a cabeça, me cumprimentando. O outro ficou olhando para as minhas pernas nada discretamente. Idiota.

– Nós gostaríamos de conversar com a senhorita sobre um assunto delicado – o primeiro me informou. Não o idiota, mas o educado.

– E qual seria esse assunto? – perguntei.

Eu sei o que eles querem. Eu sei, eu sei, eu sei, eu sei. Mas não quero falar sobre isso. Não quero, não quero, não quero, não quero.

Porque ela teve que me colocar numa situação como essa?

– Nós gostaríamos de falar com a senhora sobre a morte de Felicity Cooper .

“Eu sei”

Mas não falei isso em voz alta. Não. Ao invés, sorri um sorriso falso.

Eu só queria não ter que falar sobre isso. Eu queria poder colocar tudo que se relaciona a Felicity dentro de uma caixa e jogá-la no fundo do oceano, para que a correnteza levasse todos os souvenirs, todas as lembranças e todas as palavras embora. Tudo relacionado a ela.

Mas eu não podia fazer isso.

Então sorri um sorriso falso.

– Compreendo – Respirei fundo, tentando reunir uma coragem que eu sabia que não tinha. Reunir cada traço, cada vestígio, cada sinônimo de coragem que eu tinha acumulado ao longo da minha vida e guardado naquele pote escrito “só para emergências”.

Depois de alguns segundos, eu tinha conseguido reunir só uma vontade enorme de chorar. Então simplesmente perguntei:

–Sobre o que gostariam de falar especificamente?

Um deles nem hesitou antes de perguntar com uma voz áspera:

— A morte da senhorita Cooper ainda é um mistério para nós. E como a senhorita era melhor amiga da vítima, gostaríamos que nos ajudasse a solucionar esse mistério.

Levantei minha sobrancelha.

“Vítima? Suicídio continua a tornando vítima?”

“Até na morte Felicity consegue ser a inocente da história”

— Não sei como poderia ajudar os senhores. Felicity cometeu suicídio, é o que eu sei.

Os homens se entreolham antes de continuarem:

– Mas por que? – me perguntaram– Pois bem, a senhorita Cooper tinha uma vida aparentemente muito boa. Seus pais eram ricos, ela nunca teve nenhum problema de saúde, nenhum problema social...

“Vocês a conheciam, por acaso?”

É o que tive vontade de dizer. Mas continuei em silêncio.Ouvindo aquelas palavras e fatos sobre Felicity que eles jorravam em mim tentando conectá-los com a Felicity que de fato eu conheci.

— Foi o que ouvimos, pelo menos – um deles falou, como se lesse minha mente, sorrindo em solidariedade. O primeiro,é claro. Não o idiota.

Mas eu não precisava de solidariedade.

Não precisava conversar sobre Felicity, muito menos sobre sua morte.

Apenas precisava de tempo para me consertar. Um tempo que ninguém parecia querer me dar. Esses homens, minha avó, o Padre e até mesmo Felicity.

“Mesmo morta ela continua a me agonizar”

Mas não falei isso, é claro.

Simplesmente balancei a cabeça como se estivesse pensando em algo, como se quisesse solucionar o mistério tanto quanto eles. Mas eu não queria. Então disse a verdade, mesmo omitindo a maior parte dela:

— Felicity tinha uma vida muito boa. Mas ela... sentia tudo. Sentia cada emoção como se fosse a mais importante, vivia cada dia como se fosse o último. E quando eram emoções boas e dias bons, isso a fazia bem, mas quando não eram...não faziam.

— O que a senhora quer dizer com isso? – me perguntaram, novamente sem hesitar. Sem me dar tempo para pensar no que eu deveria realmente falar.

Balancei a cabeça novamente.

– O que quero dizer é que acho que não posso ajuda-los. Sinto muito.

Eles se entreolharam de novo. Fiquei irritada. Nunca gostei quando as pessoas faziam isso. Sentia-me excluída, desatualizada. O que, naquele momento, eu realmente era. Aqueles homens sabiam mais do que falavam.

Um deles enfiou a mão dentro do paletó e me estendeu um pedaço de papel cuidadosamente dobrado.

– Esse bilhete foi encontrado no quarto da senhorita Cooper.

Alice,

Sinto muito.

Sinto muito mesmo.

Senti algo se remexer dentro do meu estômago. Algo estranho, forte, invasivo e preocupante. Algo que fez os pelos da minha nuca se arrepiarem.

“Felicity, que diabos você fez?”

– E daí? – perguntei.

Um deles contorceu a boca e levantou a sobrancelha direita, parecendo se irritar comigo.

– Pelo que a senhorita Cooper está se desculpando?

Amassei o papel com força e o joguei em cima da mesa. Aquilo dentro do meu estômago se transformou em algo diferente. Algo mais brutal, mais grotesco, mais manipulador. Raiva.Eu estava com raiva. Muita raiva.

Odiava aquilo. Odiava que até morta ela tinha influência sobre mim.

“Odeio.Odeio.Odeio.Odeio.”

Então, explodo:

– Eu não sei, está bem? Felicity não era a pessoa mais santa nesse mundo. Ela pisava muito na bola. Talvez estivesse se desculpando por ter mordido minha maçã sem pedir mês passado, por ter copiado todas as minhas lições de casa nos últimos dez anos, por ter roubado meu namorado no nono ano ou talvez por ter se matado. Eu não sei.

Eu já gritava, jorrava palavra atrás de palavra na frente daqueles homens que não demonstravam reações em frente a minha falta de controle emocional.Simplesmente ouviam cada palavra minha como se pudessem tirar algum significado do fundo delas.

Eles se achavam policiais ou psicólogos?

Talvez um pouco dos dois.

Pois eu gritava e gritava,mas, na minha mente, em algum canto obscuro, fundo e coberto por lembranças antigas, a mesma pergunta começava a rodopiar o ar:

“Pelo que Felicity estava se desculpando? Felicity nunca se desculpava comigo.”

Ficamos alguns segundos em silêncio depois que eu terminei minha gritaria. Quase um minuto. Eles não sabiam o que me perguntar e, se perguntassem, não saberia o que responder.

Eu comecei a me perguntar onde diabos minha vó estava que, nem durante meu surto de gritaria, foi checar se algo estava errado.

– A senhora não parece estar de luto – um deles observou.

–Não me conhece o suficiente para saber como realmente estou, senhor – respondi.

– O luto vem sempre nos mesmos cinco estágios – o idiota me contestou.

– Mas nem sempre do mesmo jeito.

O que é verdade. Por mais reais que os cinco estágios de luto possam ser, o luto ainda vem em formas diferentes.

Negação.

Raiva.

Barganha.

Depressão.

Aceitação.

Felicity estava morta há 72 horas e eu não sabia em que estágio eu estava.

Talvez eu ainda nem tivesse me dado conta de que ela estava morta.E que seu enterro seria em 5 horas. E que eu teria que fazer um discurso e a folha de papel em cima da minha cama ainda estava vazia.Nenhuma palavra. Mas também nenhuma lágrima nas últimas 72 horas . E eu não entendia como.

– Nós realmente gostaríamos de saber se a senhora sabe porque a senhorita Cooper se matou.

Eu também gostaria de saber.

Não sei.

Não acho que saiba.

– Como ela se matou? – perguntei.

– Desculpe? – um deles me perguntou, confuso. Não o culpei por isso.

– Como ela se matou? – repeti a pergunta – Me contaram que ela morreu, mas ninguém se preocupou em dizer como.

Eles demoram alguns segundos para me responder.

– Veneno – me respondem.

– Indolor? – perguntei.

– Indolor – confirmam.

Indolor.

Isso é tão a cara da Felicity.

(...)

Eu tive que pedir licença para usar ao banheiro.

Não que eu precisasse usar o banheiro. Eu não precisava. Mas sempre pensei melhor durante o banho, e como não poderia tomar banho naquele momento, ficar no banheiro era o mais próximo possível que eu tinha disso. E eu precisava pensar.

Felicity e eu nos tornamos amigas aos 5 anos de idade. Foi quando minha avó decidiu que eu já era madura o suficiente para ir a igreja com o devido respeito que a casa do Senhor merece. Palavras dela própria. Lá, eu conheci Felicity.

Ela ia à igreja praticamente todos os dias, já que sua irmã mais velha participava do coro e tinha ensaios diários e não havia outro lugar em que ela pudesse ficar.

Após aquele primeiro dia na igreja, onze anos depois, eu ainda ia todo dia à igreja as 16hrs. Não que eu gostasse - me considero agnóstica. Mas eu ficava lá vendo Felicity treinando o coro, ocupando o lugar de Caroline depois que a mesma partiu para a faculdade, e depois nós duas tomávamos um milk-shake perto do centro.

Por 11 anos. 4015 dias.

Por 11 anos, fui à igreja todos os dias.

Há três dias Felicity está morta e nos três últimos dias, não pisei no chão da igreja. Não parece certo ir até lá sem ela.

Joguei um pouco de água no meu rosto. Dei alguns tapas em minhas bochechas, tentando recuperar minha cor. Respirei fundo, tentando me recompor para ir lá fora e continuar conversando com os homens sobre a morte da menina que foi minha melhor amiga por 4015 dias.

Abri a porta, atravessei o pequeno corredor. Sorri um sorrio falso antes de entrar na sala. Os dois homens estavam cochichando.

– Nós gostaríamos de nos desculpar pelo incômodo, senhora. Acreditamos que não tenha nenhuma indicação sobre a causa do suicídio da senhorita Cooper – me disseram.

“Porque desistiram tão rapidamente e tão repentinamente?”

Eles se levantaram. Me levantei também.

– Estamos de saída – me disseram.

– Os acompanharei até a porta – respondi.

Os acompanhei até a porta.

– Se por acaso lembrar-se sobre algo que considere importante em nossa investigação, por favor, nos ligue – Me entregam o cartão.

Peguei o cartão. Abaixei minha cabeça e li as informações nele contidas. São detetives particulares.Os pais de Felicity devem tê-los contratado. Smith e Sloan. É até engraçado.

– Ligarei – prometi, guardando o cartão no bolso da calça jeans.

Os dois sorriram, agradeceram e eu disse “não tem de quê”. Mesmo que seja uma mentira. E Smith e Sloan foram embora.

Tranquei a porta com duas voltas completas,como sempre.Levei minha mão até o chaveiro, guardando a chave e sentindo apenas outras duas ali antes guardados.

— Que estranho... – sussurrei para mim mesma. Podia jurar que minha avó havia feito outra cópia das chaves de casa ontem, já que nós duas estamos sempre perdendo as chaves pelos cômodos.

Subi as escadas correndo quando ouvi o telefone de meu quarto tocando.

Eu sabia que não era Felicity.

Mas corri mesmo assim.

E não sei explicar o porque.