– Muito obrigado por me deixar ficar aqui depois de tanto tempo, Hildegard.

A Madame sorria, apoiando uma das mãos no ombro de Morpheu forçando-se a esticar os braços para faze-lo.

– Não me agradeçam, Morpheu. – ela diz, amável. – Sabem quem te devo muito.

Morpheu abaixa, abraçando-a e levantando a pequena figura da Madame no ar, ela parecia muito menor assim.

Ela emite um pequeno ruído surpreso.

– Meu deus! Me ponham no chão, menino!

Ele ri, rodando-a algumas vezes antes de coloca-la no chão, onde ela treme muito discretamente e tenta firmar os joelhos, apoiada numa das poltronas.

– Não tenho mais idade pram isso, Morpheu... – ela toma fôlego, enquanto circula o sofá para se sentar.

Klaus permanece em silêncio, segurando sua mala e suspirando, lembrando-se que do lado de fora dessa casa ainda estavam em guerra, e a morte e a dor ainda aguardavam em cada canto da Floresta de Pedra.

Assistia lacônico enquanto Kassandra se desatava da cintura de Morpheu, gritando com ele para que não morresse e voltasse para visitar de vez em quando.

– Diga isso ao meu médico. – Morpheu ri, enquanto ela estufa as bochechas como criança, cruzando os braços.

– Nada de morrer, morrer não faz parte do plano, está bem? Vai ficar vivo e nos visitar.

– Entendido, comandante. – ele diz, simulando uma meia continência e bagunçando os cachos vermelhos com os dedos.

Então ela roda nos calcanhares, atando os braços ao redor de Klaus e fazendo com que ele tropece no lugar, apoiando a mala no chão para não machuca-la.

– Hm... Kassandra... – ele mantem os braços flexionados, a uma distância respeitável dela.

– Você... Pode vir também... Você sabe... visitar e tudo mais.

Klaus não consegue ver o rosto dela, mas consegue senti-lo esquentar em seu pescoço, mas apenas permanece em silêncio, não muito certo do que mais poderia dizer.

Mas de qualquer modo ela não o dá tanto tempo, beijando seu rosto e fugindo rapidamente por um dos corredores.

Ele a observa partindo com a mão na marca de batom rosa escuro em seu rosto, os olhos um pouco mais abertos que o costumeiro. Madame Lilipuff repousa uma das mãos em seu ombro, fazendo com que ele se vire para encará-la, arrancado-o para longe de seu estupor pessoal.

– Cuidem bem dele, certo queridom? – ela sorri, amável e maternal. – Ele pode ser difícil, mas é um bom garoto. – ela olha vagamente na direção de Morpheu. – Tomem cuidado.

– Madame...

– Me chame de Hildegard. – ela diz, saindo pelo corredor. – Kassandram! Kassandram, volte aqui!

– Vamos embora! – Morpheu joga sua mala nas costas, genericamente gesticulando a saída aos soldados, caminhando até a porta. – Lafayette e Ferdinand estão esperando nosso retorno na base.

~*~

Klaus permanecia sentado em sua mesa, fazendo pássaros de papel, com a prática das últimas duas semanas de calmaria, ele havia ganhado habilidade suficiente para usar uma das mãos de apoio para a cabeça enquanto a outra virava e dobrava o papel sobre a mesa.

Já era tarde, e apenas Diandra e Karma permaneciam na enfermaria, tediosamente refazendo o inventario pela quarta vez no mês, inventários que passavam pela mão de Klaus com de pouca a nenhuma frequência, já que os enfermeiros haviam aprendido que Klaus não era uma das melhores pessoas para se conversar.

O doutor arranca mais uma folha de papel branco, deixando o ultimo pássaro de papel junto com os outros, na pilha que se acumulava no canto de sua mesa quanto o comandante entra na enfermaria ainda com o cabelo preso e o casaco preto, sinalizando que ainda estava a serviço, e recebendo continências enérgicas de ambos os enfermeiros.

Especialmente Diandra.

Atitude que ele solenemente ignorou com um aceno de mão rápido. Klaus tinha o objetivo de ir até o comandante ao fim do mês jogar todos os pássaros de papel que havia feito sobre a mesa dele e apresenta-los como: “sua contribuição mensal ao trabalho”.

Mas talvez pudesse joga-los no comandante agora.

Parecia uma ideia muito gratificante.

Mas esperaria para ver o que ele queria, encarando-o com monotonia mordaz.

– Posso ajudar, comandante? – Diandra pergunta, caminhando na direção dele com um sorriso no rosto.

Os olhos do doutor se voltam na direção da moça por alguns segundos, seu olhar impassível, então de volta ao pedaço de papel que tinha sobre a mesa, voltando a dobra-lo de modo que se tornasse um pássaro, Morpheu o assistiu dobrar papel por alguns segundos, antes de se virar a moça e sorri amigavelmente.

– Na verdade preciso conversar com o doutor Klaus sobre algumas coisas, porque você e Karma não vão dormir? Já e tarde e amanhã será um dia agitado. – ele oferece amigável.

Ela parece decepcionada mas continua a sorrir, prestando mais uma continência e desejando boa noite em pequenas palavras arrastadas e doces, seguida por Karma que oferece um rápido aceno de cabeça ao comandante, evitando o contato visual, e partindo da enfermaria, lançando um lacônico “boa noite doutor” na direção de Klaus antes de encostar a porta.

Em resposta Klaus não se digna nem ao menos a levantar os olhos das dobraduras que fazia em sua mesa, a cabeça ainda apoiada na mão como se pesasse demais, os olhos parcialmente fechados, baixos e encarando o papel dobrado com o mínimo de interesse e ainda assim muito mais interesse do que tinha por qualquer outra coisa na sala.

Incluindo o comandante.

– Parece contrariado, doutor. – Morpheu comenta, encostando em uma das macas e assistindo-o dobrar papel.

– Oh, você notou? Inacreditável. – o doutor responde, após alguns segundos de silêncio. – Eu não sei porque ainda saio da cama de manhã, acredito que seja meu destino acordar todos os dias para fazer pássaros de papel. – ele diz jogando um deles na direção de Morpheu e levantando da mesa num movimento brusco e fluido. – Coloque na sua mesa para lembrar-se do quão miserável você me fez colocando esse bando de formigas operárias na minha sala, aposto que o pensamento o fará rir durante o dia.

Ele caminha, parando em frente o comandante com uma expressão de desgosto. – O que você quer, Morpheu? – ambas as mãos paradas na cintura.

Morpheu tira as mãos dos bolsos, abaixando e pegando o pássaro de papel e deixando-o sobre a maca onde estava encostado, olhando para o doutor e estendendo ambas as mãos queimadas.

– Decidiu que ser soldado não era o bastante e foi fazer testes químicos com ácido de bateria e limpador de alumínio? - Klaus pergunta, observando rapidamente as mãos queimadas e torcendo o nariz.

– Quase. – ele responde, sorrindo diante do mal-humor gritante estampado na expressão do doutor.

Klau pega os pulsos do comandante cheirando a ferida, tinha um cheiro químico forte, mas nada vindo do norte, era um cheiro desconhecido e abrasivo, e parecia estar queimando a pele do comandante ainda agora.

– Deviam te dar uma medalha por tentativa de suicídio involuntária. – ele comenta, buscando as coisas que precisaria pela sala toda, agora que haviam mudado suas coisas de lugar, já não sabia mais onde ficava nada.

– Na verdade, essa medalha que tenho no peito é por usar-

– Calado. – ele diz, batendo os vidros de iodo e anticéptico sobre a mesa, e saindo em seguida para buscar duas bandejas fundas.

– Perdão. – Morpheu diz, mantendo as mãos caídas na maca, aceitando a dor com naturalidade, e observando pacientemente enquanto Klaus caminhava pela sala, abrindo e fechando gavetas e armários.

Klaus derrama o conteúdo de ambos os vidros nas bandejas, puxando uma mesinha para a frente do comandante, fazendo-a ficar um pouco mais alta com o pedal que tinha em baixo.

– Coloque as mãos ai dentro. – ele indica as bandejas.

Morpheu mergulha as mãos no liquido escuro e de cheiro forte, silvando uma respiração carregada de dor entre os dentes e tencionando os ombros, mas além disso ficou em silêncio.

– Por que pediu que eu fizesse isso? Os outros eram plenamente capazes de fazê-lo. – ele indica com um aceno de mão, tentando achar os lugares de onde tinha tirado os vidros na sala que não mais lhe pertencia. – Muito mais rápido, inclusive.

– Queria que fosse você. – ele responde, simples, olhando as próprias mãos espumando pequenas bolhas brancas em contato contra o anticéptico de cheiro forte.

– Estranhamente sentimental para um homem da sua idade. – ele responde, seco.

– Talvez eu seja. Mas está tudo correndo como o planejado, se continuar assim estaremos prontos em mais alguns meses.

– O que vão fazer? – ele pergunta, lacônico, sem nenhum interesse real.

– Invadir a Torre Vermelha. Pegar o Espelho do Norte.

O som molhado do vidro se despedaçando no chão é a única resposta que Morpheu obteve por alguns segundos, no entanto ele não se vira para encarar a expressão que o observa de trás, ele já sabia qual era.

– Vocês vão... Levar a Consciência...? - sua voz treme ao sair.

– Esse é o plano.

– E fazer o que com ela?

– Provavelmente quebrar.

Silêncio.

Silêncio turvo e denso e pesado.

E então o som do doutor deixando a sala e batendo a porta.

– Perdão, Klaus... – ele suspira, cansado, encarando o teto branco da enfermaria. – Mas é preciso.