“Eu o chamei, na verdade.”

Gremory olha na direção genérica de Alloces, um dos olhos coberto pelo tapa-olho de couro velho, o cabelo solto numa desordem animalesca, o cabelo curto e repicado de alguma cor suja como marrom e bege, entre mechas mais escuras e mais claras, tinha olhos amendoados, isso é, se não tivesse perdido um dos olhos tempos atrás, numa aposta com Astaroth.

As vezes a mania de Alloces em prever o que diria antes que o fizesse o confundia, mas sempre se provava conveniente em algum ponto no futuro que Alloces passava tanto tempo olhando para.

“Disse que Andras veio falar com você hoje... O que ele queria?”

A frase solta de antes de repente foi colocada num contexto, e com isso ele imenda quase que em sequencia.

“Pra que?”

“Aprecio a companhia dele... Andras é muito agradável, assim como Astaroth.”

Gremory sibila uma respiração entre os dentes, a muitos poderia parecer um som hostil, mas Alloces podia compreender o motivo em sua totalidade.

O cabelo de Alloces era quase tão longo quanto o de Astaroth, e permanecia trançado de numa trança frouxa que ele mesmo fazia e desfazia de tempos em tempos. Os olhos sempre vendados com uma faixa preta de tecido grosso de ele havia ganhado há muito, muito tempo, privando seus olhos lavanda pálidos do contato com o presente em beneficio de sua sanidade.

“Sabe que não é prudente manter contato próximo com Astaroth, nem todos são monstros domados como Andras... E mesmo Andras, sabe que gosta dele simplesmente por que te diverte torturar Dantalion enquanto ele especula sobre suas intenções.”

Alloces sorri, o cabelo branco escorrendo por sobre a venda escura, contrastante com sua total falta de cor, as tatuagens escuras gritando sobre a pele desprovidade de tonalidade, visível pelas bordas do suéter puído e da calça rasgada nos joelhos.

“Independente de Dantalion, gosto de Andras, ele é... algo.”

“O mesmo tipo de algo que você vê em Astaroth?”

Alloces olha para cima por alguns segundos, o sorriso congelado em sua expressão, ele fazia quase parte do cenário gelado onde estava sentado.

“Definitivamente não...”

“Algum dia vai me dizer por que decidiu seguí-lo?”

“Você vai saber algum dia...”

Gremory suspira, saindo pela floresta, sumindo e deixando Alloces sozinho, falando com o futuro como ele costumava fazer quando ficava muito tempo só.

“Alloces.”

“Astaroth. Estava te esperando.”

“Tenho certeza que sim.”

“Você ama o mortal, não é...?”

“Não faça perguntas quando você já sabe o que vai ouvir.”

“Se fizesse isso nunca mais lhe perguntaria nada, Astaroth. E ele saiu para a floresta.”

“Espere que eu faça as perguntas antes de responde-las, Alloces.”

“Já tem sua informação. Eu não sou onisciente Astaroth, não sei dizer nada sobre o passado, e o que você quer está lá.”

“Alloces-“

“Minha fidelidade ainda lhe pertence da mesma forma.”

“De ela a Gremory, eu não a quero.”

“Não preciso que aceite minha fidelidade para dá-la a você... No momento certo você precisará dela.”

Astaroth olha para as árvores, cansado daquela conversa, cansado das charadas e metáforas de Alloces.

“Faça o que quiser Alloces, não pense que porque se lembra dele eu confio em você... Ele confiava, eu não.”

“É uma pena ouvir isso, Astaroth.”

~*~

– Porque escolheu ser médico? – Morpheu pergunta, sentado no tapete em frente da lareira, conversando tranquilamente com Klaus que olhava vagamente na direção do fogo, os olhos um tanto desfocados.

– Eu não tive escolha... Nunca tive. – ele responde, passando as unhas de leve na tatuagem que tinha nas costas, sentindo a pele áspera nas marca em arabescos finos, abraçando-se como se para manter seus pedaços juntos.

– Hm... Escolha... Sabe, nasci na Ilha Capital, e morei lá até completar meus dez anos, acho... Mas meus pais eram muito ricos e raramente via qualquer um deles... Então tive uma ideia, e fugi com um carregamento que iria para as Torres, dentro de uma caixa de tecidos que haviam sido julgados impróprios para o uso dos nobres... – ele suspira, olhando a janela com tranquilidade. – Achava que eles iriam me procurar, mas eles nunca perceberam... Na verdade, mesmo na época isso não me incomodou tanto, afinal eu mal os conhecia.

– O que... você fez? – foi ai que se deu conta de que não sabia nada da vida de Morpheu, nem um único detalhe que fosse, sentiu uma pequena pontada de culpa por isso.

– Bem, eu era criança então... Acho que passei alguns dias nas ruas, acho que roubaram minhas abotoaduras e outras peças que podiam valer alguma coisa... Não me lembro muito bem, lembro que encontrei Hildegard, e ela me deixou morar na casa dela, é um bordel sabe. – ele ri, quase que para si mesmo. – Na época era da prima dela, e ela apenas trabalhava lá... Mas ela conseguiu que eu ficasse com tanto que ajudasse com as coisas, eu sabia escrever e sabia matemática básica, mais do que a maioria que morava lá... Então ajudava com isso, depois que cresci comecei a ajudar com a cozinha e o jardim também. – ele diz, fechando os olhos e tentando coletar as memórias da infância e adolescência com cuidado.

Não era a toa que ele parecia ser adequado onde quer que estivesse.

– Depois que completei 14 fui trabalhar no píer, ajudava com a carga que vinha da Ilha Capital, as pessoas de lá eram rudes, mas eram boas pessoas em sua maioria, foi ai que comecei a beber... Aos 17 comecei a fumar também. – ele pausa olhando para o teto como se para averiguar o que estava dizendo. – Isso, 17... Estou entediando você? – ele pergunta com um sorriso divertido, quase constrangido.

– Não! – ele limpa a garganta. – Não... por favor, continue.

– Quando eu fiz 20 a prima de Hildegard morreu e ela assumiu a coisa toda, nessa idade eu tinha uma lista enorme de gente que queria me matar, e outra ainda maior de gente que queria dormir comigo. – ele ri, divertido. – Não vou dizer que não me diverti com a segunda... Ou a primeira. – ele apoia o rosto nas mãos, olhando na direção do doutor para encontra-lo encarando um canto do quarto com certo desgosto. – O assunto de deixa desconfortável...?

– Não, não... Pode... Pode continuar. – ele gesticula vagamente com uma das mãos.

– Acho que mesmo assim, de todos da segunda lista, esteticamente você ainda me impressiona mais. – ele sorri, apoiando o rosto em um dos joelhos.

Klaus volta os olhos novamente na direção dele, e tem uma expressão de surpresa, talvez choque. Morpheu apenas o olha de volta com uma expressão resoluta de tranquilidade, uma certeza sutil que parece preenche-lo por inteiro.

– Não tenho certeza, mas tenho uma certa sensação de segurança com você por perto... Sinto que estou deixando algo escapar... Algo realmente importante. – ele olha para o teto por um instante. - Bem, de toda forma sempre senti que faltava algo, foi ai encontrei Kritx... Que me perguntou... Se eu não... Queria me tornar... Soldado. – ele estreita os olhos devagar.

– Você está bem...?

– Minha cabeça dói... – ele diz, fechando os olhos com força.

Num segundo tudo aconteceu, de repente Astaroth entrava pela porta, arrebentando as dobradiças e lançando pedaços de madeira pelo aposento.

Então haviam soldados com as armas e então todos estavam no chão e então Klaus gritando para que parassem de atirar, ele só atacava quando era hostilizado e então silêncio e respirações elaboradas e aqueles que ainda viviam no chão em meio ao sangue, deles ou de outros.

E Astaroth caminhando pelo aposento, as mãos e os lábios escorrendo e pingando sangue, e limpa a boca no braço, deixando uma trilha vermelha apagada em seu rosto, olhando o doutor de joelhos no chão com Morpheu que tentava recobrar totalmente a estabilidade.

– Astaroth...

Então Astaroth se senta no chão com eles, manchando o tapete cor de creme com sangue, inclinando-se na direção do doutor com um sorriso suave e apaixonado nos lábios.

“Poupei-lhe o trabalho de me procurar... Vim lhe contar sobre Aleister.”