A manhã começou cedo, com os sons do comandante se vestindo após o banho, mas não se moveu, Klaus apenas observa o silencioso ritual que ele executava enquanto se vestia, arrumava própria a cama, amarrava o cabelo, amarrava as botas, pegava o casaco e se aproximava com o cheiro fresco de banho recém tomado da cômoda entre as duas camas em busca de seu relógio.

Klaus se põe sentado de uma vez, olhando na direção do comandante, que o direciona um sorriso ameno, ele conseguia quase sentir a menta no hálito do comandante quando ele lhe mencionou um fraco:

– Acordei você?

– Não. – disse, mantendo para si o fato de ter acompanhado sua manhã se desenrolando por completo, desde o momento em que ele havia deixado a cama, era um tanto vergonhoso. – Preciso falar com você, comandante. É importante.

– Diga. Mas seja breve, partiremos logo.

– Não sei o quão breve consigo ser a esse respeito, senhor.

– Pode me falar depois, então? As carruagens não aguardam.

Ele olha os lençóis brancos por alguns segundos antes de responder.

– Posso, sim... – ele levanta de uma vez, rumando ao banheiro para tomar banho, para como sempre, ferver seus problemas de sua pele, e deixando o banheiro apenas quando sua pele começa a reclamar, vestindo-se com aquele ainda presente sentimento cru de pele castigada contra suas roupas e saindo do banheiro, encontrando o comandante olhando pela janela os primeiros flocos de neve do inverno com um sorriso legítimo.

Klaus apenas estremece no lugar.

– Vamos? – ele pergunta ao comandante.

– Vamos, sim.

E com isso ambos partem, a caminho da cidade que Morpheu havia deixado para trás, para a Ilha Capital.

Como o próprio nome sugere, a Ilha Capital era uma ilha, uma enorme ilha localizada no centro do imenso rio vermelho de Liszt composta majoritariamente pelo castelo do rei e pela ultima linha de defesa:

Os Corcéis da Meia-Noite.

Também conhecidos como 99ª divisão.

Sob o comando de Fahrenheit, o 32º comandante das forças especiais em serviço de sua majestade e da terra de Arcellia, o reinado do sul.

E para Morpheu, ele não passava de um porco a serviço da coroa, e merecia ser jogado na floresta de pedra para ser comido vivo pelas cobras de Kubrik.

As cobras-cegas brancas do rei do norte, Kubrik, eram na verdade mais difíceis de lidar que os Drones, eram silenciosas, pequenas, parasitas, e tinham um veneno que tornava homens em fantoches vermelhos. Silvarum, o Norte, era um reinado cheio de coisas inexplicáveis.

Mas agora enquanto atravessavam o rio vermelho de barco tudo parecia irrelevante.

– Muito bem, homens. – Morpheu inicia. – Ficaremos nas mediações próximas ao Liszt, e não quero bagunça, baderna, boemia ou brigas enquanto estivermos aqui. A 99ª é cheia de mauricinhos e filhos de aristocratas. Então não briguem, e se brigarem vençam, e se não vencerem, escondam muito bem ou vão apanhar uma segunda vez. Entendido?

– Sim, comandante! – a continência geral era quase emocionante.

– Separem-se em trios para ocupar as cabanas, aristocratas se impressionam fácil e as mulheres têm problemas com soldados, então só não engravidem ninguém e eu já estarei feliz. - Morpheu parecia conformado com a fato de que haviam coisas que ele não podia parar.

Os homens atravessam o pátio principal com as mochilas nas costas, e as mulheres de vestidos rodados e leques espalham risadinhas e exibem os decotes.

Morpheu olha tudo com desgosto, recordando-se o porque havia deixado a capital.

Klaus o seguia poucos passos atrás, olhando silenciosamente para o pavimento branco e dourado, sem olhar ninguém nos olhos, por ter apenas medo do que veria neles, então ele se direciona apenas a seu objetivo pontual:

As casas de mármore nas margens do Liszt, que são muito mais luxuosas e requintas do que qualquer um deles julgava necessário, mas palavras não são ditas, eles apenas entram, se acomodando na casa onde passariam pouco tempo.

De alguma forma agora não parecia um bom momento para dizer ao comandante a verdade, então ele simplesmente se cala, deixando suas roupas em silêncio dentro do armário desnecessariamente grande e largo.

– Temos de chegar e partir rápido, antes que o Liszt congele, ou ficaremos aqui por alguns meses.

Meses...

Klaus não diz nada, apenas acena com a cabeça e continua dobrando suas roupas.

– Suas roupas são todas pretas, doutor? – o comandante pergunta.

– Creio que sim. – ele responde, lacônico.

– Está de luto para sempre? – ele brinca.

– Não acredito em luto. – a resposta é um tanto crua, mas é real.

– Em que você acredita? – a pergunta agora é mais cautelosa, permeada de uma seriedade um pouco mais densa.

Os olhos do médico saem das roupas que ele dobrava em silêncio para os olhos do comandante, que o estudava com quietude metódica.

– Acredito na vida. E acredito na morte.

Acredito em você.

Ele se resume apenas em pensar, não é hora para isso, não sabia se algum dia haveria uma hora para isso.

– E você, comandante?

O comandante toma fôlego, olhando para o teto por alguns segundos.

– Eu não estou em posição de acreditar em nada... Eu apenas vou lidar... até o dia em que eu não puder mais.

– E quando será esse dia?

– Quando eu morrer.

Ambos permanecem em silêncio, não havia pena, não havia dor, havia apenas verdade.

A verdade crua e violenta e inflexível da existência de tudo que porta a vida.

Você morre.

Em tempos de guerra, essa verdade parecia surgir sempre que eles se esqueciam dela.

O doutor se vira novamente, voltando a guardar as roupas em silêncio, sentindo-se levemente mais pesado, mais preso ao chão, atado a uma realidade que o havia acorrentado à terra.

– Comandante?

– Hm?

– Quem está te esperando quando a guerra acabar? – ele pergunta, fechando a gaveta, olhando para o chão, ainda de costas.

– Meus pesadelos.

É o som da porta do quarto se fechando poucos minutos depois que leva o doutor a se virar outra vez, vendo-se sozinho no ambiente, olhando para o chão de novo, encolhendo-se sobre a cama, sentia-se enforcar pela verdade.

Tão pouco tempo...

~*~

– Quer que eu o acompanhe na reunião com o rei, senhor? – novamente ele se via em frente o comandante, fazendo o nó da gravata, mas dessa vez não havia raiva.

– Não doutor, é desnecessário e burocrático.

– Sim, senhor. – ele diz, terminando o nó e se afastando.

– Está solicito hoje. – ele diz, com uma nota de escárnio.

– É... talvez eu esteja. – ele atravessa o quarto, sentando-se em sua cama, lento, cansado, abatido.

Morpheu atravessa a sala, em silêncio sentando-se na borda da cama do médico, que permanece olhando a parede, taciturno.

– Você está bem?

Silêncio.

– Klaus, olhe pra mim.

Ele vira o corpo sobre a cama, como faz nas noites em que não consegue dormir, e olha para cima, para o rosto do comandante, que deixa a mão em sua testa, sem dizer muito. Em resposta os olhos de Klaus se fecham, ele respira pela boca, mas está gelado.

Sempre gelado.

Aquele conhecido olhar confuso cruza os olhos azuis do comandante e ele parece preocupado, mas também parece viver o próprio conflito, entre perguntar e não ser respondido, e não perguntar e se arrepender depois.

– Estou bem, comandante. Vá. – ele diz, pausado, expulsando as palavras em pequenos grupos desalinhados que escorrem para fora de sua boca a contra gosto, esperando que fosse o bastante para convencer a si mesmo e ao comandante.

– O que está acontecendo?

Ele parece tão preocupado, tão genuinamente confuso com as atitudes do médico que não havia outra alternativa além de perguntar diretamente a ele o que estava havendo.

Dali ele consegue sentir o pulso de sangue correndo pelas mãos de Morpheu, e é enternecedor, e singelo, e cândido, e etéreo.

Vivo, real, tangível.

– Eu não sei... Mas será a minha ruína, de certo.

Morpheu então levanta da cama, caminhando em direção a porta.

– Por favor, descanse. Preciso de você bem.

Pelo bem da operação...

As notas subentendidas rasgavam o momento em pedaços, como areia, que escorria pelos dedos, intáctil, quase como fumaça.

O barulho da porta se fechando.

O silêncio sequencial.

A terrível sensação de vulgaridade.

De egoísmo.

De loucura.

Não havia justificativas para aquilo que o consumia.

Mas resolveria isso.

Resolveria isso o mais breve possível.

~*~

Foi de encontro ao rei, ainda consternado com o desespero que vira nos olhos do médico, e pior se sentia por não entender o que motivava toda essa tormenta, será que o odiava o bastante para que sua presença o estivesse deixando doente?

Era confuso, na carruagem havia se prendido a sua mão como se fosse o único apoio impedindo-o de se afogar, mas sempre que estavam próximos, via uma tormenta fosca se apoderar nos olhos dele, e isso o preocupava.

Queria entender, saber o que acontecia.

Perguntava-se que tipo de inferno ele fazia aflorar na vida do médico, e pedia perdão de qualquer maneira, pois era a única coisa que podia fazer.

– Anunciando a chegada do comandante Morpheu, da 27ª divisão, zona de guerra das florestas de pedra!

– Comandante. Aproxime-se por favor. - o rei gesticula com uma das mãos enluvadas.

– Vossa majestade. – ele se aproxima, apoiando-se em um dos joelhos, olhando o tapete com desinteresse latente.

A forma como a Ilha Capital havia parado no tempo o deixava profunda e deliberadamente incomodado, mas nada poderia ser dito, pois nada lhe foi perguntado.

– Levante-se, comandante. Diga-me, a que devo sua visita.

Os trajes de gala, os vestidos armados e as roupas renascentistas tomavam muito da visão, e Morpheu se recusava a tomar ciência daquilo mais do que o obrigatório.

– Majestade, peço sua benção para começar uma missão nas Torres, preciso de ajuda pra um trabalho importante na fronteira, e creio que eles sejam justamente o que eu preciso.

– Nas Torres, comandante? – o rei parece genuinamente surpreso.

O rei se vestia inteiramente em um vermelho ácido, e usava uma mascara branca que cobria todo o seu rosto e seus olhos, parecendo-se muito com uma estátua, o rosto do rei não deve ser visto. Seu cabelo castanho escuro se espalhava pelas costas em uma ordem milimetricamente organizada, e pela voz, parecia jovem e incerto.

– Sim, majestade.

Fahrenheit permanecia apoiado em sua espada, ao lado do rei, e olhava para baixo na direção de Morpheu com um ar de superioridade que parecia mais do que despótico.

– Muito bem... quem serão seus acompanhantes?

– Eles já vieram comigo, vossa majestade. Se tiver sua palavra, partiremos daqui diretamente para as Torres.

– Eu não vejo porque não... - ele faz uma pausa hesitante, procurando segurança em suas próprias palavras. - Avisarei a Armen Noir de sua missão, comandante.

– Eu agradeço imensamente. – Morpheu diz, sorrindo e se colocando de pé novamente, curvando-se antes de sair pelo portão principal.

Sabia que teria de ficar pelo menos durante a festa desta noite como sinal de boa fé, e a perspectiva das bebidas da realeza o embrulharam o estômago, contudo era preciso se ele queria garantir o sucesso da tarefa que teriam nas Torres.

Estava burlando hierarquias, e sabia disso.

Provavelmente teria de suportar as cartas indignadas da Armen Noir perguntando como ele ousava passar por cima das palavras deles daquele modo e ir falar com o rei.

Blá, blá...

Morpheu nunca fora muito afeiçoado a regras, e certamente não começaria a ser agora. Ele entra no quarto em silêncio, tateando no escuro atrás do interruptor, acendendo a luz de uma vez e sem aviso, ouvindo os protestos frustrados de Klaus que enfia o rosto na almofada para evitar a luminosidade pungente e abrasiva.

– Perdão. – ele diz, apagando a luz de imediato. – Não estou acostumado a ter mais alguém no meu quarto.

Ele emite um fraco barulho de compreensão no escuro, vindo de algum lugar dentro do ambiente, nesse momento Morpheu apenas tenta não esbarrar em nada a caminho do banheiro, onde prenderia o cabelo de novo e pegaria o uniforme formal que teria de usar na cerimônia de hoje.

– Como se sente, doutor? – ele pergunta de dentro do banheiro, sem muita preocupação em fechar a porta.

– Entediado. - o médico responde de dentro da escuridão densa do quarto sem janelas.

Morpheu ri.

– Justo.

– Morpheu...

– Hm?

Ele se desvencilhou do terno, da gravata, e está a meio caminho com a camisa quando a voz de Klaus interrompe o caminho mecânico de suas mãos pelos botões.

– Tem alguma ideia de como eu faço o que faço?

– Do que está falando, doutor? – ele pergunta se livrando da camisa e jogando-a junto com as outras coisas no canto do banheiro.

– Como cicatrizei seu braço... Como curei os soldados... Como sei que você cheira a morte, tem gosto de guerra... Como sabia das rochas... Tem alguma ideia de como eu faço isso?

Morpheu permanece em silêncio, silêncio denso, silêncio sério.

– Não. – ele responde por fim. – Nenhuma.

– Quer saber?

– Se eu disser que quero... você vai me contar?

Um minuto de silêncio se passa no quarto em escuridão plena.

– Quem sabe...

– Eu quero.

Em poucos segundos a luz do banheiro se acende de súbito, era chocante que houvesse luz elétrica na ilha capital, um lugar onde a tecnologia de qualquer tipo era considerada suja e antinatural, mas isso provavelmente se dava pelo fato de aquele lugar se situar muito longe do castelo.

Morpheu volta os olhos na direção da porta. Klaus olha para o piso de mármore interino, caminhando pelo aposento grande o bastante para fazer mais um quarto, atravessando-o e passos lentos, como se caminhasse para a própria execução.

Seus dedos abrem os botões da camisa preta que usava um por um, devagar, enquanto ele caminhava até o comandante com os olhos no chão, seus olhos resolutos, mas pesarosos, como se estivesse cometendo um crime, e estivesse plena e cruelmente consciente disso, mas ninguém diz nada.

Ninguém nunca diz.

Ele deixa que a camisa escorregue por seus ombros, caindo, inutilizada, contra o chão cor de creme.

As tatuagens em de seus braços serpenteiam intrincadas do alto de seus ombros até os cotovelos, e então se ligam ao grande desenho de um escudo entalhado de vinhas, e espinhos, e espirais, e arabescos.

– Eu posso... Por que eu venho de Silvarum...