Dentro do banheiro, Klaus limpava o sangue dos braços, das mãos feridas, da boca, cuspindo sangue preto no ralo da pia, sentindo as lágrimas ardendo nos olhos, o cheiro de sangue que não era dele em suas roupas.

Tinha cheiro de morte.

Ele descarta as roupas. Todas elas.

Sentando-se no chão, parcialmente encharcado pela torneira, escorrendo água e sangue diluído.

Sentia-se sujo.

Sentia-se banal.

Sentia-se pequeno.

Via os hematomas se espalhando por debaixo da pele, e sentia seu corpo lutando para remendar a carne açoitada e as veias castigadas.

Engoliu as lágrimas uma vez mais, arrumando uma calça na gaveta do quarto e se olhando no espelho do banheiro, vendo os lábios inchados e cortados, os hematomas pelo peito.

A tatuagem em suas costas.

Caminhou até o banheiro, jogando o espelho no chão, satisfeito ao ouvi-lo estilhaçando em milhares de fragmentos irreconciliáveis, fazendo o mesmo com a pia, arrancando-a do apoio, atirando-a contra o vidro do box do banheiro, ouvindo a azulejo rachar com o impacto e a porcelana se partir junto com os muitos cacos de vidro temperado.

Sentou no chão, na parede oposta, enquanto a água voava pelo cano da pia com constância furiosa, espirrando água pelo ar, alagando o chão de azulejo. O ralo não dava conta totalmente, e os pedaços de vidro se encharcaram junto com uma porção grande da área interior do aposento.

Ele fecha os olhos, arfando, sentia-se pesado.

Sentia-se cansado.

Esperava que o vidro e a água pudessem limpar a sujeira que ele sentia presa a ele, mas não podiam.

O som da fechadura sendo forçada.

– Vá embora! – ele disse, sentindo a água gelada encharcar o jeans de sua calça.

A água começava a escorrer por debaixo da porta. Por um segundo ele pensa no carpete, mas isso rapidamente passa com o som de vozes dentro do quarto.

Queridom,você está bem? – ela pergunta, mexendo num molho de chaves.

– Ouvimos coisas quebrando, Madame... ele está bem? - as vozes femininas desconhecidas enunciam.

A porta se abre, a água escorre para dentro do quarto.

Ah... O carpete...

– Meu deus! – ela encara o estado do banheiro, procurando Klaus em algum lugar, até encontra-lo sentado no chão próximo a porta.

Ela manobra o vestido magenta, ajoelhando-se ao lado dele, abraçando-o de forma maternal, protetora. Klaus sente os olhos arderem de novo.

– Perdão... – ele murmura, não encontrando nenhuma justificativa que explicasse o estado do banheiro. – Eu pago.

Ela segura o rosto dele entre as mãos, e por mais que o gesto o incomode, ele não consegue se fazer importar, ele apoia o rosto nas mãos magras da Madame, e se permite fechar os olhos enquanto ela tira o cabelo da frente de seus olhos.

– Você está bem queridom? – ela pergunta, os olhos castanhos preocupados.

Klaus não responde, apenas sentindo o pulso humano das mãos em seu rosto, encontrando consolo na humanidade que emana dali mais do que nas palavras de afeto.

Chamem, Morpheu. Agoram!

As vozes são distantes, abafadas, mas ele consegue ouvir passos apressados pelo corredor, seu corpo retraindo os hematomas e as feridas.

A Madame encara as feridas se fechando e os hematomas sumindo com uma expressão de puro assombro, como se presenciasse um milagre, sem tirar as mãos do rosto de Klaus, que assiste tudo como a um filme.

Em segundos, ou minutos, ou mesmo horas, quem sabe... Morpheu surge pela porta, ofegante, e seus olhos vagam pelo estado deplorável do banheiro e então para o doutor sentado no chão, com olhos opacos, tão, tão desfocados que o comandante sente uma fagulha de culpa iniciar todo um incêndio.

– Klaus... – sua voz sai numa única respiração, como se tentasse conter a si mesmo o nome que escapava.

É sua responsabilidade.

A Madame o olha com julgamento pesado nos olhos, segurando o médico no colo, protetora, e os olhos dela fazem com que Morpheu se sinta pior, pois ele sabia que o doutor não havia feito nada que justificasse suas reações, havia jogado seu ódio sobre ele simplesmente por ele ser do Norte.

O gosto amargo da culpa em nós dentro de sua garganta.

Maturidade.

Onde está sua autoridade agora?

Ele ajoelha ao lado dela, pegando o doutor no colo com cuidado, lentamente, como se aguardasse a aprovação dela para fazê-lo, levantando-o da pilha de vidro e água.

Estava gelado, tal como morto, e seu peito se movia em uma sequencia tão fraca e intermitente, que por alguns segundos pensou que ele estivesse mesmo morrendo. Ele pingava água, e não exibia nenhuma reação, de nenhum tipo. A tatuagem era mais grossa, como se não fosse composta do mesmo tipo de pele que o resto do corpo, mas ele só notava isso agora, enquanto o carregava pelo corredor, sentindo a culpa em cada respiração fraca e desistente do médico em seus braços.

Mas pelo menos não estava ferido.

Seus machucados eram de outra ordem.

Ele entra em seu próprio quarto, fechando a porta com um chute, deixando o doutor na cama antes de ir buscar uma toalha, procurando nas gavetas e virando-se para encontra-lo sentado, olhando para o chão.

Ele ajoelha em frente a Klaus, secando seus braços e suas costas com calma metódica. Um longo momento de silêncio se prolifera entre os dois antes que o doutor sussurrasse “me perdoe” entre as respirações, baixo e instável.

Morpheu começava a se preocupar, achar que ele ia se partir.

Klaus levanta uma das mãos, tocando, com a ponta dos dedos, o olho que começava a exibir uma tonalidade escura, ele olhava a ferida com culpa, como se tudo o que o preenchesse fosse arrependimento.

– Suas mãos estão geladas, doutor... – ele disse, segurando a mão trêmula e fria antes que ela se partisse como sentia que aconteceria a qualquer momento.

A toalha estava abandonada ao lado de uma das pernas do doutor, sua calça encharcando o lençol e o colchão.

– Perdão... – Klaus diz, esperando ser perdoado por diversos motivos.

Morpheu o olha com complacência, sorrindo com tristeza, deixando uma de suas mãos no rosto do doutor, que reclina seu rosto na direção do calor familiar, piscando demoradamente, uma, duas vezes, antes de cobrir a mão com a sua própria.

Ele desce da cama, ajoelhando no chão junto com o comandante, enterrando o rosto em seu peito, aspirando profundamente o perfume que ele tinha certeza de que seria sua ruína algum dia.

Que já era sua ruína agora.

Ele trança os dedos na camisa branca que ele havia arruinado, usando-a como alavanca para olhar para cima, naqueles olhos gelados que tinham conquistado toda a sua devoção.

Toda ela.

Poderia se afogar neles, queria se afogar neles.

Inclinou-se mais para cima, e agora podia sentir a respiração quente em seu rosto, mas por mais que quisesse fechar o resto do espaço que havia entre eles, já havia tomado muitas decisões sozinho, então esperou, deixando a palavra final nas mãos dele, compartilhando respirações em silêncio.

Morpheu desceu o rosto devagar, devagar demais, até que os lábios de ambos se encontraram, calmo e apreciativo, a mão em seu rosto descendo até seu pescoço, puxando-o mais para perto, até seu colo, onde Klaus não tardou em atar suas pernas em suas costas.

A realidade era muito mais satisfatória do que qualquer um de seus delírios.

Com os dedos nas mechas loiras do comandante e os braços atados em seus ombros, Klaus começava a sentir o inferno que inúmeras vezes ele clamava em ser arrastado para, e quando as línguas se encontraram e a eletricidade corria líquida em suas veias paradas ele sabia que não tinha se enganado ao escolher aquele humano em específico acima de todos os outros.

Se separaram minutos depois, pois Morpheu precisava de ar, Klaus arfava igualmente, mas isso porque naqueles poucos minutos o gelo de seus ossos havia derretido ele restava apenas, líquido e vulnerável, completamente solicito em derramar-se pelo chão com a mínima indicação.

Por misericórdia, Morpheu não perguntou a motivação da figura encolhida novamente contra seu peito, seu corpo se recusava a se mover, mas sua mente corria em círculos, assolado por sua própria busca de motivos por trás das ações do doutor, a respiração gelada em seu pescoço, trêmula, tinha medo que ele se despedaçasse, por isso nada disse, nem ao menos respirava alto.

Ignorou a mancha molhada de roupas na cama, deitando o doutor sobre a cama novamente, inquieto, tentando se sentar quando Morpheu se afastou da cama em direção ao armário, observava o comandante com olhos que pareciam se envenenar até mesmo com o sutil movimento do peito que subia e descia com a respiração, tão humana, tão morna.

Antes que ele ficasse muito inquieto, o comandante voltou, sentou-se na borda da cama, deixando um suéter de malha na cama ao lado dele.

– Coloque algo seco. – disse, simples, baixo. Tom de voz sugestivo, e não autoritário como aquele que ele normalmente usava.

Se perguntava se ele usava aquele tom com seus amigos, aqueles verdadeiramente próximos, um tom suave, acetinado, que escorria por ele como água e se acumulava na boca de seu estômago, ameaçando derreter os nós preocupadas que esperavam uma retaliação.

Se viu se livrar das roupas, sem quebrar o contato visual, por nenhum outro motivo além do conforto que encontrava naqueles olhos. Então se livrou das peças de tecido pesadas com água, sem se dar ao trabalho de pôr-se de pé, chutando as peças de tecido inútil até o canto da cama, deixando que elas caíssem no chão, alcançando a blusa de malha que havia sido empurrada em sua direção, tateando sem olhar para baixo, com medo de perder as flutuações cuidadosas de humor nos olhos daquele a sua frente.

Depois de se trocar esperava por outras instruções, mas ao invés disso Morpheu suspira, piscando devagar, reclinando-se sobre o travesseiro indicando o espaço ao seu lado com um movimento fraco de cabeça.

Ele deita, apoiando-se nos cotovelos para fazê-lo, sentindo o colchão afundar abaixo de si, olhando os olhos resguardados daquele ao seu lado, de um azul embaçado, próximo o suficiente para sentir as ondas suaves de mormaço que emanam da pele quente e familiar. Sentindo-se suficientemente feliz por enquanto.

Tomou ambas as mãos abandonadas sobre os lençóis nas suas, mantendo-as um pouco mais perto de si, não queria dormir, por mais tentador que parecesse agora.

Apesar das mãos geladas de Klaus embaraçadas nas suas, Morpheu não demora muito a dormir, já era tarde afinal, e eles não havia dormido durante a viagem. O doutor observava o cabelo do comandante escorrendo pelas costas, o inchaço arroxeado do olho que ele havia ferido diminuindo conforme as vantagens de se beijar um naith emergiam à superfície do corpo humano.

Caso precisasse de uma desculpa no dia seguinte, já tinha algo adequado.

As feridas e os hematomas sumindo devagar.

Sentia-se feliz por ser o responsável. De novo, beijou as palmas das mãos do comandante.

Morpheu...

Ele se aproxima devagar, perto o suficiente para ser cercado dos sons baixos da respiração e do martelar constante da pulsação ritmada em seus ouvidos, suspirando baixo, queria derramar todo o afeto inexplicável que ele mesmo havia cultivado por aquele homem sobre ele, e haveria de fazê-lo em breve.

Tem toda a minha fidelidade...

Toda ela...

Tem a mim por inteiro...