Morpheu observa a mão onde Astaroth havia apoiado o rosto, e ainda parece estar errado, por vezes ele tem flashes, mas não sabia mais se eram suas memórias, por vezes tinha uma imagem, por outras um pensamento, por outras alguma sensação.

Klaus estava sentado no canto do quarto, numa cadeira, incapaz de encarar os mortos da outra sala, depois de salvar os poucos sobreviventes.

Entre as perdas havia Giovanni.

E o doutor sentia as mãos tremerem com a impotência em mudar aquilo que a morte havia cravado em pedra.

– Eu sinto muito... sinto tanto... Perdão... – ele repetia baixo, olhando as próprias mãos com desgosto, tudo ao redor empestado com o cheiro de sangue, de carne e ossos. – Eu devia ter dito, devia ter avisado...

– A morte é inevitável... – Morpheu diz, monótono. – É uma data pregada no relógio... É o propósito e a motivação daquilo que existe... a certeza de algum dia deixar de ser.

Klaus o olha do canto da sala, olhos consternados, manchados de novo.

Mas os olhos que o encaravam de volta permaneciam limpos.

– Tenho pensado nessa frase nas últimas horas... – ele diz, olhando na direção do doutor, piscando devagar. – Ganhei alguns flashes também... Muitos vidros, uma floresta, um rio, seringas e pequenos tubos de plástico... Acho que estou enlouquecendo doutor... Tem um gosto estranho quando eu digo... “Doutor”.

– Morpheu... – ele levanta, atravessando a sala, parando ao lado do sofá pequeno e puído onde o comandante está, ajoelhando-se ao lado dele, apoiando no braço do sofá, enterrando o rosto nos braços. – Eu não aguento... Preciso de você...

– Não... diga isso... – ele diz, as palavras escorrendo como se estivesse lendo um roteiro.

– Eu não sei o que fazer... Não posso ser forte sozinho... Não posso... Perdão...

– Ninguém pode ser forte sozinho... Mas você pode fingir muito bem. – ele toma uma das mãos do doutor, brincando com os dedos dele por alguns segundos antes de entrelaçar suas mãos juntas. – Doutor... tem algo me incomodando... me pareceu... adequado, é o que eu... devia fazer. – ele diz, puxando o doutor por cima do braço do sofá, atando-o num abraço.

– Morpheu... – Klaus responde, involuntariamente relaxando mesmo diante da surpresa.

– Doutor... Se eu dissesse que te amo... O que você faria? – ele diz, os olhos ainda vagos em algum ponto além da janela, a mente não trabalhava junto com as palavras.

– Diria que te amo também... Mas que isso não é mais o bastante... Comandante.

– Comandante... – ele repete, devagar. – Vamos morrer, não vamos?

– Muito provavelmente. – ele diz, com o rosto apoiado no espaço entre o ombro e o pescoço do comandante.

– Parece um prospecto interessante.

– Para algum que não morre, é ainda mais.

Minutos de silêncio se espalham pela sala vazia, entre eles, apenas o som constante de Morpheu respirando.

– Você... podia usar o Livro de Solomon... – ele menciona devagar, o cenho um tanto fanzido.

– Como sabe sobre o Livro de Solomon? – ele pergunta, imediatamente olhando Morpheu nos olhos.

– Eu não sei... Acho que já ouvi falar, não sei... Pensei nisso aleatoriamente.

– Você não pode saber sobre o livro, porque você não é um naith, é um livro destinado aos médicos do norte, nem Kubrik sabe sobre ele.

– Quem é Kubrik...?

– Esqueça isso. – ele suspira. – Mas é uma ideia fantástica...

~*~

Alloces permanece sentado num dos rochedos cobertos de neve, brincando com a ponta da trança frouxa que tinha entre os dedos, Gremory mantinha-se sentado alguns metros acima, e nenhuma palavra havia sido trocada entre eles desde a partida de Andras.

“Ainda está zangado.”

“Excelente percepção do óbvio, Alloces.” – ele responde, resistindo ao desejo interno de dizer algo mais.

“Você vai me perdoar... eventualmente.”

“Alloces se você continuasse em silêncio, isso aconteceria mais rápido, sabia?”

“Provavelmente. Mas por que está tão irritado? Eu não fiz nada.” – ele pergunta, olhando na direção genérica de onde ele imaginava que Gremory estivesse, pelo som de pulsação.

“Precisamente. Sua passividade é quase tão irritante quanto sua mania de se arrastar por Astaroth.”

“Eu não sou o único.”

“Você e Dantalion são ridículos, estão ambos se hostilizando por um monstro que nem ao menos se da conta da existência de vocês como mais do que um passatempo. Sabe quem é o único nos olhos de Astaroth... posso não me lembrar dele, mas você se lembra, e sabe que não pode competir com isso.”

Alloces suspira, colocando ambas as mãos apoiadas nos joelhos, deixando que seus olhos caiam novamente na altura do horizonte.

“Eu não estou pedindo que ele sinta nada.”

“Está traindo Aleister, sabia? Foi ele que te deu a venda, Astaroth me disse... Isso é vulgar até pra você, Alloces.”

“Do que está falando, Gremory? Você nem ao mesmo se lembra dele! Não se atreva a menciona-lo como se tivesse qualquer direito de fazê-lo.”

“Como disse, ambos são ridículos.” – Gremory diz, descendo da árvore, um sorriso de deboche nos lábios.

“Nada te força a continuar ao meu lado Gremory, se quiser, vá.” ­– havia um pouco a mais de raiva no tom de Alloces.

“Eu nunca estive ao seu lado, Alloces. Estou esperando para te assistir cair.” ­– ele diz, dando as costas antes de partir.

Alloces fecha ambos as mãos em punho, mordendo o lábio com raiva.

Havia algo que impedia Alloces de ver seu próprio futuro... E Gremory sabia disso.

“Cretino...”

~*~

A sensação de estar sendo observado era um acaso quase que eterno, depois de saírem da cabana onde estavam para uma das pequenas cabanas que cercavam aquela que ficava no centro, Morpheu e o doutor silenciosamente discutiam um plano que tornasse plausível a leitura do livro de Solomon.

Mas antes disso, precisavam descobrir onde na Ilha Capital estaria o local onde eles mantinham Aleister preso, e então juntar alguns amigos dispostos a cometer alta-traição.

No caso de Morpheu, provavelmente alguns.

Afinal os Corcéis não permitiriam a invasão da Ilha Capital.

– Doutor.

– Hm? – Klaus levanta os olhos dos pequenos amontoados de papel que tinha nas mãos, enquanto Morpheu tinha algo como uma xícara de café nas mãos, encarando o seu interior com insistência.

– Você disse... que nos conhecemos, certo? – ele tira os olhos da xícara, como se o gosto fosse familiar, mesmo que não conseguisse identificar de onde.

– Morpheu acho que agora não é a hora para-

– Você disse. – ele interrompe, colocando a xícara na mesa, e rodando-a sobre a madeira lisa como se tentasse recobrar as sensações juntamente com alguma memória, sem muito sucesso. – Recentemente tenho tido sonhos doutor, sonhos sobre uma guerra da qual eu não me lembro de ter participado... Sonhos sobre mortos, e soldados, e monstros em armaduras de aço, e chiados metálicos e tiros... Mas por mais que eu tente eu não consigo me forçar a lembrar de tudo isso... Comandante Morpheu, Comandante Morpheu, Comandante Morpheu... Eu ouço essas palavras em tantos contextos... – ele suspira, apoiando o rosto numa das mãos. – Eu não consigo me lembrar... Do rosto dessas pessoas... Eu não consigo lembrar porque ou como elas morreram...

Morpheu para, levantando os olhos manchados de um desgosto sincero e atormentado, cheios de uma dor destilada e efervescente que parece estar colocando-o num precipício de culpa tão profundo que ele não consegue definir até onde ele vai.

– Eu realmente... Mandei todos esses homens pra morrer? Se eu fiz isso... Porque? Como eu me justificava para continuar minha vida? Como eu fazia pra... Aceitar todo o sangue que eu desperdicei... Como eu me confortava? Porque eu tenho tantas vozes, tantos nomes e eu não consigo... lembrar dos rostos deles, Klaus... Quem vai honrar as mortes desses homens se eu não posso... lembrar quem eles eram...?

Os olhos do comandante permaneciam pesados com lágrimas, ele olhava na direção do doutor como se estivesse fazendo um esforço enorme para tentar lembrar tudo aquilo que ele tinha perdido, mas as informações evaporavam, de novo, e de novo, e de novo, e de novo...

Klaus não tinha se dado conta do quanto ele estava tentando até aquele momento.

Parece que Morpheu sempre manteve tudo para si.

Desde sempre.

– Morpheu...

– Já te ouvi dizer meu nome tantas vezes... Mas sei que houveram tantas outras que eu não consigo... Eu olho pra você e tenho essa sensação de que te conheço... Sinto isso quando te ouço falar, mas... Eu não me lembro quem você é... Eu não tenho história... Eu não sei mais que tipo de homem eu sou.

Klaus levanta, dando a volta na mesa para abraçar o comandante.

– Seu nome é Morpheu, você é meu comandante, e você vive em função de salvar mais pessoas do que você perdeu. – ele diz, inclinado sobre a cadeira onde Morpheu estava sentado. – Eu sei que é um pedido egoísta, mas, por favor, não chore... Se você chorar eu não... – as mãos dele tremem nas costas e no cabelo do comandante, ele não consegue ver o rosto do doutor apoiado em seus ombros. – Eu não tenho coração e meu sangue não flui, estou preso às leis de uma sociedade que me despreza e outra que me odeia, não tenho escolha além de seguir o destino que me foi dado no meu nascimento e viver para salvar os outros... Mas eu jogaria isso tudo no fogo se você pedisse... – as mãos dele tremem, geladas, enquanto os dedos dele se fecham no tecido da camisa do comandante, como que tentando impedi-lo de sumir. – Eu não consigo mais te alcançar, eu não sei o que fazer... Por isso se você chorar eu não... eu não sei se posso aguentar outra decepção na minha vida, Morpheu...

– Perdão... Perdão, doutor. – ele diz, puxando o doutor mais pra perto, desenhando círculos nas costas dele com uma das mãos.

Ele na verdade tremia por inteiro.

A sala caiu em silêncio.

– Camomila e erva doce...

– O que?

– Você... Cheira como camomila e erma doce. – ele diz, aspirando de leve o perfume que vinha da pele gelada do doutor. – As vezes eu me pergunto se você realmente está vivo...

– Eu também...