– Doutor Klaus?

Silêncio.

– Doutor Klaus?

– Hm? – ele olha de sua cadeira na direção de um dos auxiliares, todos com pranchetas nas mãos, caminhando lentamente para fazer as coisas que ele muito bem poderia fazer sem problemas.

– Onde estão os vidros de soro 88-4FD?

– No armário de cima à esquerda. – ele respondeu, transparecendo todo o tédio que sentia se espalhar por seu corpo a cada segundo que passava.

Uma semana e meia havia se passado desde o incidente com o comandante, e Klaus havia se feito acreditar que o comandante preferia perder o braço ferido a vir vê-lo novamente, contudo isso se provou mentira quando um dos assistentes confirmou que eventualmente Morpheu solicitava que trocassem suas bandagens, e que depois de estampar a marca de sua mão no rosto de Klaus, um dos pontos havia se aberto e começado novamente com a dor.

Ela se chamava Diandra, e ele a odiava com mais fervor do que aos outros, não que os odiasse pessoalmente, eles apenas tornavam sua vida naquela base um desperdício de espaço, os soldados por motivos óbvios gostavam muito dela, mas também não era por isso que ele a desprezava, mas porque ela e Morpheu já pareciam ser amigos de longa data pela forma como conversavam.

Apesar de ele achar tudo isso muito improvável.

Ele também sabia que ela e mais um dos seis, Vivaldi, que haviam sido trazidos para cá, tinham uma queda um tanto quanto evidente no comandante, o que não era surpreendente de modo algum.

E isso arruinava seu humor de tantos modos que ele não conseguia conscientemente se sentir menos do que envergonhado por isso.

Ele suspira, pela sexta ou sétima vez nessa hora, apoiando a mão na mesa e brincando com um pedaço de papel.

– Doutor Klaus?

– Hm? – ele volta os olhos a um dos soldados parados a porta. – Hansel, certo?

– Sim, senhor. O comandante solicita sua presença na sala de reuniões.

Ele nem ao menos se da ao trabalho de vir pessoalmente falar com ele.

Era muito possível que ele viesse informá-lo que estava oficialmente dispensado de suas funções por que agora ele não se via na necessidade de lidar com ele quando Diandra podia plenamente lidar com as situações dentro do setor.

Com mais um suspiro ele se põe de pé, enfiando as mãos nos bolsos e caminhando pelo corredor a passos arrastados.

Não queria ir embora.

Mas não era escolha sua.

Estava fadado a pagar o preço pela boca que tinha, e se sentia mais ridículo por isso.

As coisas têm um preço...

Suspirou de novo, já na metade do caminho, disposto a pedir perdão se preciso fosse, mas não queria partir, por uma gama de motivos que não vinham ao caso.

Alguns mais importantes que outros.

Parado em frente à porta da sala de reuniões, tomou ar antes de empurrar a porta.

– Comandante... – disse, sentando-se timidamente na cadeira oposta e mais distante possível do comandante do outro lado, com alguns papeis nas mãos.

Ele não respondeu ou olhou pra ele, apenas deixou os papeis sobre a mesa e cruzou os braços, quase totalmente cicatrizado.

– Doutor, eu o chamei aqui por uma razão.

Ele fecha as mãos nos joelhos, olhando o tampo de vidro da mesa, e vendo sua expressão vazia e mortificada refletida na superfície parcialmente translúcida.

– Preciso que me acompanhe em uma pequena tarefa até a Ilha Capital. Tenho algumas questões para discutir com o conselho e elas competem ao seu trabalho também, para tanto, preciso que venha comigo e com um pequeno grupo de soldados que escolherei especialmente para a ocasião.

Oh...

Ilha Capital.

– Claro. – disse rápido demais, talvez o comandante não houvesse terminado de falar, mas não importava.

– Você não sabe o que terá que fazer. – o comandante o olhava com certa surpresa, arqueando levemente uma das sobrancelhas.

O cabelo estava preso novamente no rabo de cavalo alto que ele costuma usar, o que significa que o ombro estava bem, e se recuperando o bastante para que ele conseguisse movê-lo o suficiente para amarrar a fita atrás da cabeça.

Bom trabalho, Diandra.

Pensou em silêncio, com certo desgosto.

– Não importa.

– Quanta diligência. - disse com certo cinismo.

Era óbvio que ainda estava bravo.

Mordeu a língua com a culpa, repreendendo sua própria vontade de se justificar.

– Senhor, eu-

– Está dispensado doutor. Partiremos amanhã pela manhã.

– ... Sim senhor.

~*~

O dia seguinte começa nublado, com batidas na porta.

Klaus tropeça no escuro até a porta, tentando distinguir o botão que abre a porta.

– Senhor... – sua respiração sai um pouco trêmula, é muito cedo para ser acordado com esse cheiro de perfume e morte.

– Tem uma hora doutor. – ele diz, olhando claramente na direção das tatuagens que apareciam um pouco na gola aberta da blusa de malha velha e puída que usava para dormir.

Sua primeira reação foi cobrir a área com suas mãos, fazendo os olhos do comandante voltarem-se aos seus.

– Não existe uma regra sobre tatuagens no exército?

– É uma marca de nascença...

– Hm... – ele diz, sinceramente indiferente. – Me encontre na porta em uma hora, e leve roupas, muitas delas.

Ele faz um movimento leve de mão e sai pelo corredor.

– Sim senhor...

~*~

O caminho até o primeiro posto de parada até a Ilha Capital foi preenchido de um silêncio sepulcral que levava Klaus a questionar onde estavam suas malas, e porque Morpheu estava sentado lendo até mesmo lá, mas agora um livro, ele já não lia o bastante?

– Identificação. – as roupas do soldado eram leves de mais para o clima do lado de fora, e Klaus não deixou passar a empatia nos olhos do comandante antes que ela sumisse novamente para a distância profissional.

– Alfa-B3127, Comandante Morpheu.

Os olhos do soldado se arregalaram por alguns segundos antes de ele fazer uma continência enérgica, sua voz tremeu, mas Morpheu preferiu pensar que era culpa do frio.

– É-É um prazer tê-lo de volta Comandante Morpheu.

– À vontade soldado.

Subiram os muros, e o comboio passou pela muralha da fronteira, eles agora estavam fora da zona de guerra. Dentro do sul, e o vento frio da janela fazia as mãos de Klaus tremerem.

Estavam apenas ele e o comandante na carruagem, veículos de guerra não podiam atravessar a fronteira povoada, ordens do rei.

Morpheu voltou a ler, com a cabeça apoiada no braço direito, plácido, enquanto ar se enchia apenas de respirações e o passo dos cavalos.

– Comandante.

Os olhos dele se ergueram do livro, na direção do médico sentado a sua frente, e ele emitiu um pequeno som de questionamento vindo do fundo de sua garganta.

A questão é que ele não sabia o que dizer, só queria atenção.

E agora que ele a tinha, não sabia o que fazer com ela.

Morpheu depositou o livro no colo, estendendo a mão direta que apoiava sua cabeça na direção do rosto do doutor, que parou de respirar instintivamente. Em silencio ele removeu uma folha do cabelo do outro, olhando-o com estranheza.

– Você fica muito autoconsciente quando me aproximo. Diga-me doutor, o que eu fiz para que você me desprezasse tanto desde o princípio? – ele pergunta, jogando a folha pela janela.

– Não! – ele teve que se conter em ir pra frente ao ver a nota magoada nos olhos do comandante.

Afinal ele não havia feito nada que o doutor não houvesse incitado.

O comandante o olhava com surpresa.

– Não... o que? – ele disse, franzindo o cenho, confuso.

– Não o deprezo... eu nunca... eu... – sua voz ia ficando cada vez mais baixa, ele olha consternado para o comandante, a respiração instável, com certeza parecia loucura.

Mas fazia pleno sentido para ele.

Como ele podia pensar que era desprezado quando...

O comandante depositou uma das mãos no ombro do doutor, que olhava transtornado para o chão da carruagem, para o espaço onde seus joelhos e os do comandante quase se tocavam, e amaldiçoou aquele espaço e a si mesmo com afinco, fechando os olhos com força, cobrindo o rosto com as mãos, vergonha demais para olhar para encontrar os olhos do comandante.

– Me perdoe pelo meu comportamento, comandante...

O comandante aplicou um pouco de pressão em seu ombro, o calor que emanava da pele humana atravessando o tecido fino de sua blusa o fazia querer chorar, por mais de uma razão, mas engoliu isso, sentia-se fraco novamente.

– Você está bem, Klaus? – dessa vez seu nome não veio com uma nota de aviso, reprovação ou mesmo de cansaço, era laceada em preocupação e empatia, e soava tão bem nos lábios dele, e machucava, e confortava e ele se encolheu no acento.

– Não... – sua voz saiu quebrada de novo. – Não, mas não diga nada.

A mão de Morpheu ameaçou sair de seu ombro e antes que pudesse se conter ele a segurou entre as suas, com firmeza, os olhos ainda fechados com força.

– Klaus...

Ele sentia o tremer nas mãos do médico, e não era apenas o frio, estavam frias e ele sentia a respiração elaborada enquanto o doutor tentava se recompor, tentando se sentir menos envergonhado.

Mas não sabia o que dizer.

Já havia dito que não sabia lidar com as emoções de seus homens, e o doutor o deixava numa situação delicada.

Pois ali sentia que a única coisa que o estava sustentando era a mão que ele segurava, como se sua própria vida dependesse dela.

– Pedi que não dissesse nada.

Então ele se calou, deixando o doutor se apoiar em sua mão e sua mão apenas, olhando-o em silêncio. E não podia dizer que não preferia o silêncio a tentar consolar o médico, pois não sabia ao certo se tinha como fazê-lo.

Não sabia muito sobre ele, afinal.

Quando a carruagem ameaçou parar, o doutor soltou imediatamente, pousando as mãos sobre os joelhos e olhando pela janela em silêncio como se estivesse fazendo isso há horas. Morpheu apenas o observava um tanto mais confuso quando o som da porta da carruagem se abrindo o fez desafixar seus olhos de cima do médico para o homem a porta.

– Chegamos ao primeiro ponto de parada, já está escuro e seria do melhor interesse de todos se descansassem por hoje.

Então ele sumiu e Morpheu desceu da carruagem em silêncio, com Klaus em seu encalço, seguindo-o para dentro do edifício de tijolos vermelhos, cravado com o emblema do exercito do norte na porta.

– Quer que eu peça que o mudem de quarto, doutor?

– Não. É um gasto a mais que não precisamos.

– Tem certeza?

– Ficarei bem.

– ... Muito bem.

Eles não se olharam em momento nenhum, apenas pegaram a chave e subiram.

Klaus olhava o comandante de trás, aspirando o perfume que ele deixava para trás para engolir a tormenta em seu estômago e dentro de seu cérebro.

Silenciosamente agradeceu como o comandante escolheu não lhe perguntar nada.

Suas mãos ardiam, o contato impresso nelas por debaixo das luvas finas, o calor estranho a elas fervendo em seu sangue, exalou o ar, deixando que apenas por aqueles poucos segundos onde ele não podia ver, seus olhos se derramassem pela devoção que estava pronto para entregar plenamente ao homem a sua frente.

Jurou a si mesmo que o seguiria para onde fosse, por quanto tempo lhe fosse permitido.

Talvez fosse loucura.

Egoísmo.

Dependência.

Fantasia de sua própria mente cansada.

Decidiu então jogar-se no inferno.

Colocar sua vida na linha de fogo.

Amanhã contaria a ele.

Contaria tudo a ele.

Ofereceria sua devoção.

Tudo o que ele quisesse tomar dele.

E sentaria para assistir sua vida sendo consumida.

Queimada no fogo azulado daqueles olhos que um dia seriam sua ruína.