Morpheu não parecia ter notado o sangue no chão da outra sala, ou mesmo Astaroth parado em frente ao doutor com o rosto manchado e as mãos ainda molhadas de sangue, parecia demais até para um homem que não havia feito uma única pergunta sobre onde estava ou quem eram as pessoas ao redor dele em momento algum desde o momento em que despertou. Contudo estava atordoado, e sua cabeça bombeava o sangue como se procurasse uma rachadura por onde escapar... ou estivesse tentando fazer uma.

“Traga uma humano até aqui, naith.”

Klaus olhava na direção de Astaroth mas não se mexia, Astaroth permanecia ajoelhado sobre o tapete, inclinado para frente, com as mãos manchando o tapete e os dedos afundando no material macio que simulava pele.

“Quer que eu vá, então...?”

Klaus se põe de pé, Astaroth o observa com um sorriso, um sorriso que não continha nem maldade nem ódio, um sorriso sincero de agradecimento, que não se estendia aos olhos dele de modo algum, fazendo-o soar falso e artificial.

O doutor se afasta a passos pequenos, caminhando de costas para não perder o comandante de vista, por mais que soubesse que era um esforço fútil.

Se Astaroth o quisesse morto, ele morreria antes que ele pudesse fazer algo.

Suas mãos tremiam.

Morpheu parecia estar passando por sua propria luta com seu cérebro promovendo um colapso, mas voltou seus olhos na direção de Astaroth quando este se aproximou um pouco mais dele, procurando seus olhos entre o cabelo loiro, com as mãos ainda afundadas no tapete, o cabelo escuro espalhado por cima dos ombros e pelo tapete.

– Já nos vimos antes...? – Morpheu pergunta, estendendo uma das mãos na direção de Astaroth no intuito de limpar a mancha vermelha esfregada em seu rosto num rastro apagado, com o cenho franzido como se não soubesse mais dizer.

Astaroth permanece parado, apoiando o rosto na palma de Morpheu como um pequeno animal domestico, silencioso e estático como se esperasse ordens.

Os lábios se movem sem som, mas Morpheu não sabe discernir as palavras que ele enuncia, não parecem ser a língua dele, e não soam como nada que ele se lembre de já ter ouvido.

Ele se move um pouco mais para frente, apoiando a cabeça numa das pernas de Morpheu, que reconhece essa cena como algo familiar, mas muito distante, um sentimento de que já havia visto isso em algum lugar, mas toda vez que a informação se aproximava, ela fugia novamente.

Astaroth tinha o cabelo espalhado pelo tapete, e uma expressão sôfrega nos olhos, quando subitamente se pôs sentado, atando os braços ao redor do pescoço de Morpheu, pendurando-se num abraço, manchando o cabelo do comandante com sangue e afundando o rosto em seu peito como se tivesse intimidade para tanto.

O comandante permanece sem ação, olhando silenciosamente para a parede oposta, como se tentasse identificar de onde vinha o sentimento que as vezes surgia em fagulhas em seu peito.

Mas ele não põe as mãos em Astaroth, algo dentro dele diz que isso não seria bom... Que estava errado, que estava além dos seus limites.

Seu peito se torcia em nós cegos.

Klaus volta a passos pequenos, guiando um dos soldados pelos ombros, sussurrando instruções sobre Astaroth e sua procedência de só matar aquilo que lhe é hostil.

Mesmo assim suas mãos tremem nos ombros do soldado.

O soldado caminha sentando-se trêmulo ao lado de Astaroth e Morpheu, tomando fôlego e olhando na direção do comandante, como se mesmo agora esperasse por ordens.

Os olhos de Klaus e Morpheu se cruzam por entre as mechas escuras de Astaroth.

Sem muito tempo para segundas considerações ele se afasta das mãos de Morpheu, puxando o soldado pelo braço sem muito cuidado, apenas o suficiente para que ele não quebrasse e se distraísse gritando ao invés de servir a sua função.

Astaroth posiciona dois dedos na altura das cordas vocais do soldado, riscando pequenos cortes superficiais na pele com as unhas, fazendo o soldado engolir seco, olhando para o doutor como se esperasse algum tipo de confirmação de que estava tudo bem, sob controle.

O doutor apenas sinaliza com a cabeça para que ele permanecesse parado.

– Aleister... era um de nós. – o soldado se ouve dizer, mas não era ele que elaborava essa frase, ela apenas escorria de seus lábios com sua voz mas pela vontade de outro, suas mãos começam a tremer.

Klaus o olha com dúvida, não por ele usar o soldado para dublar as palavras que ele não podia dizer, mas porque nunca havia ouvido falar de Astaroth ter um par, em todos os livros constava que ele caminhava sozinho, e nada nunca havia atestado o contrario de nenhuma maneira antes.

– Enquanto limpávamos a terra dos bárbaros que originaram o povo do sul... como havíamos sendo mandados... Antes de o naith que nos regia decidir que era demasiado perigoso manter qualquer um de nós vivendo quando tínhamos poder de escolha e mudar a voz da Consciência a seu favor... Eu o seguia. – o soldado enuncia devagar, enquanto Astaroth apoia o rosto no espaço entre seu ombro e pescoço, um dos braços na cintura do soldado de maneira relaxada, tamborilando os dedos da mão livre no ritmo da pulsação acelerada. – O humano cheira vagamente como ele... Não sei se você sabe a extensão plena do que é a Consciência, naith... Provavelmente não. Nenhum de vocês realmente tem, nem mesmo eu tenho, apenas ele tem.

Nesse meio tempo ele olhava vagamente na direção de Morpheu, com um sorriso amável, e uma expressão pensativa, uma nota doce e saudosa em algum lugar dos olhos violeta luminosos.

Klaus não dizia nada, só permanecia silenciosamente olhando de forma apreensiva na direção do comandante, como se temesse constantemente pelo pior.

– Seu comandante me lembra muito dele... – ele pausa, num quase suspiro. – Me tiraram de perto dele... Levaram-no para onde eu não mais consigo sentir a presença dele, ou ouvi-lo pensar... Nada na terra pode matar Aleister... afinal, ele é a Morte.

Morpheu olhava na direção do tapete, e pela expressão que fazia havia muito mais do que ele podia verbalizar se passando em sua mente naquele momento.

– Aleister tem nas pontas dos dedos a essência concentrada daquilo que traz o fim... Quando vi seu comandante eu finalmente entendi... Levaram ele para o único lugar na terra do sul que eu não consigo ver... que eu não posso ir... Cercado por aquele maldito rio vermelho... O único motivo pelo qual o sul ainda vive... A Ilha Capital.

Klaus volta os olhos na direção de Astaroth, como se esperasse que ele estivesse brincando.

– Eu o quero de volta... E vou trair aqueles que me acordaram... Para fazer aqueles que me traíram pagaram...

– O que sugere, Astaroth...?

– Um pacto.