Na manhã seguinte, Klaus não deixa seu quarto, nem ao menos faz menção disso, o que não passa desapercebido na enfermaria, os enfermeiros cochicham teorias sobre o que poderia ter acontecido na noite anterior.

Morpheu parece sério durante todo o dia, mas fora isso não diz nada sobre o assunto ou qualquer outro assunto além das preparações para a missão que teriam, mandando cartas e respondendo cartas, caminhando e discutindo com Ferdinand e Lafayette enquanto eles auxiliavam nas preparações e requerimentos que ele precisaria, em conversas em voz baixa que demoravam horas a fio.

Enquanto isso os grandes generais do sul eram chamados para uma única imensa operação que poderia acabar definitivamente com a guerra.

Acabar com 17 anos de guerra que já se arrastava muito mais que o necessário.

Na madrugada daquele dia, após sair de mais um reunião que discutia os procedimentos necessários para a realização de uma operação daquele tamanho, Morpheu marcha pelo corredor até o quarto do doutor, fazia um dia inteiro e ele começava a ficar preocupado.

– Klaus... Eu gostaria que você não me obrigasse a usar minha chave mestra para invadir seus aposentos, isso seria muito rude.

Silêncio.

Morpheu suspira, encostando a testa na porta por alguns segundos antes de puxar o cordão onde carregava o pen-drive com a chave mestre e encaixa-lo no console lateral da porta, que se abre após um pequeno ruído de identificação e uma luz verde.

Klaus está sentado numa cadeira na parede oposta a porta, e não se move ou diz nada quando Morpheu entra em seu quarto, ou quando ele acende a luz, ou quando a porta se fecha automaticamente atrás dele.

Ele não diz nada.

E Morpheu também não vê nada nos olhos dele.

Morpheu se senta na cama em frente a ele, encarando o doutor em silêncio por alguns minutos.

Mas após alguns minutos onde ele olhava o doutor nos olhos e o doutor o encarava de novo, frio e intangível, Morpheu finalmente se manifesta.

– O que quer que eu diga, Klaus? - ele suspira.

– Não quero que diga nada, quero que saia do meu quarto, comandante. – ele indica a porta com o rosto, sem se mover da posição onde está.

– Klaus, não quero que a situação continue assim.

Klaus inclina o corpo para frente, estreitando os olhos num movimento sutil de sua cabeça para a esquerda, cruzando os dedos das mãos juntos.

– Não quer? Interessante você falar sobre não querer coisas quando você está fazendo planos para destruir toda a base da existência do norte. – ele enuncia as palavras baixo, com cuidado, como se estivesse se contendo em fazer ou dizer algo muito, muito mais grave. – Até onde eu sei, pode ser que todos nós pereçamos quando você quebrar aquele espelho... Já pensou nisso? Você ao menos se importa?

– Klaus eu não-

Ele levanta da cadeira, estalando um tapa no rosto do comandante, um tapa pesado que ressoa no interior do quarto.

– Eu confiava em você... Eu me entreguei a você, eu desrespeitei todas as minhas leis por você... E você me traiu.

Morpheu olha para ele com a mão sobre a marca quente em seu rosto, sem dizer muito mais, pondo-se de pé, e encarando o doutor que tinha ambas as mãos fechadas em punho, tremendo, a raiva que ele sentia borbulhava em seus olhos prateados.

O comandante suspira mais uma vez, olhando para o teto e fechando os olhos por alguns segundos antes de olhar nos olhos do médico mais uma vez e dizer:

– Eu não vou te forçar a nada. Quando você decidir de quem é a sua lealdade, venha falar comigo, faça o que quiser depois disso. – a voz é monótona, profissional, mas a mágoa que emana dos olhos do comandante é tão forte que Klaus se obriga a olhar para um dos cantos da sala. – Mas no mínimo entenda: Eu não posso mais assistir a minha gente morrendo por nada, eu simplesmente não posso.

Então ele da meia volta, saindo do quarto sem olhar para trás.

Klaus cai sentado na cadeira, afundando o rosto nas mãos em silêncio, tremendo, com a raiva, o frio, o arrependimento, o medo.

Medo de que?

Sentia-se fraco.

Tão injusto.

Me perdoe.

Eu não...

Ele se encolhe contra o acento da cadeira, soluçando, suprimindo cada uma das lágrimas que vinham, elas não cairiam hoje, não importando o quanto estivesse doendo.

Morpheu...

De quem é a sua lealdade?

Naquela noite não conseguiu dormir.

~*~

Três dias depois do incidente, alguns comandantes do sul se reuniam para discutir os pormenores da operação e o que precisaria ser feito, alguns a titulo de convencimento, outros de explicação, outros apenas por curiosidade.

Aparte disso, Morpheu explicava a situação com calma, o corpo pesado pela falta de sono e pelo estresse, os homens indo e voltando da fronteira, fazendo reconhecimento de terreno, um deles havia morrido na noite anterior, não houve tempo para que retornassem.

Klaus tem andado ocupado remendando e arrancando metade da divisão da boca da morte, e nada mais foi dito entre eles desde então.

Grandes carregamentos de armas, equipamentos e medicamentos chegavam todos os dias, deixando pilhas de papelada burocrática espalhada pela mesa do comandante.

Já fazia algo como uma semana que ele não dormia propriamente.

Ou comia decentemente.

Eram quatro da tarde Morpheu estava do lado de fora, com um cigarro entre os dedos no que parecia ser seu único combustível nos últimos dias. Ele traga o cigarro até a metade, segurando a fumaça por alguns segundos antes de soltar, olhando para a neve que vinha de cima e não sentindo mais a tranquilidade que ela costumava lhe inspirar.

Esse primeiro momento parecia o mais difícil, mas sabia que levariam muito muito mais tempo ainda fazendo com que o projeto se tornasse mais que um projeto.

E quando a ideia fosse aprovada, poderiam parar e respirar.

Mas por enquanto isso não era uma opção.

Mantinha seus olhos focados nesse ponto no futuro ainda assim, para ter ânimo e encarar o momento presente, que parecia determinado em passar por cima dele.

A neve se acumulava em seus ombros e seu cabelo, estava parado a algum tempo, o som de bombas e tiros ecoando em seus ouvidos em algum lugar distante.

Sons que ele havia se habituado a essa altura.

Hoje sairiam para o ponto mais alto de observação que tinham no sul, iria pessoalmente com a incursão, escoltar os desenhistas que fariam os mapas para a Torre Vermelha. Teria ainda de escolher os soldados que iriam com ele até lá, como estarão longe dos portões do sul, a tropa de fuzilamento não seria um problema, e os drones não enxergavam tão bem no escuro.

Em teoria, ficariam bem.

Terminou o cigarro e voltou para dentro, correndo os dedos pelo cabelo que não teve disposição para prender pela manhã.

– Comandante, os homens esperam que você escolha quem sairá com você essa noite.

– Obrigado, soldado.

~*~

Na enfermaria Klaus empurrava Vivaldi para o lado, pegando a agulha de suas mãos e terminando os pontos na perna de um dos soldados, cortando a linha nos dentes.

– Doutor, isso não-

– Calado. Vá pegar gaze e mais algodão. Karma pegue uma compressa de água quente e eu quero uma dose de analgésico e um garrote. Ondê está, Jean? Eu preciso dos torniquetes imediatamente. – ele caminhava entre as macas, apenas estendendo as mãos e dando instruções apressadas enquanto seus ajudantes caminhavam entre os armários e pegavam coisas.

– Pinça, antitetânica e onde está a gaze o algodão, Vivaldi?– ele diz um pouco mais alto, fazendo Vivaldi se atrapalhar com os pacotes de gaze. – Vamos, tem gente sangrando aqui.

Os dias de trabalho haviam dado tempo para que ele se acalmasse, que parasse de odiar tanto.

Mas não iria até o comandante.

Então ele se inclina na direção do peito de um dos soldados, que já havia aguardava para o doutor removesse os fragmentos de aço de seu braço antes que a pomada anestésica perdesse o efeito. Com a pinça em mãos ele suspira, por trás da máscara branca, removendo os pequenos pedaços de aço enquanto o soldado o observava de soslaio, ele e o soldado trocam olharem e o doutor sussurra.

– Amadores.

O soldado ri, parando segundos depois por conta da dor, num gemido sôfrego, sendo repreendido pelo doutor quase que imediatamente.

– Quer sangrar mais? Não tem nada engraçado, sem risadas. – então ele endireita a postura. – Vivaldi!

Vivaldi volta quase no mesmo momento em que Jean volta com os torniquetes.

– Até que enfim! Karma! Quantas doses de analgésico você está fazendo? Esse homem está morrendo. – ele aponta o soldado deitado.

– Eu vou morrer?! – ele pergunta, os olhos arregalados.

– Calado soldado! – ele repreende. - Vamos, Karma! O tempo urge!

– Estou indo, doutor. Estou procurando as compressas de água quente.

– Ah, pelo amor de deus! TODOS PRA FORA! SAIAM! – ele empurra todos os seis para fora, até mesmo os outros dois que não estavam, tecnicamente, fazendo nada, batendo a porta atrás deles.

Então ele suspira, voltando-se na direção das macas e arregaçando as mangas.

– Não tenho tempo pra quem está começando. – ele pega a dose de analgésico. – Morda alguma coisa, soldado. Vai doer bastante.

Do corredor, os seis observam a porta fechada com certa ansiedade.

– Acham que devíamos chamar o comandante? – Karma pergunta.

– Talvez fosse bom... – Vivaldi diz, arrumando o avental branco meio encardido de vermelho.

– Eu vou. – Diandra se oferece.

– Certo. – Karma diz, ainda olhando a porta quando um gemido de dor agoniada vaza por debaixo da porta até o corredor. – Seja rápida, por favor.

Diandra surge correndo pelo corredor, irrompendo no meio da roda de militares onde Morpheu conversava, parecendo ansiosa, puxando a manga do casaco preto de Morpheu e arfando pesadamente, com a outra mão apoiada no joelho, tentando recobrar o fôlego.

– Comandante... Acho que... O doutor Klaus... Enlouqueceu...

– Que? – Morpheu pergunta, dispensando o aglomerado de pessoas com um aceno de mão, virando-se na direção da moça que ainda estava com a mão em seu braço.

– O doutor Klaus... – ela respira fundo. – Colocou a todos nós no corredor e fechou a porta, achamos que ele possa ter enlouquecido.

– Aham... – Morpheu diz, delicadamente tirando a mão dela de seu braço.

– Pode ir até lá? – ela pergunta, inclinando-se um pouco demais na direção do espaço pessoal dele, com a desculpa de estar sem ar.

– Posso, posso sim.

De qualquer modo teria de chama-lo e pedir que ele o acompanhasse na escolta até o ponto de observação nas montanhas, então ele caminha pelo corredor, com Diandra em seu encalço, um pouco mais perto que a boa etiqueta recomenda.

Na porta da enfermaria, os outros cinco permanecem parados no corredor, encarando a porta de maneira ansiosa.

– Que bom que chegou, comandante! – Vivaldi diz, colocando-se a frente dos outros. – Estamos preocupados que ele venha a matar alguém.

– Acho difícil. – Morpheu diz, caminhando na direção da porta.

– Cuidado! – Diandra acena com uma das mãos quando Morpheu toca na maçaneta, e ele suspira em retorno, abrindo a porta.

– Alguém morreu? – ele pergunta, entrando na enfermaria a passos largos.

– Não. – o doutor diz, soltando o torniquete que segurava entre os dentes, enquanto mantinha o ombro deslocado do soldado deitado no lugar com uma mão e uma seringa com a outra. – Mas o anestésico acabou. Se pudesse pedir mais eu ficaria grato.

– Porque expulsou o resto dos enfermeiros? – ele pergunta, sério, cruzando os braços sobre o peito.

Eles não haviam feito contato visual em momento nenhum, e o ar havia ficado mais pesado depois da entrada de Morpheu.

– Por que eles são inúteis e eu trabalho melhor sozinho. – ele diz, aplicando a injeção de liquido rosa e empurrando o ombro deslocado para trás. – Fique parado, soldado.

O soldado apenas reclamou vagamente com a dor, mas não disse mais nada, engolindo o gemido sofrido que faria por conta da presença do comandante, que o observava com atenção.

– Entendi... – Morpheu responde, assistindo vagamente o doutor se movendo pela sala, pegando coisas pelo caminho.

A sala caiu em silêncio enquanto o comandante olhava calmamente na direção dos soldados que subitamente aprenderam a lidar com a dor como se não fosse nada.

Incrível.

– Diandra me disse que achava que você tivesse enlouquecido.

– Eu? Enlouquecido? – ele levanta o tom de voz, amarrando o torniquete ao redor da perna de um dos soldados para parar o sangramento persistente vindo dali. – Loucura é você acreditar que é uma profissional passível de respeito!– ele diz, propositalmente alto para que ela pudesse ouvir do corredor.

Ela entra na sala, apontando o dedo na direção dele.

– Agora escute aqui!

Morpheu da um passo para trás, arqueando as sobrancelhas e dando passagem a moça.

– Não, escute aqui você! – Klaus sai de perto da maca atravessando a sala a passos largos e parando em frente a ela, ela era mais alta por conta dos saltos. - Eu sou médico e tenho trabalho pra fazer, quer ser enfermeira pessoal do comandante vá em frente! Veja se eu ligo! Agora se você atrapalhar meu trabalho eu vou socar tanto essa sua cara cheia de maquiagem que você vai precisar de outra cirurgia plástica!

Morpheu refreia uma risada.

Ela parece ofendida, mas não sabe exatamente o que dizer, então ela levanta uma das mãos no ar e Klaus continua encarando-a como se a desafiasse a fazer o que pretendia e dar a ele um motivo para atirá-la imediatamente da janela.

Mas ela não faz, apenas solta uma barulho frustrado, batendo um dos pés no chão e saindo da sala a passos pesados.

Quase que imediatamente, Klaus retoma o trabalho e o comandante deixa a sala, passando pelos enfermeiros, que depois da deixa de Diandra, haviam partido pelo corredor em direção aos arquivos, buscar os papeis de transferência.