Meu amado é um lobisomem

Capítulo 3: Passado desconhecido


Consegui finalmente encontrar o garoto das fotos. Ele era calado e sério, mas veio comigo quando o puxei. Entramos e fomos para a cozinha. Peguei dois garfos e uma faca para cortar a torta, mas quando me virei, ele estava sentado e a torta estava cortada, tendo uma fatia no prato à frente dele.

— Como cortou? – perguntei.

Ele não disse nada, apenas mastigava. Cortei uma fatia para mim e a pus em meu prato, sentando ao lado dele. Sorri singelamente, nervosa. Não sabia como começar uma conversa com ele. Ele não dizia nada e o que disse antes foi praticamente nada, desconexo.

— Então... Como conheceu meu pai?

— Onde ele está? – ele perguntou.

— O que?

— Ele sumiu.

Não entendi. Franzi a testa, não acreditei que ele não sabia o que acontecera com meu pai. Pelas fotos eles pareciam próximos. Como ele não sabia que meu pai falecera?

— Ele... Morreu. – confessei – Você não...?

O rapaz se levantou abruptamente, indo em direção à porta. Corri atrás dele, surpresa, e me pus em seu caminho, não permitindo que fosse embora. Fechei a porta rapidamente, ele me olhava com raiva. Pensei que me empurraria e sairia porta a fora, mas não. Ele ficou apenas me olhando e tive a impressão que os cantos de seus olhos se encheram de lágrimas.

— Você... Quer tomar um banho? – perguntei – Eu poderia lavar suas roupas.

— Como ele morreu?

— Vou contar quando sair do banho.

O ouvi bufar e então se sentou à mesa novamente, voltando a comer a torta. Avisei que esquentaria a água. Fui para o banheiro e liguei o chuveiro na água quente para encher a banheira de madeira. Tive medo que ele fosse embora, porém quando voltou o vi ainda sentado. Sua cabeça estava baixa, parecia triste.

Meu banheiro era dividido em dois. Um espaço para a banheira de madeira e uma porta que dava para a privada e pia. Sempre gostei dessa estrutura, era diferente na cidade. Tudo era junto. Me aproximei dele, sua franja comprida tampava seus olhos.

— O banho está pronto. – gaguejei – Pode deixar as roupas do lado de fora, deixei um roupão pra você.

Ele assentiu e levantou, indo para o banho. Olhei para a torta e vi que desaparecera. Ele comeu tudo. Até a fatia que estava no meu prato! Suspirei, mas ignorei. Esperei no cômodo principal ele deixar as roupas do lado de fora. A parte de cima da porta do banheiro era de vidro fosco. Eu conseguia vê-lo despir-se lentamente. Me virei, corando mesmo sem poder ver nada e continuei a esperar. O ouvi abrir e fechar a porta. Levantei e vi as roupas dele dobradas no chão. As peguei em silêncio, ouvindo o som da água na banheira. Lavei todas do tanque de lavar roupa. Estavam imundas de terra como se não fossem lavadas há algum tempo. A água ficou marrom e quando finalmente consegui deixa-las limpas, coloquei-as na secadora dentro de casa.

Voltei para a cozinha e vi o rapaz sentado em frente à porta da entrada aberta, vestido no roupão. Abraçava um dos joelhos, olhando para a noite do lado de fora. Me sentei no lado oposto, recostando as costas na parede e podendo vê-lo.

— Ele faleceu por causa da velhice. Tinha 82 anos. – contei-lhe – Vocês eram amigos?

— Era como um pai pra mim.

Sorri levemente.

— Como o conheceu?

Ele parecia pensar.

— Ele estava andando na floresta. Me viu no rio.

— Mora na floresta?

Ele assentiu. Tentei saber onde exatamente ele morava na floresta, porém ele não disse uma palavra. Muitas das minhas perguntas ele não respondeu. Peguei as fotos no quarto de papai e disse que ele poderia ficar com elas, mas não aceitou. Falou que não tinha onde guardá-las.

— Ele visitava você, não é? Ele detestava torta de maçã, mas sempre comprava.

— Como sabe? Você nunca esteve aqui.

Franzi as sobrancelhas.

— Estava estudando em Tokyo. Você que parece não saber que ele tinha uma filha.

— Pensei que era pequena, que estava fora.

— Eu estava fora. – cruzei os braços, ficando calada por um momento – Por que ele nunca me contou sobre você?

Ele me olhou por um momento com a face terna, e até mesmo deprimida. Voltou-se para o lado de fora e levantou quando escutamos a secadora parar. Quando voltou, estava vestido em sua roupa e deixou o roupão sobre a cadeira da mesa. Foi em direção à porta e saiu. Levantei rapidamente, não compreendendo. Segurei em seu casaco, fazendo-o parar.

— Aonde vai?

— Embora. – disse ele.

— Mas está de noite.

— Eu sei o caminho.

— Mas eu quero saber mais! – pedi – Pode voltar outra vez?

Ele não disse nada. Me fez largar seu casaco ao continuar a andar e foi em direção à floresta. Desci os degraus atrás dele, abraçando-me pelo frio e vendo-o partir. Tive coragem e perguntei alto:

— Qual o seu nome?

Esperava que pelo menos isso ele me respondesse. Seria uma resposta curta sem necessidade de pensar muito, assim como ele me dera em todas as minhas outras perguntas. O rapaz de longo cabelo preto parou e se virou para mim. Seus olhos amarelos e penetrantes atentaram em minha direção. Um frio cortante passou por meu corpo e ele disse:

— Yuzo.

— Ahm... Tsuki. – repeti, esquecendo que já havia me apresentado.

Ele franziu a testa sem entender e voltou a andar, desaparecendo. Me senti idiota, já que a primeira coisa que fiz foi me apresentar. E mais idiota ainda pelo olhar que ele me dirigiu. Queria saber mais, descobrir mais. Saber quem ele era, além do como e por que papai seria como um pai para ele. E agora desejava descobrir de onde ele viera e por que morava na floresta. Não havia cabanas, ou pelo menos ninguém sabia. O único que poderia me contar tudo isso seria ele.

Após nosso primeiro encontro oficial, não o vi mais por uma semana. Tentei procurá-lo na floresta, mas era impossível. Era gigantesca e eu não fazia ideia de onde começar ou onde eu poderia encontrá-lo. Procurei por informações na cidade, mas como já sabia, ninguém conhecia Yuzo. Ninguém sabia de um rapaz que morava na floresta com longos cabelos pretos. Ninguém sabia de sua existência e pareciam me olhar como se eu fosse louca.

Me encontrei com Sana e Haku e contei sobre Yuzo.

— Quem é? Um ex-namorado? – perguntou Haku.

— Não. – bufei – É um amigo do meu pai. Eles eram próximos e quero perguntar algumas coisas.

— Ninguém o conhece, Tsuki. – disse Sana – Nem mesmo minha mãe, eu perguntei à ela. E olhe que ela conhece todos na cidade.

— Ninguém o conhece. – bufei – Parece que ele nem existe.

— Melhor parar de perguntar por ele. Vão achar que está louca. – disse Haku.

— Eu não estou louca! – exclamei, indignada – Até senhora Kei disse que meu pai já falara sobre ele uma vez.

— Mas o que exatamente você quer com ele?

— Saber sobre tudo que perdi durantes esses anos.

— Não pode perguntar para outra pessoa? – Haku interrompeu-se no momento que disse.

Sorri.

— Por isso que preciso achá-lo.

— Espere ele voltar.

— Já faz uma semana. – suspirei.

Depois de nos encontrarmos, fiz algumas compras no mercado e na loja de sementes. Precisava de algumas sementes para a horta e outras coisas. Voltei para casa e almocei, assistindo tv. Sua péssima transmissão, o chiado e o programa estúpido que passava. Foi o melhor que consegui achar. À tarde comecei a cuidar da horta. Tudo estava crescendo como o esperado, mesmo no outono, e eram tão bons quanto de papai. Eu nunca teria a habilidade que ele tinha para plantar – habilidade de anos de trabalho –, mas fazia o meu melhor e todos que compravam elogiavam.

Olhei para as árvores, em breve suas frutas estariam maduras, e abaixei o olhar para o chão, mexendo na terra com as luvas e um chapéu na cabeça. Pela primeira vez em dias o sol surgia e eu pretendia aproveitar isso. Bati as mãos para tirar a terra das luvas e guardei-as na caixa onde guardava as ferramentas, logo atrás de mim. Quando levantei, segurando a caixa, me virei para ir para casa e vi Yuzo parado em minha direção. Ele estava como antes, porém hoje sem casaco. Me surpreendi, fiquei imóvel. Como ele também não se movia, me aproximei e o convidei para entrar. Deixei a caixa ao lado da porta e fui para a cozinha.

— Quer alguma coisa pra beber? – perguntei.

Ao me virar, vi Yuzo em frente à estante olhando para a foto do meu pai. Ele fitou a carta, lendo meu nome.

— Ele escreveu pra mim. Ainda não li.

— Por quê?

— Não... Tenho coragem de abrir.

Ele voltou-se para a carta, continuando a observá-la.

— Ele falava que você gostava de ler. – disse Yuzo.

— Ele falava sobre mim pra você?

— Sim. Parecia sentir sua falta. Vi uma foto sua quando era menina, então perguntei. Por que não estava...?

Yuzo se interrompeu ao ouvirmos seu estômago roncar. Foi alto e pela forma com que abaixou o olhar, estava constrangido. Quis rir, mas ele ficaria ainda mais envergonhado. Então apenas o convidei para comer. Pus uma tigela de Yakisoba à sua frente ao me sentar ao seu lado e ele a pegou, bebendo-a ao invés de pegar o macarrão e carne com os hashis.

— Ahm... Você não gosta de hashis? – perguntei sem jeito.

Yuzo pôs a tigela na mesa, engolindo a comida e limpando a boca com o braço. Pegou os hashis e começou a comer.

— Se quiser, pode vir comer aqui quando quiser.

— Eu tenho comida.

— Sim, mas...

Ele continuou a comer, me ignorando. Então mudei o assunto. Tateei a mesa, pensando e disse:

— Meu pai me mandou para a casa da minha tia em Tokyo pra fazer o ensino médio. Eu ia voltar quando me formasse, mas consegui passar para a faculdade de Tokyo.

— Você não o visitava muito. Ele sentia falta disso.

Abaixei o olhar, querendo chorar. Eu sabia disso tudo, ele não precisava dizer.

— O que... Vocês faziam quando se viam? – perguntei.

— Ele gostava de pescar. Conversávamos sobre algumas coisas enquanto ele fazia isso. Às vezes andávamos pela floresta. Uma vez ele perguntou que comida eu gostava e depois começou a trazer tortas para comermos juntos.

— Se encontravam sempre?

— Quase toda tarde, mas depois de uns anos eu comecei a vir aqui. Ele não conseguia mais andar tanto na floresta. As subidas íngremes e as decidas escorregadias.

— Toda tarde? Você não ia à escola?

— Larguei a escola aos doze anos.

Arregalei os olhos, boquiaberta, porém abaixei o olhar. Se dissesse algo provavelmente o faria parar de falar. E ele estava me surpreendendo ao falar tanto.

— Com certeza ele gostava quando você o visitava. – disse, olhando-o.

— Foi quando vi sua foto e a foto da esposa dele ali. – ele apontou para a estante – Toshihiko disse que teve uma filha quando estava mais velho, e na foto você tinha dez anos. Depois disso ele quase todo o tempo falava sobre você. E como planejava fazer uma surpresa.

— Hum. – concordei – Ele ia para minha formatura.

Levantei caminhando sei lá para onde pela casa. Apenas queria pedir desculpas ao meu pai por não tê-lo visitado mais vezes. Parei e cruzei os braços, me virando para olhar Yuzo. Vi seus cabelos longos passando dos ombros. Me aproximei enquanto ele comia e peguei em uma mecha.

— Se quiser eu posso cortar seu cabelo.

Yuzo segurou repentinamente meu pulso e rosnou ao me olhar seriamente, fazendo com que eu soltasse seu cabelo. Arregalei os olhos e recuei. Ele realmente rosnou para mim, como um animal. Segurei meu pulso contra o peito, amedrontada. Ele levantou e saiu de forma abrupta.

Essa foi a coisa mais estranha que aconteceu. Não fazia ideia de como ele havia rosnado ou como tinha essa capacidade. E por que? O cabelo dele era tão importante? Fiquei com medo.