Midgard Heroes - A Canção de Glast Heim - Livro 1

Capítulo 1 - A queda da ordem e o grupo se reune (ou "o suspeito encapusado")


Taverna, Centro de Prontera, 6:00 da tarde.

Uma temperatura agradável se instalava nas redondezas de Prontera, apesar daquela época do ano normalmente deixar a capital do reino coberta por neve e o frio ser bastante mais comum.

Isabela Nylwin agradecia imensamente por aquilo: para uma Algoz criada em meio ao Deserto de Sograt, lugar onde o inverno simplesmente não tinha força suficiente para existir, não havia nada pior que um dia frio. Andar com roupas pesadas não era nada confortável, afinal, porque estava habituada aos tecidos mais finos naturais de sua cultura.

Na taverna onde estava, uma pequena abertura em uma das janelas permitia a entrada daquela brisa de inverno, que disputava com a lareira o domínio da temperatura do ambiente. Movimentava também a fumacinha que saía de seu copo, que guardava um chocolate quente e bastante doce da maneira que ela gostava. Uma visão bastante poética, inclusive, mas seus olhos cor-de-rubi estavam voltadas para outra coisa: o lado de fora do restaurante. Com uma mão apoiada no queixo e a outra lentamente movimentando a comida em seu prato, ela observava a neve caindo imaginando onde estaria sua companhia que ainda não havia chegado.

Sua aparência não era das piores, deve-se dizer. Seu cabelo, avermelhado como os olhos e liso como artificial, escorria por seu ombro sobre seu casaco de pele, alcançando uma Rosa Eterna que repousava-se em um de seus bolsos. Ela usava batom naquele dia e delineador nos olhos, algo bastante incomum para ela, que tinha se arrumado bastante para seu encontro daquele final de tarde. Não era para menos que estivesse preocupada de ter sido esquecida ou ignorada pela sua companhia.

Incomodada com a brisa que começava a se tornar ventania, ela levantou-se para fechar a janela. Quando seguia em direção às vidraças, entretanto, algo segurou seu braço e a impediu. Quem teria a ousadia de tocá-la daquela maneira? Não gostava disso, poucas pessoas podiam tocar em seu corpo daquela maneira sem que ela se irritasse profundamente. Virando-se já com o punho levantado, pronta para brigar, ela parou assim que viu de quem se tratava: era Nicolas, a pessoa que ela estava esperando.

— Meu Deus, Nicolas! — gritou, inconformada, liberando um suspiro em resposta ao sorriso do menino. — Ficou maluco? Eu quase te dei um soco na cara!

— Não se preocupe, Isa… — respondeu, a voz bastante mais calma que a dela. Ele não era muito mais alto que ela, e provavelmente teria mesmo recebido o soco em seu rosto se ela não tivesse se contido. — Você já fez tanto isso que eu nem me importaria mais… O que é mais um floco de neve pra quem já está soterrado, não é mesmo?

Ela arregalou os olhos para o que o garoto falava, tão naturalmente sobre algo tão perigoso. Franziu o cenho, direcionando-se de volta à mesa, cruzando os braços quando se sentou.

— Você pode não ligar, mas eu ligo, não quero ter que bater em você… Não sem um bom motivo, pelo menos — sussurrou esse fim, com um risinho, sabendo que ele a tinha escutado. Com o mesmo riso de antes, ele sentou-se na cadeira à sua frente, um pouco mais desleixado que ela, antes da conversa se iniciar: — E então… Como foi a reunião?

Nicolas começou a lhe explicar os acontecimentos. Tristan apenas gritava metade do tempo e, na outra metade, trovejava diversas pragas contra alguém que ninguém sabia quem era. Ele nunca tinha visto o rei agir daquela forma desde que o conheceu… Mas sabia que tinha um bom motivo para isso. O incidente em Morroc. O acesso ao local, que já era proibido mas não tão fortemente fiscalizado, agora era cercado dia e noite por assassinos da guilda local.

— Incidente? Tristan? Você conversou com Tristan?

Nicolas jogou o cabelo para trás com um sorriso no rosto enquanto apoiava-se na mesa para ficar mais próximo à garota. Era divertido a forma como ela se exaltava sobre tudo, mas precisava manter aquilo em segredo.

— Ok, você precisa se acalmar — pediu, ainda com a voz bastante suave para ela, mas um pouco mais baixo dessa vez. — Sim, houve um incidente e sim, conversei com Tristan. Não é grande coisa, o rei é só inacessível porque passa muito tempo fora de Pronter…

— Ta bem — interrompeu-o, sem gritar dessa vez. — Mas que incidente foi esse?

Antes de respondê-la, garantindo que ela não ia levantar a voz de novo, ele colocou o indicador sobre sua boca, fazendo um “shh” para ela, que acenou afirmativamente para ele, concordando.

— Houve um… Bem… — ele respondeu, hesitante. Mesmo não sabendo o motivo, ele não sabia se devia contar isso à ela. — Um assassinato.

O rosto de Isabela moldou-se em genuína surpresa: a boca abrindo-se lentamente, as sobrancelhas subindo, os olhos abrindo-se aos poucos.

— Um o que…? — sussurrou.

— Isso mesmo — Nicolas respondeu, voltando a encostar o corpo na cadeira. — Um ataque a um dos guardas do rei. Foi assassinado em nossa cidade natal…

Os olhos de Isabela focaram-se em um ponto específico da mesa enquanto ela também voltava a encostar-se na cadeira, cruzando os braços, uma feição bastante decepcionada em seu rosto. Como aquilo podia ter acontecido? Independente de onde ou do horário, Morroc devia ser sempre bastante vigiada… A guilda dos assassinos sempre foi historicamente bastante obstinada em manter a segurança da cidade. Eles fariam algum barulho, não é?

— E como vão fazer para descobrir quem fez isso…? — ela questionou, também um pouco hesitante.

— Essa é a questão: não sabemos. Tristan estava falando sobre dissolver meu clã dias atrás por “supostamente não precisar mais de nós” e acho que ninguém além de mim está realmente interessado em investigar isso… — Ele se interrompeu, porque o rosto de Isabela era um grande ponto de interrogação. — Meu clã trabalha com investigação, Isa… Esqueceu-se disso? Foi por isso que consegui conversar com Tristan.

— Oh, sim — ela respondeu, a dúvida sumindo de seu rosto. — Espero que consiga ajuda para investigar isso… Não pode acabar assim, não é? Quem matou aquele homem pode voltar…

O sorriso voltou ao rosto de Nicolas enquanto ele a ouvia, e o rosto de Isabela voltou a mostrar sua dúvida.

— Bem, você tem razão. Agora a pouco, quando estava à caminho daqui, te vi pela janela e uma ideia veio à minha mente. Seria bom ter alguém de confiança por perto, não acha…? — perguntou, sabendo que ela entenderia seu recado.

Ela demorou um pouco a entender do que se tratava, girando levemente o rosto para o lado, confusa com a sugestão. Quando entendeu do que se tratava, um brilho surgiu em seu olhar e ela voltou a se exaltar, jogando-se sobre a mesa entre eles, que golpeou o estômago de Nicolas em cheio.

— Vai me colocar na investigação?!

Ele não conseguiu falar nada de prontidão por causa da dor, mas depois de respirar fundo, respondeu-a:

— Possivelmente… Só preciso conversar com…

Ele não teve tempo de terminar sua frase porque recebeu outro golpe na barriga, mais forte ainda dessa vez, porque Isabela pulou sobre a mesa para abraçá-lo, completamente inconsciente de que estava machucando-o. Ele soltou um pesado gemido de dor quando desviou da mesa, fazendo o possível para segurar os pratos e o copo de Isabela, que já estava vazio nesse ponto, deixando que a mesa fosse ao chão. Por fim, ele apenas riu de toda a situação.

— Isa, sua maluca, me solte! Estão todos olhando.

Largando-o por um instante, ela olhou-o nos olhos — um pouco mais próximo que o aceitável para Nicolas, que ruborizou.

— Deixe que olhem, oras — afirmou, fitando-o daquela maneira estranha, voltando a abraçá-lo em seguida. — Porque eu deveria me importar?

— Por nada, esqueça — ele retorquiu, desistente de convencê-la. Ele começou a fazer cócegas nela como resposta, forçando-a a voltar ao seu lugar. — Mas vamos, me solte, eu ainda nem conversei com meu chefe…

— Tudo bem, e o que estamos esperando?! — Isabela rapidamente levantou-se e puxou Nicolas pelo braço, levando-o em direção ao lado de de fora, impedindo que ele resistisse. — Vamos!

— Agora?!

Ela não respondeu, entretida demais em seus pensamentos. Ia participar de uma investigação! Em sua mente, aquilo era simplesmente incrível. Antes de alcançar a porta da taverna, entretanto, ambos ouviram um ruidoso estrondo do lado de fora. Isabela parou no mesmo instante e Nicolas quase acertou seu nariz contra o corpo dela por conta da projeção de seu corpo correndo.

— O-O que foi isso…? — ela perguntou, virando-se para ele.

Ele também parecia bastante desconfiado, mas com certeza menos assustado que ela. Olhou ao redor, tentando descobrir o que estava acontecendo por alguma janela, mas não viu nada.

— Não faço ideia… mas precisamos sair daqui para descobrir.

Aproveitando-se que ela segurava seu braço, fez um movimento rápido para trocar de posição, puxando-a para fora. Parados do lado de fora à frente da porta de entrada, eles não precisaram de muito esforço para ver a imensa quantidade de fumaça que vinha de não muito longe dali. Ele pareceu aflito, mas não disse nenhuma palavra, apenas trocou olhares com Isabela e saiu na direção indicada.

O desespero tomou conta de Nicolas quando ambos se aproximaram do local onde deveria estar o prédio de dois andares de seu clã. No lugar, sobrava apenas uma cratera.

Tudo o que podia queimar, estava queimando; houvessem pessoas do lado de dentro, que Nicolas estava certo que sim, também estariam todas mortas…

— Está… destruído… — inconformou-se, a voz trêmula e rouca. Era difícil formar palavras naquela situação. O suor começou a preencher seu rosto, não sabendo se pelo nervosismo ou pelo fogo que ardia bem à sua frente. Uma rajada de vento golpeou seu corpo, fazendo movimentar o seu casaco.

Isabela também estava estagnada. Na verdade, todos à volta estavam, visto que uma dezena de pessoas se aproximava para observar o cenário de destruição. Ela virou seu rosto por um instante para observar Nicolas, que avançada em direção aos destroços. Suas pernas, entretanto, cederam antes que ele pudesse alcançá-los. Ele alisou com a mão direita uma placa caída onde as inscrições permaneciam ilegíveis… Nicolas, entretanto, sabia exatamente o que estava escrito.

— Como isso foi acontecer…? — ele perguntou, as lágrimas surgindo em seu rosto por pensar que todos seus amigos deviam estar do lado de dentro quando tudo aconteceu. Ele viu Isabela aproximar-se e sentiu o toque em seu ombro, afagando-o com carinho, sem opção de palavras para consolá-lo naquele momento.

Entretanto, foi a própria Isabela que, mesmo com a atenção voltada ao que restava do edifício, percebeu a figura sob a capa negra, correndo sobre os telhados, ao longe. Foi apenas um ruído, um passo dado sobre uma telha mal colocada, que chamou a atenção da Algoz. Ela alarmou Nicolas, que virou prontamente o olhar para o desconhecido, e ambos prontamente partiram em direção à ele.

Eles pareciam ser bem mais rápidos que o suspeito, então não tiveram problemas para alcançá-lo. De fato, Nicolas conseguiu colocar-se à frente dele, barrando sua passagem, e Isabela cercou-o por trás.

— Foi você que fez aquilo?! — Nicolas perguntou, de feições sérias, o óbvio.

O homem deu um sorriso sob a sombra da capa, não parecendo dar muita importância aos dois que o cercavam.

— Sim, fui eu mesmo. O casalzinho vai fazer algo à respeito?

O garoto não respondeu, apenas avançou, sem hesitar, contra o inimigo. Sem esforço algum, o desconhecido apenas levantou os braços — espinhos de gelo começaram a sair dos telhados em direção de Nicolas, que foi prontamente congelado. Antes mesmo que Isabela pudesse ter qualquer reação, a mão esquerda do desconhecido se levantou em sua direção e ela não podia mais mover seu corpo, completamente petrificada. Sem mais resistencia, sabendo que não podia perder mais tempo por ali finalizando os dois, o ser disparou à saída.

—---------------

Cavalaria, Noroeste de Prontera, 6:20 da tarde.

Depois do acontecido, bastante humilhados pela derrota mas livres de suas prisões, a primeira coisa que os dois fizeram foi disparar para a cavalaria. Concordaram — apesar de Nicolas ainda estar imensamente abalado com o que tinha acontecido e sentir que precisava de um tempo para refletir — que o melhor a se fazer no momento seria alertar a cidade do perigo existente.

Encontrara o líder antes disso, entretanto, na metade do caminho, correndo sobre seu Peco-peco, buscando pela origem do imenso barulho que tinha ressoado por toda a cidade. Estava sendo seguido por vários cavaleiros de patentes menores que o escoltavam até a tal cratera.

— M-Mas o quê?! — Foi tudo o que pôde exclamar, indignado, quando soube da história. Golpeou sua própria perna com punhos cerrados, assustando sua montaria, que empinou o corpo, ainda que não tivesse patas dianteiras para tal. Os olhos cor de esmeralda do homem iam de Isabela para Nicolas e vice-versa tão rapidamente quanto podiam, tentando refletir sobre o acontecido. — Isso é impossível. Como pode ter ocorrido algo assim sem testemunha alguma?!

— Sinto dizer, mas… — A voz de Nicolas ainda tremia bastante, não sabendo como falar daquilo. O esforço era enorme para manter-se sobre seus próprios pés. Ele continuava suando, mesmo com o ligeiro frio que fazia. — Ele deve ter eliminado qualquer vestígio seu, com exceção do local da destruição… Isso inclui as testemunhas.

Olhando para o chão por um instante, ele voltou a levantar o rosto, parecendo bastante mais calmo.

— A princípio devo ser o único de meu clã que está vivo, porque não estava no local quando a explosão aconteceu… Mas quem quer que tenha feito isso deve voltar para me caçar também…

O grande homem — que, claro, era ainda maior por conta da montaria — começou a esfregar sua própria testa, buscando palavras para responder. Perguntava-se se aquilo tudo era mesmo verdade até o momento que outro guarda aproximou-se correndo, confirmando que algumas pessoas tinham lhe procurado para relatar o ocorrido. Acompanhado de seus soldados e dos dois algozes, ele seguiu seu caminho em direção ao local da explosão porque precisava vê-lo com os próprios olhos.

— Tristan precisa ser informado… — ele disse, assim que seus olhos miraram as ruínas do prédio. — Ele deve saber o que fazer.

— Desculpe, senhor — Nicolas respondeu —, mas isso não será mesmo possível. Tristan partiu de Prontera em mais uma de suas viagens logo após a reunião com… Com meu clã, que aconteceu hoje de manhã. Ouvi dizer que vai demorar à voltar…

O homem levou sua mão novamente ao rosto, na altura do queixo dessa vez, roçando sua barba loira e bem aparada. Exclamou um “tsc” para demonstrar sua indignação. Tristan viajar em um dia como aqueles?! Só podia ser uma enorme e terrível coincidência. Decidido a tomar alguma providência, ele levou Nicolas e Isabela ao seu escritório no prédio da cavalaria. Ele andava de um lado ao outro atrás de sua mesa, imensamente preocupado.

— Como disse que se chama, mesmo? — perguntou, olhando para Nicolas.

— Meu nome é Nicolas Ebert, senhor — se explicou, agarrando-se ao seu casaco de pele de Zíper como se fosse se sentir menos pior daquela forma.

O homem permaneceu em silêncio mais alguns instantes antes de voltar a falar:

— Escute, Nicolas, se me permite chamá-lo assim. No momento, não temos muito o que fazer a não ser zelar por sua vida. A melhor opção, supondo que você conheça bem sua profissão, é deixá-lo responsável pela investigação para descobrir quem é o criminoso. A parte mais bruta, você pode deixar com a gente. O que acha disso?

Em outra ocasião, Nicolas explodiria de felicidade com aquela oferta. Trabalhar sozinho em um caso como aquele era algo digno de comemoração… Mas não naquele dia. O caso que ele trabalharia, de qualquer forma, envolvia a morte dos colegas de seu clã, próximos ou não a ele. Não seria uma tarefa fácil, mas… para vingá-los, ele não podia recusar aquela oferta.

Ele apenas acenou uma única vez com a cabeça, aceitando a proposta.

— Certo… — o líder da cavalaria respondeu. — Pode começar quando achar-se pronto. Garantirei que terá guardas à postos em pontos chave da cidade para ajudá-lo com qualquer problema. Além disso, por favor, peça para alguém enviar falcões mensageiros às outras cidades pedindo por ajuda. Eles saberão o que fazer.

Enquanto os dois conversavam, visto que não fazia parte do clã de Nicolas nem tinha muita prática com investigação, ficando um pouco à parte da conversa, Isabela ficou apenas observando sem dizer palavra alguma. Quando seguiu Nicolas para fora cavalaria, ela se aproximou dele, tentando reconfortá-lo o melhor que podia. Ele parecia estar se segurando bem, mas não quando estava com ela; a dor em seus olhos era bastante visível.

E então… — ela disse, tentando parecer o mais empática possível. — Por onde quer começar?

Apesar de um pouco constrangido pela aproximação dela, Nicolas sorriu timidamente para Isabela, respirando fundo para se acalmar. Ele colocou as mãos no bolso enquanto pensava em sua resposta. Esta seria, provavelmente, a maior responsabilidade que já tivera em toda sua vida.

— Acho que… Primeiro preciso ir até a casa dos mensageiros para pedir que enviem mensagens para outras cidades — E ficou em silêncio um instante, parando também de andar. — Você pode me fazer um favor?

— O que precisar, Nic — ela respondeu, paciente, parando um pouco à frente dele.

— Quero que vá até o castelo e peça que mandem… Vejamos… Três pessoas. Não importa quem, contanto que sejam acostumados à investigações. Diga que são ordens do chefe da Cavalaria de Prontera. Tenho certeza que não vão recusar um pedido dele.

— Ok — ela respondeu, com um aceno e um sorriso gentil, satisfeita com sua função, uma única monossílaba antes de sair.

— Nos encontramos em frente à catedral — continuou Nicolas, um pouco mais alto dessa vez, enquanto ela se afastava. — Tentarei ser rápido também… Até lá.

Ambos acenaram em despedida e se separaram.

O garoto foi em direção à oeste, onde se localizava a sede dos mensageiros de Prontera, no topo da torre da muralha. Bastavam alguns poucos passos para que chegasse, visto que a Cavalaria de Prontera localizava-se à Noroeste da cidade, mas ele não queria correr. Sentia o corpo e a mente doloridos com tudo o que estava acontecendo. As roupas pesadas não ajudavam em nada, também, assim como Isabela, habituado ao clima quente de Morroc. Preferiu pelos passos lentos, observando a paisagem ao seu redor.

A cidade estava cheia naquela hora. Muitos mercadores ainda vendiam seus itens pelas calçadas, gritando e anunciando seus preços; alguns aprendizes novatos pediam informação aos veteranos, também; clãs… Completamente inconscientes do que tinha acontecido ao seu, formavam estratégias e alianças. Todos, na verdade, pareciam ignorar o que havia ocorrido no centro da cidade. Mesmo que a notícia não tivesse se espalhado ainda, o som da explosão não podia ser ignorado. Como, então, todos pareciam completamente cegos para os acontecimentos daquele dia?

Movendo a cabeça de um lado ao outro para espantar aqueles pensamentos, o Algoz alcançou seu destino. Mesmo com os passos lentos, não foram mais que cinco minutos entre a Cavalaria e a torre indicada. Nada de incomum acontecia no local, apenas a funcionária Kafra plantava-se ali, junto à outros dois guardas que proviam a segurança básica aos portões de entrada. A única coisa diferente era a movimentação dos cavaleiros da cidade, que começava a se intensificar.

Não houve, de qualquer forma, necessidade de pedir autorização para subir a torre dos mensageiros. Todos os soldados pareciam plenamente conscientes do que estava acontecendo e seu acesso parecia liberado à toda cidade. Ele acenou para o guarda mais próximo com a cabeça e entrou.

Uma longa escadaria de concreto manchado o aguardava, formando um grande looping em espiral até a parte de cima. Algumas tochas, apagadas, estavam penduradas nas paredes, deixando apenas a luz da janela iluminar a subida.

Sem muita pressa, Nicolas subiu as escadas. No topo, visto que ele nunca tinha precisado subir ali, uma imagem interessante o aguardava: uma série de caçadores vagavam em círculos tentando manter a ordem do pequeno espaço, enquanto falcões, separados em suas pequenas celas por tábuas de madeira, agitavam-se dentro de suas gaiolas, bicando os desavisados que passavam próximos às grades. Além disso, muita ração localizava-se nos cantos, ensacadas, ainda que já estivesse quase no fim do dia.

Seria tudo bastante cômico, não fosse a situação desastrosa daquele dia. Ignorando tudo e todos, Nicolas seguiu ao fim da sala para encontrar um Atirador de Elite, provavelmente a autoridade maior daquele lugar. Sentado, os pés apoiados sobre a mesa, ele empunhava, no lugar de seu arco, uma lixa, encurtando vagarosamente as unhas de suas mãos. Suas roupas, toda de cor laranja, estava manchada de algo que Nicolas preferiu não tentar descobrir.

— Com licença — ele disse, pigarreando para chamar atenção. Foi bem sucedido, visto que o Atirador de Elite virou o rosto suavemente em sua direção, um ar bem mais arrogante do que ele esperava em seu rosto. — Pode me ajudar com algo?

— Ajuda? — ele respondeu, movendo a mecha do cabelo castanho e cacheado que deixava cair sobre a testa para tirá-la de frente dos olhos. Ele não chegou a se mover muito, continuou naquela posição completamente desconfortável para uma conversa e, antes de voltar a falar, colocou a cabeça de volta na posição original. — O que seria…?

Parecendo bem mais despreocupado do que deveria, Nicolas reparou que o Atirador passava a língua sobre seus dentes, limpando-os. “Que idiota…” pensou, mas não disse, apenas revirou os olhos em resposta.

— Não sei se ficou sabendo, apesar de duvidar um pouco pela sua postura, mas… Prontera foi atacada.

Finalmente, ele pareceu ter ganhado a atenção completa do homem, que pareceu se assustar com a informação, virando o olhar de cenho franzido de volta a ele.

— Preciso que mande algumas aves para as cidades vizinhas pedindo ajuda e avisando-os para se defenderem. Ordens do chefe da cavalaria. Pode me ajudar, não?

O Atirador desceu seus pés da mesa e se levantou, emitindo um grunhido com a boca. Pensou por alguns segundos e só então chamou por outros cinco caçadores, cada um com suas características próprias, as quais Nicolas não deu muita atenção. Ele deu ordens a eles antes de voltar-se novamente à sua mesa, pegando uma folha, uma pena e um tubo de tinta de polvo. Escreveu seu nome, o qual Nicolas conseguiu ler: Ryo.

Depois disso, Ryo virou o olhar, encarando-o fixamente.

— Então? — disse, movimentando a pena em sua mão, percebendo que o Algoz não tinha entendido sua indireta. — Vai me dizer o que escrever ou não?

— Ah, sim. Comece por…

—---------------

Castelo, Norte de Prontera, 6:30 da tarde.

Isabela, por outro lado, deu passos rápidos até à frente do castelo, chegando em menos de 2 minutos em seu destino. A neve cobria toda a extensão da estrutura e seus arredores, ainda que não mudasse sua coloração, que era já totalmente branca. A entrada para o castelo, uma enorme ponte de metal, dava de encontro ao colossal portão de ferro maciço que proporcionava sua proteção contra ataques.

Ela parou em frente a isso, retomando o pedido de Nicolas. Precisava encontrar três pessoas que pudessem lhes ajudar com a investigação. Certo. Dando mais algumas passadas, ela passou pela entrada, que estava aberta, para dentro do castelo.

Por dentro, os monumentos dominavam a decoração, além dos diversos quadros na parede, que representavam tanto a cidade de Prontera quanto seus reis, enfileirados um depois do outro em uma das paredes próxima à entrada. Três grandes lustres iluminavam o salão por inteiro, dando-lhe uma tonalidade mais clara e, porque não, muito mais agradável, visto que ambientes escuros não costumavam ser tão receptíveis assim.

Com passos largos, ela prosseguiu pelo corredor. Próximo ao final, um grupo de pessoas se amontoava ao redor de um Paladino, que ela automaticamente supôs ser o lider de sua classe. Conforme ela avançou, o Paladino notou sua presença, parando a pequena reunião. Ele aproximou-se da garota antes que ela pudesse lhe alcançar, um sincero e bondoso sorriso em seu rosto.

— Bom dia, senhorita — ele disse. Tinha olhos esverdeados e um longo cabelo acinzentado, mesmo sendo bastante novo ainda. Sua voz era bastante suave, ainda que grossa, bastante agradável aos ouvidos. — Precisa de algo?

A Algoz ficou levemente rubra de timidez, e teve de respirar fundo antes de começar a falar para não gaguejar.

— Sim, preciso de sua ajuda. Você é o responsável pelo castelo quando Tristan não está, não é?

Isabela engoliu a saliva ao perguntar isso, pensando ter sido um pouco grossa com a pergunta. Felizmente, ele não pareceu ter notado pois não a repreendeu, mantendo sempre o sorriso fechado em seu rosto.

— Quase isso, mas pode-se dizer que sim — ele respondeu, puxando-lhe a mão direita para beijá-la, deixando Isabela ainda mais embaraçada do que já estava. — Me diga seu nome, ok? Se estiver ao meu alcance, eu certamente farei o que pede.

— Eu me chamo Isabela… E-Eu vim pedir algo como uma… Uma convocação. Preciso de três de seus soldados para uma investigação aqui em Prontera… E t-talvez nos arredores, também.

— Soldados? — questionou, levantando apenas uma de suas sobrancelhas em forma de dúvida. — Bem, de certa forma não tenho soldados, senhorita. O que aconteceu?

— Não vieram lhe informar? Houve um ataque ao centro de Prontera. A sede do clã…

Com dificuldade para lembrar daquele nome, Isabela começou a estalar os dedos, vasculhando em sua memória as conversas que teve com Nicolas, com a certeza de que ele teria lhe falado em algum momento. Felizmente, Michael parecia ter se adiantado ao subconsciente dela:

— Você diz a OIP? É a única sede no centro de Prontera.

— Sim, isso! Parece que alguém não quer que ela interfira nisso…

Nesse momento, Isabela já havia recobrado a postura séria. Para um assunto daqueles, afinal, não era bom que estivesse de outra maneira.

— Talvez pense que — ela conjecturou. —, cometendo um crime desses, impediria que Prontera descobrisse algo sobre si mesmo.

O Paladino ficou estagnado enquanto pensava, a respiração profunda e bastante calma. Preocupado, olhou para trás para ver se alguém tinha escutado sua conversa, mas percebeu que a resposta era negativa. Quando voltou o rosto para frente, ele não olhava Isabela… Estava distraído em seus pensamentos, olhando para nada em específico.

— Primeiro o Paladino assassinado em Morroc… Agora isso? — sussurrou para si mesmo.

Isabela levantou ambas as sobrancelhas ao ouvir a nova informação.

— Então ele era Paladino? — ela perguntou, também para si mesma, também olhando para o nada. Passou a mão levemente para tirá-lo de sua testa e então, voltou ao assunto principal. — E então, pode me ajudar?

A voz da garota fez Michael recobrar a consciência. Ele voltou a olhá-la nos olhos.

— Não precisa perguntar novamente, senhorita Isabela — ele respondeu, agora com a voz bastante mais firme, mas não menos suave por conta disso. — Acho que todo incidente deve ser vingado, não concorda? Aliás, quero participar disso também, é importante para mim. Eu, um Sumo Sacerdote e uma Atiradora de Elite. É suficiente?

— Claro, mais que suficiente — a menina respondeu, o sorriso mais amigável possível surgindo em seu rosto. — Mas quem são eles?

Olhando para o lado, Michael terminou:

— Eles devem estar naquela outra sala — E apontou para a escada ao seu lado. — Me acompanhe.