A manhã começava cedo, com Morpheu sendo tomado pela sensação de que não mais poderia delegar o trabalho, mas ainda assim recusando-se a levantar-se de imediato.

Perguntava-se em que momento da madrugada o doutor havia se levantado, ou se ao menos havia dormido algo mais depois da conversa que tiveram.

Se pôs sentado, e então de pé, estranhando a falta de dor nos músculos, nas costas, nos olhos...

Concluiu que deveria ter ligação com o beijo da noite anterior, e a menção mesmo em sua cabeça, levou um olhar conflituoso ao reflexo que o olhava de volta do espelho.

Isso traria problemas, problemas a todos.

Não queria dizer, com isso, que se arrependesse de coisa alguma, parecia correto na hora... Não queria ver o doutor chorando novamente por sua causa, mas nem todas as suas ações foram motivadas por causas nobres, muito havia sido seu próprio egoísmo, sua própria necessidade de alguma espécie de conforto que o distraísse, mesmo que momentaneamente, de suas responsabilidades, e o peso que elas traziam.

E havia funcionado.

Mas agora tinha aquela sensação de que estava usando os sentimentos tão sinceros de Klaus para justificar sua própria fraqueza, e isso o deixava doente.

Mas não tinha mais como negar de que todas as vezes em que parou sua própria mente em cogitar qualquer tipo de pensamento de qualquer espécie em relação ao doutor, o havia feito de forma equivocada, e agora não tinha mais nada que defendesse o doutor daquilo que o compunha.

O que nem sempre podia dizer que era algo bom, pois ainda era humano, e por mais que escondesse suas fraquezas muito bem, ainda tinha muitas.

E um passado que o fazia lembrar que talvez fizesse tudo isso agora, para expurgar os pecados de outrem.

Não era um homem ruim, e tampouco queria usar o doutor para suas próprias causas, mas algo em relação a ele parecia tão genuinamente necessário, tão profundamente estável e real, que não conseguia se fazer voltar atrás no compromisso que havia firmado no dia anterior.

E estava preocupado.

Poderia ser condenado a Corte Marcial, mas não importava de maneira alguma.

Estava ávido por algo que lhe desse um gosto de conforto.

Conforto que nunca teve, e nunca pode cobrar.

Tudo o que sabia era que estava mais que disposto, solicito até.

Quando olhava o doutor, não podia dizer que se igualava a ele no nível de dedicação sufocante que sentia, principalmente pois a informação era demasiado nova e nunca havia se comprometido com coisa alguma além do trabalho em sua vida.

Suspirou, apoiando na pia do banheiro, encontrando um pequeno pedaço de papel ao lado de sua escova de dentes.

Abriu o papel devagar, sem vontade, encontrando a caligrafia familiar espalhada pela folha.

“Morpheu,

Coma alguma coisa ou vai desmaiar.

Klaus.”

Ele sorri em silêncio, olhando seu reflexo no espelho e encontrando seus olhos cansados, mas não desistentes.

Encantador.

~*~

Kassandra falava animadamente ao lado do doutor, enquanto este segurava uma xícara trincada de porcelana entre os dedos da mão direita, escrevendo o inventário das quatro malas de paramentos médicos que havia trazido na incursão, bebericando seu chá e eventualmente emitindo pequenos sons de entendimento desinteressado nas pausas que Kassandra oferecia para que ele opinasse no assunto.

Ela não parecia se importar e emendava seus assuntos novamente, ou mudava para algum outro, segurando o braço o doutor por alguns segundos no segundo caso, fazendo com que ele tirasse a caneta do papel antes que borrasse.

Nesses momentos ele sempre suspirava, mas não dizia mais nada.

Morpheu emergiu do corredor, inspirando o cheiro de café e relaxando visivelmente, caminhando até a mesa onde Kassandra e o doutor conversavam e pegando uma maça e uma xícara.

– Bom dia, Morpheu! – ela sorri, olhando para cima e encarando o comandante com uma admiração fraternal desinteressada.

– Bom dia Kassandra. – ele diz, correndo os dedos pelas mechas de cabelo vermelho da moça, e mordendo a maça num estalado úmido. – Bom dia, doutor.

– Comandante. – ele responde, lacônico, sem tirar os olhos do trabalho que fazia.

– Tanta dedicação. – ele debocha, circulando a mesa, a fim de encher a xícara com café.

Os olhos do doutor se levantam da folha na direção do comandante, mas ele não diz nada, voltando ao trabalho alguns segundos depois.

– Kassandra, falou com Ferdinand e Lafayette?

– Falei com eles essa madrugada. Lafayette, especialmente, está tendo problemas em controlar a empolgação. Ferdinand disse que já que é um pedido seu, ele pode ajudar.

– Não achei que se lembrariam de mim. – diz, soprando o vapor da xícara de café e encostando-se na parede.

– Você é difícil de esquecer, Morpheu. – Kassandra diz, cruzando os braços e apoiando um dos sapatos na borda da mesa para inclinar a cadeira para trás. – Por uma série de razões.

O doutor não se manifesta em nenhum momento, nem ao menos faz menção disso, apenas escrevendo com constância cadenciada seus relatórios e ocasionalmente mudando as coisas nas malas de lugar.

Morpheu não confirma nem nega nada, entornando quase toda a xícara de café antes de pegar uma torrada e se inclinar sobre a cadeira que Klaus ocupava para ver o que ele fazia.

– Inventário?

É um retórica, ele tem uma das mãos na borda da mesa, dando espaço suficiente para que o doutor escrevesse sem limitar seus movimentos, e a outra no encosto da cadeira, o cabelo preso escorrido sobre um de seus ombros.

– Inventário. – o doutor responde, mudando de folha e de mala.

– Hm... – Morpheu responde, sinceramente desinteressado. – Vamos, Kassandra?

Kassandra se põe de pé num salto, batendo continência de uma forma debochada.

– Sim, comandante!

Morpheu arqueia a sobrancelha, um pequeno sorriso irônico acentuando sua expressão naturalmente autoritária, desencostando da cadeira e saindo pela porta da frente, seguido pela cortesã que parecia ser sua amiga de longa data.

O doutor suspira, molhando a caneta na tinta novamente e voltando a escrever, sentia-se mais em paz agora que havia dito a verdade... Novamente, contudo não sabia mais o que dizer, então havia novamente se resumido ao seu trabalho.

Estava trabalhando, então as horas passavam desordenadamente, escorrendo por seus dedos, e quando ele finalmente termina, a Madame anuncia que é hora do almoço. Aquela área da casa era separada do resto, como se tivesse sido construída depois, ali ficavam a sala de banho, a cozinha, o quarto de Madame Lilipuff e mais uma sala de estar.

Klaus imaginava que aquele lado não era acessível aos clientes, dando um pouco de espaço às moças, e a hospedes como ele.

No meio da manhã o café havia sumido, e o doutor podia jurar que havia ouvido algo sobre “o lado de fora”, apesar de não saber do que se tratava. Ele fecha as malas, liberando a mesa e levando a bagagem até o seu quarto, mantendo-as longe do sol, mas próximas da janela, onde é arejado.

Ele lava as luvas manchadas de tinta de caneta, deixando-as para secar em cima do aquecedor, sentando na borda de sua cama e olhando a neve do lado de fora da janela, prendendo as mãos juntas com os joelhos.

Elas começavam a ficar gastas pelo excesso de uso, mas isso não importava muito.

Mais tarde ele levanta novamente, colocando as luvas quase secas outra vez, rumando pelo corredor observando a movimentação consideravelmente maior, já estava escurecendo, então provavelmente a casa havia se aberto para “negócios” a pouco tempo.

– Oh! Você é novidade!

A voz que o chamou era trôpega, enrolada, cheirava a álcool e Klaus a teria ignorado se não tivesse parado para olhar na direção de seu enunciador.

– O que? – ele quer se fazer certo se aquilo havia sido pra ele.

Contudo, rapidamente o peso daquele desconhecido o prensa contra a parede pelos pulsos e o levanta com um dos joelhos entre suas pernas.

O cheiro de álcool era pior de perto, e o anel exagerado em formar de unha que ele tem ao redor do anelar machuca o pulso direito aprisionado contra o tecido grosseiro que forra os corredores.

– Me solte. – ele diz, sem se mover.

– Oh, mas calma gracinha, nem fiz nada ainda...

O estômago do doutor se retorce como se tentasse escapar de dentro dele quando a trilha molhada de beijos desajeitados começa a ser escorrida pelo seu pescoço, do mesmo lado que o comandante havia feito no dia anterior. As mãos do estranho se trançam por cima das suas, e ele faz um leve movimento com uma das mãos, rasgando o tecido fino da luva preta, obrigando o contato entre suas mãos grosseiras e as do médico.

De respiração atrapalhada, o doutor tenta regular o asco em seu estômago. Mas quando uma das mãos sobe por suas costas, arranhando a extensão da tatuagem que ele carregava nas costas com violência suficiente para romper a pele, um flash vermelho corre os olhos do doutor, e sua mão livre está no pescoço do estranho.

– Não...

E a sensação forte de repulsa corre em suas veias, e desgosto, e asco, e ódio.

Como ele se atreve a manchar o que não é dele?!

– Não, não, não, não, não, NÃO!

Sua voz chama a atenção de algumas passantes, que correm para chamar a Madame do outro lado da casa.

Ele é abandonado no ar, mas seus joelhos impedem que ele caia , ele sente o veneno nas palmas de suas mãos, as pontas dos dedos tornando-se pretas, como se gangrenadas, suas unhas riscam a pele fraca, derramando sangue, deixando o veneno entrar, correndo dentro das vias sanguíneas do homem que havia ousado demais. Vinhas vermelhas cristalizando o sangue nas veias do desconhecido congelando cada uma das pequenas passagens de sangue, desde os olhos até o cérebro, então pelas costas pelos braços, através da medula, pelos pulmões, através dos músculos e para os outros órgãos vitais, tudo para, sangue calcificado, vermelho vivo, saltando para a superfície da pele em raízes escarlate que ameaçaram rasgas a pele fina e fraca, desenhando debaixo de sua pele conforme o veneno se espalhava rápido ao compasso do coração acelerado, que pressentia a morte.

Foi afastado do homem antes que chegasse ao coração, segurado por vários dos homens que estavam na sala, com os olhos fixos no homem caido no chão, nem sabia se ele ainda estava vivo, mas o efeito regrediria aos poucos, deixando apenas as cicatrizes vermelhas, agora que não havia mais o veneno vindo dele para continuar o processo até que ele fosse uma estatua, e pudesse ser quebrado com um cubo de açúcar.

Seus dedos pingando veneno escuro, grosso como piche, que pingava quente no chão, fervilhando contra o carpete em um chiado ácido.

O veneno vindo do norte, e seu cheiro característico de camomila e erva-doce.

– IMUNDO! – ele ainda tentava se soltar, mas não com muito afinco, todos longe de suas mãos, as moças assustadas ao fundo.

– Klaus, Klaus parem! – a Madame chamava por ele, se colocando no campo de visão entre ele e o alvo de seu ódio, vitima de sua punição. – Klaus acabou!

O cheiro de humanidade agora era nauseante, mas no norte não havia meias palavras, se não tivesse o direito de viver, se ferisse um desconhecido, se deixasse o abuso, o ultraje acontecer.

Estava morto.

Nada mais.

Ele ainda sentia o calor das marcas de unhas em suas costas, seu estomago e seu cérebro urgiam para que ele arrancasse todos lugares que havia sido tocado pelo animal imundo que agora jazia largado no chão.

Contudo era um monstro domando...

Então engoliu o gosto amargo em sua boca, parando de lutar contra os que o seguravam, arfando, por desgosto, não cansaço.

– Klaus o que houvem? – Lilipuff acariciava seu rosto de forma zelosa, preocupada mais com o doutor do que com o humano parcialmente vivo no seu tapete.

Foram soltando-o devagar, muitos rostos que Klaus nunca havia visto, tocando nele, marcas de calor estranho estampadas em sua pele gelada, em seu sangue, em suas roupas.

Sentia-se sujo.

Sentia-se usado.

Limpou a saliva quase seca de seu pescoço com nojo, vendo as luvas perdidas pelo chão, parcialmente rasgadas, indubitavelmente manchadas com a imundice do estranho que gostaria de ter matado, não queria mais tocar nelas.

Nunca mais.

Abriu caminho pelo corredor, para longe do todas aquelas mãos, todos aqueles olhos, nauseado, regulando sua própria vontade de terminar o serviço que havia começado.