Meu amado é um lobisomem

Capítulo 2: Rapaz da floresta


Quem quer que tenha me salvado e me levado para casa, sou muito agradecida.

Acordei após desmaiar na floresta. E não me lembro de ser sonâmbula. A tempestade continuou até à noite. Me perguntei se a pessoa que me ajudou ficou bem naquele tempo. Esqueci o que aconteceu em alguns dias e continuei. Na manhã seguinte fui para a cidade comprar algumas coisas no pequeno mercado.

Pequeno é apenas modo de dizer. O mercado era mesmo pequeno, porém tinha quase tudo que precisávamos. Comprei leite, ovos e pão. E quando me direcionei para o caixa para pagar, vi a pilha de jornais. A capa dizia que algumas árvores caíram durante a tempestade e a energia acabou por algumas horas. Ao me aproximar na moça, ela sorriu e disse:

— Miyoshi!

— Hum... Ah, Sana! – sorri – Como você está?

— Bem. Estou trabalhando aqui e com minha mãe. E fiquei noiva a alguns meses de Haku.

— Haku? Isso é ótimo!

Sana foi uma das minhas colegas no fundamental. E Haku era um dos meninos que chateavam a todos. Alguns de nossos colegas diziam que no final eles ficariam juntos, mas nunca pensei que realmente fosse acontecer.

— O que fez enquanto esteve fora? – perguntou ela.

— Eu fiz faculdade de agricultura. Na verdade acabei de me formar.

— Isso é ótimo! Então vai continuar a plantar como seu pai?

— Bem, não. Vou me mudar no final do mês, pus a casa do meu pai à venda. Recebi uma proposta de emprego em Kansai.

— Ah, entendo. É uma pena. Ele sempre vinha aqui para encher a dispensa. – Sana sorriu.

— Jura? – achei graça.

— Sim. Ele comprava muito leite e pães... Queijo, carnes, torta de maçã da mamãe. Eram quase as mesmas coisas.

— Torta de maçã? Mas meu pai não gosta... Não gostava de torta de maçã.

— Bem, mas ele sempre comprava. – ela sorriu, dando suavemente de ombros.

Papai nunca gostou de torta de maçã. Por mais que algumas de nossas árvores fossem macieiras, ele não gostava de maçã. Quanto mais torta de maçã! Para quem ele estava comprando então? Tinha alguma namorada que eu não conhecia? E por que até agora ela não apareceu?

Me despedi de Sana e caminhei pela calçada. Havia alguns caminhões da rede elétrica consertando os fios arrebentados de um dos postes. A falta da luz pegou a todos, principalmente a mim. Na casa da senhora Kei já havia volta eletricidade, mas na minha não. Esperava que isso não atrapalhasse a venda da casa. Encontrei mais alguns colegas no caminho, que pareceriam não querer sair nunca da cidade, e relembrei alguns momentos do fundamental com eles. O que eu mais queria era ir para a cidade grande quando estivesse adulta, mas eles amavam viver ali. Trabalhar em mercados, plantar a própria comida e caminhar quilômetros para o ponto do ônibus. Como conseguiam?

Desci do ônibus com a sacola de compras e caminhei calmamente até em casa. Virei à direita e passei pelas árvores, chegando à entrada. Quando entrei, apertei o interruptor. A lâmpada acendeu, a eletricidade voltara. Vi em seguida que a tv estava um pouco fora do lugar, uma cadeira da mesa da cozinha também e havia um copo usado em cima da mesa. Recuei para fora.

— Olá?

Peguei o celular, pronta para ligar para a polícia e entrei com cautela. Verifiquei com cuidado todos os cômodos e tranquei a porta de casa. Peguei o copo, havia marcas suaves de lábios no vidro. Decidi ligar para a polícia. Se alguém estivesse entrando nas casas das pessoas, todos precisavam saber. E se esse alguém fizesse algo mais que comer a comida das pessoas? Peguei o telefone de casa no canto, porém bateram em minha porta.

— Senhora Miyoshi. – me chamaram.

Atendi a porta e vi um homem com terno.

— Ahm... Sim.

— Miyoshi Tsuki?

— Sim.

— Sou Morino Hatako, advogado. Venho em nome do seu pai, Miyoshi Toshihiko, para informar sobre sua herança e o pedido do senhor Miyoshi.

— Minha o que? – surpreendi-me.

— Eu poderia entrar?

Assenti e o deixei entrar, pegando a sacola que deixara do lado de fora. Preparei chá para nós dois e coloquei o bule sobre a mesa baixa do cômodo principal. Ajoelhamos sobre as almofadas e tomamos chá enquanto conversávamos.

— Eu não sabia que meu pai tinha um advogado.

— Sim. Ele procurou por meus serviços há alguns anos. – o homem tirou de sua pasta uma pilha de papéis e um envelope de carta – Aqui está tudo o que pertence há senhorita. Esta casa, que obviamente a senhora já sabia.

— Sim.

— Todo o terreno envolto da casa pertence a senhorita, incluindo os mil metros quadrados ao lado da casa.

— O que? Outro terreno?

— Sim. Senhor Toshihiko deixou também para a senhorita o valor de 2.000 ienes* numa poupança no banco.

— Dois mil...? Como ele conseguiu tudo isso?

— Ele economizava bastante. Pelos registros de seus gastos, senhor Miyoshi retirou dinheiro de sua poupança apenas uma vez para comprar uma passagem de avião.

Abaixei o olhar. A passagem para ir à minha formatura.

— E tem mais uma coisa. Uma carta. – disse ele – Esta carta contém os últimos desejos do senhor Miyoshi, e nem eu tive permissão para ler o conteúdo. Esta carta deveria ser entregue em mãos para a senhorita.

Assenti, pegando a carta com meu nome, escrito com a letra do meu pai.

— Obrigada. – disse, contendo as lágrimas.

— Por favor, leia todos os documentos e assine-os para que tudo seja passado para o seu nome.

— Sim, obrigada.

Após ler aquela infinidade de papéis, assinei e o advogado foi embora. Voltei para a mesa, ajoelhando novamente e encarando a carta. O que ele tinha para me dizer? O que teria naquela carta? Despedidas? Arrependimentos? Não queria ler. Apenas em imaginar os cantos dos meus olhos já se encheram de lágrimas. Pus a carta ao lado da fotografia do meu pai. Um dia teria coragem de lê-la.

Comecei a arrumar minhas coisas, pondo algumas em caixas. Retratos, livros, brinquedos de quando eu era criança. O mais difícil foi pôr em caixas as coisas do meu pai. Suas roupas ainda tinham seu cheiro. Cheirei-as querendo me lembrar de como era tê-lo ao meu lado. Guardei-as e passei para as fotografias. Ele tinha duas caixas com fotografias e álbuns. Havia muitas fotos nossas de quando minha mãe era viva. Depois que ela morreu não tiramos muitas. Havia apenas fotografias de aniversários, feriados e fotos que senhora Kei tirou de quando trabalhávamos na horta. Peguei uma foto de nós dois ajoelhados colhendo nabos e ao lado uma cesta cheia de tomates. Eu usava um chapéu engraçado por causa do sol. Sorri ao me lembrar daquele dia. Foi cansativo, mas divertido.

Ao passar a foto, surgiu uma fotografia de um menino. Parecia a floresta atrás dele e o menino estava de lado, como se tivesse sido pego de surpresa. Seu olhar era sério, tinha olhos amarelos e cabelos pretos azulados. Estava com uma camisa um pouco suja de terra e todo o fundo da foto era verde. Quem era aquele menino?

Passei mais fotos e não havia mais nenhuma dele. Vasculhei a outra caixa e achei algumas fotografias de antes de eu ir para Tokyo. Havia também as fotos que eu enviava para meu pai. Fotos do colégio, com amigos, festivais. Fotos com minha tia e primas. Ele guardou todas. Encontrei algumas fotos do menino, porém parecia mais velho, adolescente. Várias fotografias dele, a maioria com meu pai ao lado, sorrindo. O cabelo do garoto estava um pouco comprido e ele usava apenas uma calça jeans. Seu olhar sério estava presente em todas as fotos. Passei as fotos e o garoto parecia envelhecer. As fotografias deveriam ter alguns anos.

Quem era ele? Quem era esse garoto que meu pai conheceu? E por que tinha tantas fotos dele?

Guardei todas as fotografias, organizando-as como estavam e achei uma pequena bola vermelha no fundo. Peguei, observando-a. Me sentei na entrada com os pés nos degraus e girava a bola em minhas mãos, tentando imaginar quem era o garoto das fotos. Papai nunca comentara nada sobre ele. Comecei a ficar irritada com isso. Não era nenhum vizinho ou pessoa nova que havia se mudado. Abaixei o olhar para a bola e joguei-a longe. Ela passou pelas árvores e desapareceu. Continuei sentada por mais alguns minutos, pensando. De repente a bola voltou e quicou, parando a minha frente. Fiquei chocada e olhei de onde ela veio. Não havia nada.

Peguei-a e a joguei longe novamente. Ela retornou mais uma vez. Andei até onde ela veio e vasculhei o mato, não encontrando ninguém. Entrei na floresta, vasculhando a grama alta e quando a abri, vi a cabeça de um lobo de pelagem negra me olhando. O animal parecia estar surpreso e eu mais ainda.

— Meu Deus! – gritei e recuei, caindo.

Levantei rapidamente e corri para dentro de casa, trancando a porta. Nunca havia visto um lobo pelas redondezas, porém já ouvira dizer que também havia ursos por aí. Então não seria surpresa. Mas após me acalmar, me perguntei quem era que estava jogando a bola de volta afinal.

Fiquei trancada o dia todo em casa. Não saí para nada. Estava com medo do lobo ainda estar lá e com medo de ele me atacar. Pensava em quem poderia chamar. Polícia? Bombeiros? Protetores dos animais? Afinal, ele deveria estar na floresta, eu acho.

À noite, aventurei-me em abrir a porta. O lado de fora estava escuro e parecia não haver nenhum indício do lobo. Porém quando olhei para o chão, vi cestas com alguns vegetais e legumes colhidos. Olhei para a escuridão na esperança de ver quem havia feito aquilo e pus as cestas para dentro. Lavei tudo e os coloquei dentro da geladeira, indo dormir.

Acabei sonhando com o lobo naquela noite. Eu corria pela floresta e ele vinha atrás de mim. Acordei de repente quando no sonho caí enquanto fugia. Meus batimentos e respiração estavam acelerados e uma gota de suor escorreu pelo meu rosto. Odiava ter pesadelos. E creio que ninguém gosta. Ouvi um som fora do quarto. A geladeira abrindo e fechando, copos sendo postos sobre a mesa e o som de saco plástico. Levantei, pegando um guarda-chuva para usar como arma e abri lentamente a porta. Vi uma sombra através da porta do corredor para a cozinha e passei rapidamente para o cômodo principal da casa, me esgueirando até ver quem era.

Vi o mesmo homem que estava colhendo frutas das árvores no outro dia. Ele usava as mesmas roupas. Calça jeans e camisa branca, estava descalço novamente. O cabelo preto parecia um pouco maior que antes, ou talvez fosse por eu estar mais próxima dele. Quando se virou para a mesa, arregalei os olhos. Era o garoto das fotos. Os olhos amarelos, a mesma expressão séria. Ele talvez tivesse minha idade, não sei. Saí das sombras, empunhando o guarda-chuva.

— Quem... Quem é você! – gaguejei.

Ele se virou para mim, assustado. Eu o olhava, mais assustada ainda, temendo o que ele poderia fazer, mas ele apenas correu para fora, fugindo.

— Ei!

Corri atrás dele, mas ele desapareceu na floresta. Pus a mão na cabeça, olhando para trás e vendo em cima da mesa da cozinha dois copos, pão e uma garrafa de leite. Ele ia tomar o café da manhã? Corri para o quarto, pegando o casaco e vestindo-o sem nem ao menos trocar meu pijama. Corri para a floresta, seguindo a trilha. Agora que ele sabia que eu o havia visto, talvez nunca mais voltasse. E eu precisava saber quem era ele. E por que meu pai tinha tantas fotos com ele.

— Olá! – exclamava – Olá!

Procurei por ele por quase toda manhã, até que desisti e voltei para casa. Almocei com aquela incógnita em minha mente. Lavei os pratos num silêncio perturbador. Sem o som da tv ou o cantarolar que algumas vezes fazia para afastar a solidão. Ouvia apenas o som da água e dos pratos.

— Tsuki! – alguém me chamou.

Fui atender e vi senhora Kei. Deixei-a entrar com ela me perguntando se eu estava comendo bem. Me fez várias perguntas na verdade. Se eu me sentia bem, como estava, por que não apareci na cidade naquela manhã e se eu poderia vender algumas coisas da horta para ela.

— Preferi ficar em casa. – sorri – O que a senhora deseja?

— Alguns nabos e alface. Estou planejando fazer um bom jantar esta noite. Quer comer comigo?

— Obrigada. Mas vou empacotar algumas coisas.

— Já começou?

— Sim. Logo terei que ir.

— Que pena. – disse ela com pesar, e dei-lhe o pedido – Mas se mudar de ideia, é só ir para minha casa.

Assenti, sorrindo. Pensei em perguntar se senhora Kei sabia se meu pai conhecia algum rapaz, mas tive receio. Ela faria com que eu ligasse para a polícia pelo rapaz ter invadido minha casa. Mas eu precisava saber quem ele era.

— A senhora conhece um rapaz? – perguntei, hesitante.

— Ah, Tsuki, conheço alguns meninos na cidade. Por quê? Procura um em especial?

— Sim.

Talvez se eu apenas não contasse das invasões.

— É um rapaz que meu pai conhecia acho que desde menino.

— Hum... Bem, ele já deixou escapar uma vez algo sobre um menino. Mas acho que tentava ajudá-lo a encontrar a família, isso faz alguns anos.

— Entendo. Obrigada. É tão estranho quanto ele começar a gostar de torta de maçã. Me desculpe.

— Torta de maçã?

— Sim. Sana me disse no mercado que ele comprava sempre.

— Ora, mas ele detestava torta de maçã.

— É... – olhei o lado de fora, para a floresta.

Senhora Kei se fora e eu decidi ir à cidade. Se aquele rapaz entrava na minha casa quando eu não estava, seria uma oportunidade de fazê-lo ir. Troquei de roupa e fui ao mercado para comprar uma torta de maçã. Se a senhora Kei disse que meu pai falou sobre um menino uma vez e há fotos dele nas coisas do meu pai, provavelmente era para ele que a torta de maçã.

O ônibus demorou mais do que gostaria e a caminhada até em casa foi composta por ansiedade e nervosismo. Caminhei até a entrada olhando discretamente para os lados. Era entardecer, não sei se ele estaria por perto. As últimas vezes que o vi fora à tarde e nesta manhã. Decidi tentar. Abri a embalagem da torta da mãe de Sana. Ela fazia tortas de vários tipos e vendia para o mercado. Todos compravam, eram deliciosas. Estava quente e o cheiro agradável. Deixei a porta e janelas abertas para que o cheiro fosse para fora. Se o rapaz estivesse por perto, com certeza sentiria o cheiro.

Fiquei sentada à mesa da cozinha por um tempo com a torta à minha frente e dois pratos. Nada aconteceu. Apoiei o rosto na mão, balançando a perna durante a espera. Por fim, deitei a cabeça nos braços sobre a mesa. Estava quase de noite e nada. Ele não viera. Desisti e levantei, pondo a tampa sobre a torta quando vi alguém do lado de fora, me olhando. Arregalei os olhos, vendo que era o rapaz. Ele estava parado, com as mãos nos bolsos da calça. Usava a mesma camisa branca, porém dessa vez também usava um casaco e sapatos pretos. O casaco era azul marinho e os sapatos pareciam mais com botas. Levantei a mão, acenando devagar. Andei até a entrada, me aproximando e temendo que ele fugisse mais uma vez. Mas ele ficou parado, olhando minha aproximação. Engoli em seco e cheguei ao lado de fora, vendo-o mais de perto. Suas roupas estavam sujas de terra, como nas fotos que vi ontem.

— Ahm... Oi.

Ele não disse nada, apenas me olhava com uma expressão apática que aos poucos se mostrava séria. Não soube exatamente que expressão compreender.

— Meu nome é Miyoshi Tsuki. Sou filha de Toshihiko. Eu vi as fotos de vocês.

— Eu nunca gostei de tirar fotos. – disse ele.

Sua voz era grave, rígida. Gaguejei, não sabendo mais o que dizer.

— Você... Quer torta de maçã?

O rapaz não disse nada. Me aproximei, descendo os degraus e segurei na manga de seu casaco, puxando-o levemente. Seus olhos eram tão amarelos quanto o sol. Dava medo. Ele me acompanhou, me olhando sem parar e entramos. Esperava que ele pudesse me dizer o que eu desejava saber.