Os olhos dele se abriram e eu assisti o choque tomar conta dele, eu assisti aquele azul plácido se partindo em milhões de pedaços, e assisti a dor vertendo das rachaduras que eu mesmo havia criado.

Vi a enorme decepção tomando conta de seu coração de soldado, mais do que eu jamais seria capaz de compreender, acompanhei toda a tormenta me varria por dentro enquanto a decepção invadia violentamente o olhar do meu comandante.

Mas apesar disso, eu estou por inteiro, pela primeira vez, despido das máscaras e das ansiedades e do terror que eu tinha por não poder justificar o que me moldava, minhas crenças, toda a minha vida apagada.

Um homem que não era um homem e não possuía uma história.

Pois eu vinha do Norte, e era contra o meu povo que o homem a minha frente estava em guerra.

E eu estava lá, cuidando e curando o inimigo para que eles pudessem sair e matar mais da minha gente... Mas eu não podia me importar menos.

Ele me pegou pelos ombros, a temperatura das mãos dele em contato direto com a minha pele e me sentia derreter, como a escultura de gelo que eu me sentia.

Me arrastou para trás.

Me bateu contra a parede.

Uma...

Duas vezes.

E perguntou, com a voz permeada de decepção e desgosto, olhando para o chão, marcando meus braços com a marca de seus dedos.

– Por que...?

Eu não usava minhas luvas e me perguntava se ele havia notado, dentro do meu próprio torpor autodestrutivo, sorrindo em silêncio por ter dito a verdade pela primeira vez desde que posso me lembrar.

– Vai me matar, Morpheu? – eu perguntei, eu conseguia vê-lo olhando para a faca abandonada no canto da sala junto com seu terno e sua camisa.

– Eu deveria... Eu poderia... Eu gostaria... Mas eu não vou.

– E porque não? – perguntei com os olhos fechados, sentindo-me anestesiado pela força que havia sido jogado contra a parede, bati a cabeça e me sentia leve.

Ele me soltou, e eu estava decepcionado, sinceramente decepcionado, e ele se afastou, tomando ar, recostando na parede oposta, o mais distante de mim que podia.

– Por que não ouvi seu lado da história ainda. – ele tinha as mãos em punho, e eu sabia que iria me bater se eu deslizasse na resposta, mas nada disso me importava.

– Eu nasci como naith no povoado de Reitl, no Norte, minha função era de substituir o médico atuante, Sis, que depois de 700 anos, havia deixado que alguém morresse deliberadamente. No norte, quando um naith permitia a morte propositalmente, ele era julgado como improprio a sua função, e então a Consciência mandaria outra criança que mudasse as gerações, matando seu antecessor. – eu comecei, pegando minha camisa do chão. – O ciclo começa com sangue, e se fecha com sangue... Assim que a Consciência conectou meu destino ao dele, ele sabia que seus dias estavam contados. E mandou os Clash, que você chama de Drones, atrás de mim, para que me deixassem na fronteira, onde eu seria morto pelos vinith, os soldadosdo sul. Eu passava muito tempo sozinho, e não havia muito que pudesse fazer.... Castas são castas, eu era jovem e não sabia como me utilizar do meu potencial.

Ele me olhava com desgosto, mas ouvia minha história ainda assim. Visivelmente incomodado diante do uso da palavra Vinith para designar os humanos do sul.

– Fui deixado na fronteira, como o planejado, mas quando os vinith chegaram, o seu senhor não permitiu que tirassem minha vida, era uma criança apenas, e poderia ser útil ao sul... Na época Arcellia e Silvarum ainda não tinham declarado guerra um ao outro, mas a inimizade existia muito claramente , com uma troca velada de injurias e ofensas. – tomei fôlego, sentindo a sensação leve na minha cabeça ser substituída por dor. – Seu nome era Nexus, e ele foi meu mentor.

– Nexus... está morto a 63 anos...

– Eu o conheci como comandante da 27ª divisão: Operações Especiais, que naquele momento se resumia a uma central que realizava as tarefas designadas pelo rei. Minha função foi dada naquela época, e quando meu antecessor morreu, fui encarregado como médico do 27º esquadrão, e Nexus era meu comandante.

– Não.

– Depois dele veio Valerius, inútil e de vida curta, morreu fugindo da batalha, e foi enterrado com desonra. E em seguida veio Strauss...

– Não.

– E quer saber o que é mais curioso?

– Não...

– Ele não foi afastado...

– Não... – eu o via se debater com a dúvida, mas já era tarde.

– Ele se matou. Por medo do que o exercito do sul poderia fazer com ele.

– NÃO!

Ele atravessou o aposento e tampou minha boca com uma das mãos, a respiração alterada, ele estava realmente furioso, eu via nos olhos dele, no jeito que eles ferviam o azul plácido num enevoado conturbado. Permaneci em silêncio quando a mão dele lentamente me soltou, me olhando com um horror que arranhou minha mente com uma imagem que eu jamais esqueceria.

– O que é você...?

– Um médico... Um observador... Uma ferramenta... O que você quiser que eu seja.

Minha honestidade me feria, me humilhava, quebrava todas as regras, todas as leis, todas as virtudes.

Ele me deixou, saindo dali, da casa, de perto de mim, levando apenas o casaco preto de guerra com ele, e eu escorreguei pela parede, sentindo-o ali ainda...

Nos meus braços...

Pelo ar...

Nas paredes...

Por toda parte...

Mas não havia arrependimento.

Não.

Pois ele afastava o frio que me consumia...

E eu nunca me senti tão leve em todos esses anos.

~*~

Eu sai, sai dali porque ia sufocar, não era a toa que eu sentia que ele me odiava.

Silvarum

Respirei fundo e era a primeira vez em 10 anos que eu sentia que ia morrer se não pegasse um cigarro imediatamente, então tirei um maço do bolso e segurei entre os dentes enquanto corria a mão pelo cabelo.

Eu estava confiando minha vida a um nortista.

Confiando a vida dos meus homens...

E pior, eu o havia trazido inadvertidamente até a Ilha Capital.

Até o rei.

Como eu pude ser tão cego?!

Era a única coisa que explicava como ele podia...

Como ele conseguia...

Ele tinha tanta verdade nos olhos, tanta, tanta verdade...

Eu precisei sair, sair antes que eu mesmo começasse a acreditar.

Mas de uma forma ou de outra ele ainda era útil, só teria de me manter menos descuidado. E se ele quisesse me matar, já teria feito isso.

Me ocorreu que não parecia sensato deixa-lo sozinho, por mais que eu duvidasse que ele fosse fazer algo contra o rei ou a coroa.

Naith são o topo das castas do Norte, acima do rei, acima dos nobres.

Numa sociedade brutal como era a do norte, isso me assustava e me intrigava.

Não era a toa que ele tinha problemas com autoridade.

Terminei o cigarro e rumei novamente a casa de mármore nas margens do rio, passando por alguns dos meus soldados que me olhavam com curiosidade, entrei pela porta como se rumasse para a guerra pela primeira vez e reunisse toda a minha coragem para atirar a sangue frio.

Fazia tempo que eu não me sentia tão vivo.

Fazia tempo que eu não era provocado por aquele frio na boca do estômago que me avisava que a morte me olhava de perto.

Me desafiando a ir encarar o inferno iminente e sobreviver.

Era quase divertido que meu médico era o culpado.

Encontrei-o sentado no chão, no mesmo lugar onde eu o tinha deixado.

Parecia tão humano, tão vulnerável.

Eu queria rir, mas não conseguia, estava muito nervoso e meu estômago dava voltas.

Eu o sustentava por ambos os pulsos, queria manter as mãos dele longe de mim, sabia que se ele me tocasse com aquelas mãos e estivesse particularmente disposto, podia me contaminar com veneno, veneno que todos no norte tinham e me matar em poucos minutos.

– Digamos que eu acredito em você.

Os olhos dele se abriram um pouco mais, pareciam quase esperançosos, e ele nem por um momento tentou se mover, ambas as mãos paradas, me olhando com os olhos carregados de algum sentimento intenso e consternado, que podia ser qualquer um, pela expressão no rosto dele.

– Hipoteticamente. – eu completo. – Eu não acredito.

A esperança morreu um pouco, mas ainda estava lá, ele respirava respirações curtas e fechou os olhos por alguns instantes, deixando quase todo o peso para que eu sustentasse.

– O que quer saber? – ele disse, a voz tão cheia de desvelo que soava real até mesmo quando eu dizia que não era.

– Até onde você é capaz de curar?

– Se ainda estiver respirando, eu posso resolver.

– Qualquer coisa?

– Qualquer coisa.

Pensei por um momento apenas, isso definitivamente era muito útil.

Eu o soltei, ele podia se soltar a qualquer momento, afinal.

Me afastei, ele parecia decepcionado.

– Você me confunde...

Esfrego meu rosto com as mãos, suspirando.

Ele tem o disparate de sorrir quando eu digo isso.

– Bom... Assim você não vai se cansar de mim.

Olho pra ele com cinismo nos olhos, e eu tenho certeza que ele sentiu.

Contudo ele apenas continuou sorrindo. Ele levanta e caminha até mim, olhando a ferida no meu ombro que ainda não tinha cicatrizado totalmente.

– Acho que você devia ir se arrumar para o baile de hoje, senhor.

Então ele sai do quarto, pegando as luvas na cômoda.

Ele tem razão. Eu tenho que ir.