Klaus acorda na durante a madrugada, mas não se move, observando o silêncio do quarto que não era seu e cheirava também como alguém que não era seu.

Não podiam ser mais de quatro da manhã, julgando pela luz na janela, mas sentia-se estranhamente anestesiado, Morpheu tinha as costas no colchão, seu peito subia e descia com o movimento constante de vida entrando e saindo de seus pulmões, o cabelo espalhado pelo travesseiro em desordem agradável.

Tinha ambas as mãos sobre o peito, e respirava baixo, costume que um soldado precisava ter caso não quisesse chamar a atenção dos outros sobre si durante a noite, um soldado que respira muito alto, é um soldado com maior possibilidade de ser morto enquanto dorme.

Mas Klaus não era um soldado.

E tão pouco conseguia entender um soldado.

Ele apenas brincava com o cabelo do comandante pensando na manhã que viria, onde estava pronto para fingir que o dia anterior não passava de um de seus delírios pessoais.

– Não precisa dormir, doutor? – a voz do comandante é baixa e torpe, sonolenta.

Klaus volta seus olhos para cima, afastando as mãos do cabelo.

– Não com tanta freqüência. – responde baixo, apesar de estar totalmente desperto. – Acordei você?

– Acordei pouco depois de você... – ele se vira na direção do doutor novamente, os ossos estalando para se acomodar novamente contra o colchão. – Sente-se melhor?

– Minha conduta foi inadmissível, eu faço questão de pagar os danos que causei-

Morpheu suspira, parando as palavras que se atropelavam para fora da boca do médico, como se precisasse dizer tudo num único fôlego.

– Doutor... – ele sorri, calmo. Sempre calmo. – Isso você deve dizer a Madame, não a mim... Quero saber se sente dor, se precisa de algo... – as palavras vinham devagar, ele piscava devagar, já o tempo, parecia correr ao redor deles.

– Estou... bem...

– Achei que você fosse se partir... Estava preocupado. – ele pausou, fechando os olhos por alguns segundos. – Você fala dormindo... – ele diz, ainda de olhos fechados.

– Eu... O que?

– Fala dormindo. – ele repete, abrindo parcialmente os olhos, parecendo não se importar muito com o fato.

– Eu... Hm... Perdão...

– Você tem um tom de voz agradável quando não está sendo sarcástico... – ele volta a fechar os olhos.

– Hum... Obrigado...

– De nada. – ele busca uma das mãos do doutor, preguiçosamente trançando seus dedos juntos e bocejando, antes de se deixar dormir novamente.

O silencio volta a cercar o ambiente, mas agora Klaus tem um nó no meio da garganta... Mãos... Era a primeira vez que o comandante tocava suas mãos por livre e espontânea vontade, mas preferia não associar isso a nada, sabia que o comandante não compartilhava a crença latente que ele não podia ignorar. Além de estar sob efeito do sono que o tornava menos fechado em suas ações.

Sentia-se ridículo, mas não estava usando suas luvas desde ontem, quando se despiu... Agora, no entanto, com os dedos do comandante entre os seus, e o calor se acumulando na boca de seu estômago, queria gritar, mas nada parecia capaz de escapar sua garganta.

Escondeu o rosto na mão livre, sentindo-se humilhado e infinitamente feliz.

Vulgar...

Tão, tão vulgar.

Quase... Obseceno.

Engoliu seco de repente, e abriu os olhos para encontrar o comandante acordado novamente, olhando pra ele entre os olhos semi-cerrados.

– Está tremendo...Tudo bem?

Ele olhava a mão que segurava, com a mesma expressão plácida de sono de antes.

– Sua cultura tem algo contra isso, não tem? Perdão... – ele solta a mão do doutor, cuja respiração sai quebrada antes que ele se apóie no peito do comandante, constrangido com o tremor em sua própria voz.

– Não! Tudo... Tudo bem, eu apenas... É só que... – seus olhos vão desviando dos do Morpheu, e ele vai se afastando devagar, até a borda da cama.

Um momento de silêncio se estende antes que Morpheu se apóie no cotovelo, levantando da cama de modo que ele olhe a expressão do doutor contra a luz da janela.

– Klaus, olhe pra mim.

– Não posso... – ele afunda rosto na almofada, frustrado, sentindo-se vulgar novamente.

Como se estivesse se aproveitando da ignorância do comandante para seu próprio proveito.

– Não confia em mim? Me acha incapaz de entender?

– Não! – Klaus se põe sentado. – Não, não é isso! - ele olha a expressão do comandante, consternado, procurando qualquer sinal de ofensa, mas não há nada lá.

– Então o que é?

Klaus toma fôlego, olhando o colchão, por alguns segundos, antes de falar.

– Eu... Eu não devia permitir esse contato... É... vulgar, carregado de... segundas intenções...

– Segundas intenções de quem? – ele pergunta esfregando os olhos com uma das mãos, parecendo achar toda a idéia absurda.

– Minhas. – ele emite um gemido frustrado.

– O que? – os olhos de Morpheu agora estão cheios daquela duvida nublada que ele tem quando não sabe se os caminhos naturais de sua mente se aplicam também ao doutor.

– Eu jurei lealdade a você quando beijei sua mão... No Norte isso é um sinal de que eu não me pertenço mais... Sou sua peça... Seu enquanto você me quiser e mesmo depois que você não me quiser mais. Meu orgulho dói, mas eu não me importo. E você sabe porque?

Morpheu nega com a cabeça, em silêncio, a expressão surpresa com a sinceridade do doutor, mas ainda assim não havia rejeição.

– Por que eu quero você. Quero você desesperadamente. Quero tanto que talvez eu te assustasse se você soubesse a intensidade do quanto eu quero. Talvez você tivesse nojo de mim e me mandasse embora, ou me entregasse a corte militar e mesmo assim eu não me importaria porque isso é o quanto eu quero você! – ele agora arfava, humilhado, a verdade era muito mais áspera quando dita em voz alta.

Os olhos azuis de Morpheu estavam consternados, e ele assistia o doutor tremer, sentia que com aquelas palavras ele havia pisado no próprio orgulho de uma forma que o estava ferindo e libertando, simultaneamente.

O comandante não podia dizer que era cego as qualidade que o doutor portava, mas estava muito ocupado acreditando que era odiado para dar espaço ao que sua mente lhe sussurrava eventualmente...

– Klaus...

– Os dias passavam e eu começava a sentir sua falta, falta do seu cheiro de morte, falta do seu sangue quente, falta do calor do seu corpo, falta dos seus olhares gelados, falta do som da sua respiração e do movimento dos seus lábios enquanto você fala... – ele dizia as palavras todas de uma vez, como se assistisse a si mesmo derretendo devagar ao invocar cada uma das memórias contidas em suas palavras. – E eu queria suas mãos pra mim... queria suas mãos em mim, queria seus olhares cáusticos, queria sua boca, sua língua, queria seu tom de voz autoritário. Então te contei toda a verdade e eu te vi me odiar e doía tanto... Mas eu tinha que fazer meu trabalho, porque era isso que você queria que eu fizesse, e o trabalho me distraia de pensar o quanto eu queria que você-

Morpheu cobriu a boca do doutor com a mão, reprimindo um sorriso chocado e divertido.

– Doutor, está me constrangendo... – ele riu, sentindo o calor que subia pelo pescoço.

Klaus engoliu o resto das palavras, que iam ficando cada vez mais comprometedoras e gráficas sobre seus devaneios pessoais.

– Perdão...

– Eu não fazia idéia de que você era tão sexualmente frustrado, doutor...

– Perdão... – ele volta a se encolher, assistindo todo o seu profissionalismo cuidadosamente criado desmoronar ao seu redor.

– Sempre achei que você me odiava. Estou surpreso.

– Eu nunca-

– Shhh. – Morpheu novamente cobre a boca do doutor com uma das mãos, rindo quase que para si mesmo. – Eu entendi... Tudo bem.

– Você não... está zangado...?

O comandante olhava pra ele confuso de novo, como se tivesse perdido algo e não soubesse mais sobre o que estavam falando.

– Por que eu estaria?

– É muito... Inapropriado da minha parte...

Morpheu começa a rir, riso solto e deliberado que relaxa seus ombros e suaviza sua expressão.

– Você me superestima, doutor. – ele sorri, agradável. – Meu trabalho é quase toda a minha vida, mas eu não sou cego, tampouco sou um homem tão correto assim. – ele tem olhos sugestivos, uma sugestão que Klaus não sabe se consegue entender.

Os lábios do doutor se partem para que ele diga algo, mas as palavras se atropelam em sua garganta e ele se mantém em silêncio.

Ao invés disso o comandante o arrasta do canto da cama com um dos braços ao redor de sua cintura, e o doutor se segura em seus ombros para não tropeçar pateticamente nos lençóis.

– Manterei o que disse em mente... E sei onde encontrá-lo. Contudo não posso prometer nada... – ele se aproxima do espaço entre sua orelha e seu pescoço, dizendo baixo o suficiente pra manter a nota quente de segredo. – Afinal nunca tive ninguém do norte antes...

Os olhos cinzentos do doutor estão manchados de uma expectativa passional de que aquilo não fosse uma piada maldosa, então ele somente soltou o ar aprisionado em seus pulmões.

Ambos deitaram de novo, devagar, Klaus havia abandonado ambas as mãos sobre o travesseiro, olhando o teto forrado do quarto enquanto o comandante o olhava de cima com um sorriso, descendo e apoiando o rosto em seu peito, encontrando apenas silêncio ali.

– Vocês do norte não tem pulsação? – era mais uma pergunta retórica do que qualquer outra coisa.

– Não... É um dos motivos pelos quais eu gosto tanto do pulso humano. – ele diz, atando os braços ao redor do comandante no pose inconscientemente possessiva.

– Vocês do norte são todos vampiros. – ele ri, baixo. – Dormem pouco, respiram pouco, comem pouco, não tem pulso, calor corporal... Acho que falam de mais para compensar a falta de todo o resto.

– Humanos com seu corpo quente, necessidade de ar, comida, seus fluidos corporais e coração pulsante... Faz de você pontos brilhantes na paisagem... Achamos vocês pelo cheiro de carne e ossos... Sabemos onde bater, o que cortar, onde rasgar... a falta de escolha para dirigir suas prioridades impede que vocês controlem sua cicatrização, que é lenta demais para uma batalha de campo.

– Me sinto profundamente inferiorizado, sabia?

– Os soldados caçam vocês porque vocês cheiram bem, eles não tem alma então seguem seus impulsos primários e definições genéticas.

– Como funcionam os soldados de vocês...? – ele tem ambas as mãos nos quadris de Klaus, que relaxa sob o toque visivelmente.

– A principio todos nascem iguais, seguindo as escolhas da Consciência... Todos temos uma marca nas costas, que mostra qual será nossa função, que escurece quando atingimos uma certa idade... os soldados nascem iguais a nós, mas quando a marca escurece e se torna visível, eles são mandados para as bordas da cidade... São a base das castas, e ninguém deve falar com eles, soldados só trazem a morte. – ele mexe no cabelo do comandante como se estivesse habituado àquilo, com ele apoiado em seu peito.

Morpheu ouve as palavras sendo enunciadas com calma, como uma parte imutável da sociedade de não era dele.

– Depois disso, eles são treinados por outros soldados, instruídos pela Consciência, mais por observação do que qualquer outra coisa... Com os anos, eles perdem a capacidade de fala.

– Mas eles não se falam entre si? – ele pergunta, a vibração das palavras contra seu peito.

– Não, isso é punido com violência. Os que sobrevivem recebem as armaduras, que são fincadas à carne e à medula, até que ambos se misturem e se tornem uma coisa só... Por conta do peso e da solidão, eles acabam enlouquecendo aos poucos e então perdem as almas, uma escolha voluntária quando o fardo se torna muito grande. O senso de autoproteção se torna irrelevante e eles seguem a vontade da Consciência apenas...

– Isso parece horrível... – a empatia na voz de Morpheu é quase tangível.

– A Consciência não se importa... Ninguém vai salvá-los... É mais conveniente se não tiverem poder de escolha.

– O que é essa Consciência?

– Todos nós somos conectados por um imenso fluxo de pensamentos composto das mentes de todos, e sobre os quais individualmente temos muito pouca influencia. A Consciência é o senso social estruturado daquilo que todos nós sabemos em conjunto. Como um grande banco de dado que armazena o saber de toda a sociedade e equaliza o que precisamos para equilibrar as funções dentro do reinado, descartando e substituindo aquilo que é considerado inapropriado e inapto. Todos os inaptos são julgados e punidos com a morte imediata.

– Vocês são um povo muito cruel... – ele fecha os olhos por alguns instantes, deixando que o quarto fosse preenchido apenas com as palavras do doutor.

– Não somos cruéis, pois isso admitiria que fazemos isso com alguma espécie de emoção atrelada as escolhas feitas pela Consciência, o que não é o caso. Somos frios. A consciência reflete apenas nossas próprias expectativa e escolhas pessoais num nível ampliado. Meu povo precisa de limites estritos, ou com todo o potencial que temos, a sociedade se mudaria em anarquia muito rápido. O livre-arbítrio não é um desejo comum. Nossas castas são divididas de acordo com o quanto de vida e de morte temos em nossas funções.

– Por isso que você está acima de Kubrik?

– Kubrik executa um trabalho meramente burocrático, ele comunica as vontades da Consciência por é o único que fala na mesma língua que ela.

– Calma... A Consciência... Fala?

– A maior parte do tempo, sim...Apenas com os soldados a comunicação é direta. Isso evita que Kubrik modifique as palavras ditas a ele, se ele assim o fizer, ele é morto imediatamente.

– Maneira assustadora de evitar a corrupção.

– Corrupção é sintoma de organismos primitivos.

– Está me ofendendo de novo.

– Você é corrupto?

– Não.

– Então não é a você que estou ofendendo.

– Eu me pergunto o que te motivou a jurar devoção a um organismo primitivo. – ele diz, apreciando a sensação dos dedos do médico em seu cabelo, começando a sentir o sono amortecendo seus braços e pernas.

– Você tem algo que eu nunca vou ter.

– Que seria...?

– Uma supernova de sentimentos passionais, motivação, objetivos... Vocês tem escolha, tem o futuro nas mãos, e queimam suas vidas inteiras vivendo seus objetivos egoístas, motivados apenas por desejo e paixão.

– Parece horrível... – ele ri, sem se mover muito.

– Não é horrível... É vulgar...

Dessa vez o comandante levanta o rosto, sorrindo incrédulo, se perguntando como exatamente isso deveria ser interpretado como algo positivo ou digno de inveja por qualquer um.

– O tipo de vulgaridade que desejei minha vida toda, mas nunca pude ter... Tão perdidos e indiferentes diante da própria falta de controle sobre si mesmos, afogados em seus instintos básicos, meramente animais com faculdades de escolha, absortos em desejos, tão físicos, tão emocionais... É cativante.

– Eu sinceramente não sei dizer se está sendo sarcástico. – ele diz, apoiando o rosto no espaço entre o pescoço e ombro do doutor, aspirando o cheiro que ele não sabia definir, mas se dividia em camomila, erva-doce e limão.

– Não é sarcasmo. – ele diz, inclinando a cabeça de leve para o lado, dando mais espaço para que o comandante explorasse sua pele como julgasse melhor.

– Você realmente é sexualmente frustrado. – ele ri, roçando os lábios de leve pelo pescoço do médico, apenas para senti-lo estremecer embaixo de si.

– Eu nunca neguei isso. – ele suspira, abertamente estremecendo diante do contato.

Ele ouve o comandante rir de novo, beijar o começo da tatuagem que subia pelos ombros, mas desaparecia de novo pela gola da camisa.

– Eu não esperava nada disso.

– Se refere a que exatamente? – ele apóia nos cotovelos, olhando a expressão torpe do médico com certa diversão.

– Você.

– Você me julga sério demais... – ele suspira, inclinando a cabeça para o lado. – Lembre-se que sou apenas um humano vulgar, consumido pelas minhas “paixões”.

– Isso quer dizer que é habito seu fazer esse tipo de coisa?

Morpheu ri pela fraca noção de repúdio na voz do médico.

– Não. Usualmente não rolo na cama com meus subordinados, se é isso que te preocupa.

– Hm... Você e Diandra pareciam próximos... – ele diz, olhando um dos cantos do quarto com uma expressão propositalmente plácida.

– Eu e quem? – ele pergunta, tentando recobrar o nome da memória. – Ah! Diandra... – ele diz, sorrindo com calma. – Ela nasceu na mesma cidade que eu, éramos quase vizinhos.

– Fico feliz que você tenha encontrado amigos de infância, comandante.

– Mentiroso.

Era assustador como Morpheu podia estar em seu espaço pessoal e não parecer deslocado, como se fosse parte daquele espaço, parte de qualquer coisa que ele quisesse ser parte de.

– Morpheu... – estremeceu de leve quando o comandante beijou seus olhos fechados demoradamente.

– Não me dê muita liberdade... Vou acabar tomando você pra mim. – ele diz, sério pela primeira vez desde que acordou.

– É isso que eu quero.

– Será um erro.

– Eu sei.