Meu amado é um lobisomem

Capítulo 1: De volta ao lar


Pensamos muitas vezes que nossa vida pode mudar a qualquer momento. Seja por um acidente ou por algo muito bom. Ela apenas muda num estalar de dedos. E foi assim pra mim. Repentinamente, assustadoramente... E a melhor coisa que me aconteceu na vida. Mas apenas aconteceu quando me formei na faculdade aos 23 anos.

Com dezesseis anos me mudei para Tokyo, para a casa da minha tia Mizuki ao entrar no ensino médio. Mamãe falecera quando eu tinha dez anos. Ela me teve já em idade avançada, então quando ficou doente as complicações realmente foram complicadas. Papai teve trabalho em me criar. Ele vivia de sua horta e me ensinou tudo o que eu sei. Eu o ajudava na venda dos vegetais e legumes de nossa horta e das frutas de nossas árvores. Porém meu pai achou que o melhor a se fazer fora ter me mandado para morar com minha tia, sua irmã. Ela morava em Tokyo e suas filhas poderiam me fazer companhia. E foi realmente ótimo.

Eu morava em uma pequena cidade em Okayama, em Chugoku. Era distante e rodeada pela floresta. Foi ótimo crescer naquele lugar, porém era pequena e afastada de tudo e todos. De nossa casa, a mais distante da cidade, eu precisava andar um quilômetro e meio até o ponto do ônibus e pegar o ônibus para uma viagem de vinte minutos. Diziam na cidade que meu pai era selvagem porque nossa casa praticamente entrava na floresta. Um terreno não muito grande envolto pelas árvores e logo atrás a floresta e montanhas. Bobagem!

Quando me formei aos 16 anos, a escola do ensino médio seria bem mais distante. Ao contrário de Tokyo, onde eu pegava apenas um trem com minhas primas. Após me mudar, todos os fins de semana eu ligava para meu pai, dizendo como tudo caminhava bem. Consegui amigos, minhas notas eram ótimas e eu amava aquele colégio. Papai não tinha telefone em casa, era distante demais para a instalação e mesmo podendo tentar instalar algum, ele não queria. Com isso, ele precisava caminhar até nossa vizinha, senhora Kei, que morava próximo ao ponto do ônibus. A senhora Mitsuko Kei era agradável e foi amiga de infância da minha mãe. Todas as tardes ela caminhava até nossa casa para tomar chá com meu pai. Desde a morte de minha mãe, ele não convivia muito como outras pessoas. Era apenas a horta, vendas, caminhadas solitárias pela trilha da floresta e eu. Quando me fui, senhora Kei ajudou para que ele não ficasse sozinho.

Me formei com notas excelentes e consegui ir para a Faculdade Agrícola de Tokyo. Cursei Agricultura por quatro anos, visitando meu pai nos verões e natal. Ele parecia envelhecer mais a cada visita que eu fazia. Meu pai tinha 60 anos quando nasci. Ele se casou com minha mãe aos 40 anos, ela tinha 25 anos e já havia sido casada uma vez, mas dissera que o homem não queria ter filhos. Por outro lado, papai deseja ter muitos filhos, porém minha mãe teve dificuldade em realizar o sonho dele e o seu próprio. Apenas vinte anos depois ela engravidou. Os dois achavam que nunca teriam filhos, porém eu nasci e mamãe dizia sempre quando eu era pequena que fui o melhor presente que ela ganhara.

Quando me formei no curso de Agricultura, esperei que meu pai viesse me fazer uma surpresa, mas ele não veio. Recebi uma proposta de emprego em Kansai, porém não pude ir. Me ligaram enquanto fazia as malas em meu dormitório dizendo que papai falecera. Fui para casa e o enterro fez eu me sentir horrível. Perdi meu pai, nunca mais o veria. Senhor Kei me disse que as malas dele estavam separadas e a passagem de avião para Tokyo sobre elas. Me emocionei, mas fiquei destruída por dentro. Papai tinha 83 anos e eu planejava fazer uma festa para ele quando voltasse. Teria um mês até começar a trabalhar, porém a empresa me deu mais tempo para meu luto e para arranjar tudo em casa. Voltei para Tokyo e arrumei todas as minhas coisas.

Então estava voltando para casa, a pequena cidade de Okayama. O táxi me levara até em casa com dificuldade, a estrada era de terra e tinha alguns buracos. Puxei a mala de rodinhas e levava uma grande mochila nas costas, observando minha casa enquanto passava pelo caminho entre as árvores. Era grande, comprida, de madeira e japonesa. Diferente do apartamento da minha tia, que era menor e compacto. Subi os quatro degraus de pedra com a mala e observei a entrada rapidamente, pegando a chave em meu bolso para abrir a porta. Empurrei a porta dupla para os lados, entrando e acolhendo a nostalgia. Tudo estava como sempre esteve, ele não mudara nada. Como fiquei na casa de senhora Kei para o enterro e velório, não vim para a minha casa.

A pequena estante com a foto da mamãe ainda estava no mesmo lugar, como a arrumação da cozinha e a mesa. O grande cômodo principal de chão de madeira não tinha quase nada, apenas uma baixa mesa de chá e almofadas para se sentar. Senti saudade do sofá da minha tia por um momento. À frente, as portas para a cozinha estavam abertas, mostrando sua estrutura antiga. A pia era de pedras e dentro era feita por mais pedras que brilhavam quando ela estava limpa. À direita havia a entrada para o pequeno corredor que dava para os dois quartos, mas também havia uma porta na cozinha que a ligava ao corredor. Na porta à frente desse atalho era o meu quarto. Empurrei-a para o lado, vendo as cobertas e colchão devidamente dobrados no canto e minha mesa de estudos com meus antigos livros, brinquedos, potes com lápis e canetas, e ursinhos de pelúcia pequeninos. Apoiei-me na parede, suspirando e disse:

— Bem-vinda, Tsuki.

Meu celular tocou repentinamente, o que pensei não ser possível.

— Alô? Alô?

Bufei, irritada pelo sinal horrível e fui para o lado de fora. Caminhando até achar sinal, o que me levou para alguns metros ao longe na estrada de terra. Mina tentava falar comigo, mas o sinal ainda estava um pouco ruim. Ela fora minha amiga na faculdade.

— Alô?

— Tsuki! Tsuki!

— Ah, finalmente. Oi! Consegui sinal.

— Já chegou em casa, né. – ela riu.

— Sim. Tudo está igual, nem parece que fui embora.

— E você está bem?

— Mais ou menos.

— Bem, mas tudo vai se ajeitar. Em breve você vai para Kansai.

— Sim. – me virei para a direção da floresta, ouvi um barulho estranho. Com certeza devia ser o vento.

— Tsuki?

— Oi... Não é nada, escutei um barulho só.

— Ah. E o que você vai fazer agora?

— Acho que vou vender a casa.

— Por quê?

— Quem iria alugar um lugar no fim do mundo? A cidade é longe, acho que alguém gostaria de comprar talvez para revender.

— Mas é a casa dos seus pais.

— Eu sei. – abaixei o olhar – Mas não vou morar aqui, e deixar a casa fechada seria um desperdício. Com certeza alguém vai querer. Eu amei crescer aqui, então outra criança também vai amar.

— Deve ter sido ótimo.

— E foi. – sorri.

Ao longe vi senhora Kei subindo pela estrada, acenando para mim com uma sacola no braço. Acenei de volta e me despedi de Mina, desligando. Pedi para ela entrar e troquei rapidamente minha calça e camisa por uma saia até os joelhos, uma blusa e casaco. O outono se aproximava e o calor aos poucos ia embora. Descemos pela estrada, passando por alguns vizinhos e suas casas distantes, e chegamos ao ponto do ônibus. Senhora Kei poderia apenas me esperar ali, mas ela insistiu em ir comigo para ver meu pai. Pegamos o ônibus e fomos para a cidade, para o cemitério. Ao entrarmos as lápides faziam o caminho parecer mais longo do que era. Chegamos à lapide de papai, ao lado da lápide de minha mãe. Li seus nomes e meu rosto entristeceu.

Senhora Kei curvou-se assim como eu, reverenciando-os com respeito. Deixei as flores que comprara na cidade na base da lápide e senhora Kei pôs uma xícara de chá ao lado das flores. Sorriu suavemente e nós os reverenciamos novamente. Permaneci quieta, olhando para as flores.

— Toshihiko teria gostado. – disse senhora Kei.

— Hum. – concordei.

— Ele deixou escapar que estava contente por ver você se formar.

— Gostaria de tê-lo visto lá. Seria ótimo.

— Ele estava orgulhoso, Tsuki. Sempre se orgulhou de você. Ele deixou a casa e a horta para você. Ainda está lá, dando frutos.

— Não posso ficar, senhora Kei. Recebi uma proposta de emprego em Kansai.

— Ah, claro. Mas seria ótimo tê-la por perto novamente.

Sorri.

— Seria sim.

Nossa volta para casa foi mais alegre. Muitas das pessoas que me conheceram quando criança e adolescente ficaram felizes por eu estar de volta. Eu dizia constantemente que ficaria por pouco tempo, apenas para deixar tudo ajeitado para poder ir. Não tinha nada que me prendesse a aquele lugar e estava contente por começar brevemente a trabalhar.

Ao chegarmos à casa da senhora Kei, ela me abraçou e disse mais uma vez como estava contente. Porém disse algo que não compreendi muito bem.

— Tome cuidado na volta para casa.

— Por quê?

— Bem, lembra-se da história que seu pai contava para você não entrar na floresta?

— Do monstro que vivia lá. – achei graça – Mas mesmo assim ele fazia suas caminhadas. Nunca achei justo.

— Era apenas para você não ir sozinha. Mas tome cuidado. Coisas estranhas estão acontecendo aqui.

— Como assim?

— Bem, alguns vizinhos sempre diziam que um menino andava pela floresta.

— Menino?

— Foi há alguns anos. Mas os buchichos continuam desses velhos que não fazem nada dentro de casa além de inventar histórias para assustar crianças. – ela sorriu – Seu pai os calou rapidamente.

— Tudo bem. – ri – Vou tomar cuidado.

Continuei pela estrada e após o quilômetro e meio, cheguei em casa. Caminhei para a entrada desanimada e ao subir os degraus, suspirei. Agora eu estava sozinha.

Fiz o jantar em silêncio, mexendo a colher dentro da panela. Na hora que comi foi pior. Era silencioso, solitário. Era dessa forma que meu pai se sentiu nos últimos sete anos? Era terrível. Acreditava que mudando algumas coisas, tudo melhoraria. E eu mudaria. Planejava tornar a casa o mais atraente possível para a venda.

No mês seguinte, entrando no outono, contratei alguém para mudar toda a rede elétrica da casa. A iluminação ficou bem melhor. Os canos também precisavam ser trocados, e lá se fora mais dinheiro. Capinei a parte da frente, que precisava realmente de uma arrumação e continuei a vender os vegetais e legumes da horta. Isso me ajudou a pagar por todas as outras coisas. Instalei uma pequena televisão no cômodo principal, mesmo não conversando com ninguém em casa poderia ouvir as vozes de outras pessoas. E finalmente tinha telefone em casa! Foi realmente difícil, entendi então por que papai não queria ter esse trabalho. As ligações continuavam ruins e o telefone ficava no único canto onde a fiação permitiu a instalação, mas poderia ligar para quem eu quisesse e não precisava procurar por sinal no lado de fora.

Agora a casa estava pronta para eu colocá-la a venda.

Fui à cidade, na imobiliária. A moça que me atendeu e conversou comigo sobre a casa e o terreno me disse que talvez demorasse a vender pela localização e distância da cidade, mas que esse tipo de casa era bem vista por casais aposentados que querem aproveitar a velhice.

Quando voltei para casa, fui para a horta colher alguns legumes. Estavam maduros e pus todos na cesta. Eu estava ajoelhada quando vi alguém pegando frutas de uma das árvores. Levantei para ver quem era. Era um homem, mas os cabelos passavam dos ombros. Eram pretos azulados e ele estava descalço, usava calça jeans e uma camisa branca.

— Ei! – chamei.

Ele largou a cesta que segurava e correu para a floresta de repente. Não vi seu rosto, ele apenas correu. Corri até a árvore, atravessando a horta, mas o perdi de vista e vi a cesta derrubada no chão. Estava cheia de frutas. Fui até onde ele correu, mas não havia mais rastro de que alguém tenha estado ali. Coloquei as frutas dentro da cesta e levei para perto das outras. Por que alguém roubaria frutas? Não havia índice algum de roubo naquela cidade. Pelo visto as coisas estavam mudando.

Na tarde seguinte, eu voltava para casa com o dinheiro que consegui na venda e as sacolas que usei para levar tudo para a cidade. O trabalho que eu fazia com meu pai não era exatamente fixo. Andávamos e vendíamos de loja em loja e até de casa em casa. As pessoas não precisavam vir até nós, nós íamos até elas. E todos pareceram gostar quando apareci novamente em suas lojas e casas. As moças da peixaria disseram que ficaram felizes por me verem vendendo como quando era criança. E várias pessoas disseram a mesma coisa. Pareciam ter esquecido o que eu havia dito há algumas semanas. Eu não moraria lá, iria embora em breve.

Ao chegar em casa, senhora Kei estava sentada na minha entrada e sorriu ao me ver.

— Pensei que poderíamos tomar um chá.

Sorri e guardei as sacolas dentro de casa. Sentei ao lado da senhora Kei, que pegou o pequeno bule de porcelana e serviu um pouco de chá na xícara a minha frente.

— Então, já pôs a casa à venda?

— Sim. – assenti – No próximo mês vou me mudar para Kansai. Estou vendo alguns apartamentos.

— Sentiremos sua falta, querida.

— Eu também, mas virei visitar quando puder. Apenas fico preocupada com a senhora.

— Ah, eu ficarei bem. Não se preocupe. Quero apenas que me ligue de vez em quando. – sorriu.

— Vou ligar. – sorri.

Depois que senhora Kei foi embora, entrei para preparar o jantar. Ainda era cedo para isso, mas eu não tinha nada mais para fazer. Liguei a tv e fiquei escutando-a enquanto cozinhava o frango. Enquanto mexia a colher na panela comecei a ouvir o chiado na televisão. Me virei e vi que estava fora do ar. Bati algumas vezes nela, mas não adiantava. Peguei o telefone no canto e fiz uma ligação.

— Ahm, oi... Minha televisão ficou fora do ar. Ah, em todas as casas? Tudo bem, vou esperar até amanhã.

O clima estava mudando repentinamente, e quando isso acontecia tudo saía do ar. Principalmente aparelhos de casas distantes. Fiquei do lado de fora quando terminei de cozinhar. Tudo ficou pronto, mas fiquei sem fome. Queria meu pai comigo. Havia planejado todo o mês que teria antes de começar o trabalho com almoços e jantares com meu pai, idas à cidade para tomarmos sorvete como quando minha mãe estava viva e caminhar com ele pela floresta. Ele conhecia bem aquele lugar. Papai levava até uma cesta para comer durante seu passeio. O que eu nunca entendi.

Esse seria o horário que ele iria caminhar. Sempre após o almoço e antes do jantar. Peguei um casaco e fui até a estrada, caminhando para o lado oposto que sempre ia. Fui em direção à floresta e entrei pela trilha. As árvores eram altas e tinham muitas folhas. Tudo era verde e eu amava isso, não se via tanto verde quanto aqui na cidade. Vi alguns animais e até uma raposa assustada no caminho, porém distante. Me sentei em uma tora que acabara de ver há alguns metros. Escutava alguns pássaros e sentia o vento passar por mim, movimentando meu longo cabelo castanho.

O tempo mudou rapidamente. O vento começou a soprar mais forte, a luz do sol foi coberta por nuvens escuras e a chuva começou a cair. Era fraca, mas estava chovendo. Fechei o casaco e voltei para a trilha, caminhando de volta para a casa. Não havia percebido que tinha andado tanto. O caminho parecia mais longo e a chuva começou a ser tempestade. As árvores pequenas balançavam-se até caírem, as enormes apenas balançavam, mas faziam com que eu ficasse apavorada com a possibilidade de caírem sobre mim. Me apressei, mas a trilha virou lama e começou a prender meus tênis no decorrer em que eu andava. Olhei para meus pés sujos e não vi a árvore caindo. Me assustei e recuei, desequilibrando e caindo no barranco que tinha ao lado daquela parte da trilha. Escorregava sem parar na terra, que estava lamacenta e me sujando como nunca havia me sujado na vida. Tentei me segurar em um galho, numa pequena árvore, mas ela se soltou e caiu junto comigo. Cheguei ao chão com brutalidade, desmaiando ao bater a cabeça. Enquanto perdia a consciência, via a chuva pingar em meu rosto.

Quando acordei, estava em casa. Minha cabeça doía, eu estava no cômodo principal de casa. Vi as colunas de madeira de sustentação e o piso de madeira debaixo do meu corpo sujo de lama. A porta da entrada estava aberta e vi a chuva do lado de fora. Me sentei, lembrando de que havia caído na floresta e perdido a consciência. Como havia voltado para casa? Ou melhor... Quem me trouxe para casa?