– Comandante.

As batidas na porta o acordaram, um sono leve e turbulento, escuro, mas suficiente para aplacar a névoa sufocante que havia se retraído, novamente, para o fundo de seus olhos, que agora eram vítreos e silenciosos.

– Diga. – se sentou rapidamente na cama, correndo os dedos pelo cabelo bagunçado, tentando identificar os números azuis do relógio automático encrustado a parede.

Se antes o chão parecia leve, tão distante que mal conseguia alcança-lo, agora ele pesava, como se a gravidade, cansada de brincar com ele, houvesse decidido simplesmente esmaga-lo contra o piso de linóleo.

– Vai perder o café da manhã, senhor.

– Ah... Obrigado, soldado.

– De nada, senhor.

Um banho gelado, como sempre, foi a primeira coisa que lhe ocorreu.

Depois de tanto tempo já não tinha certeza da última vez que tomara um banho com água quente, não parecia mais apropriado.

Na verdade, a única coisa realmente quente que tinha em sua vida, era o café, cujo efeito não era mais que psicológico.

A camisa branca e o casaco com as marcas de suas patentes, que para ele já não passavam de cicatrizes que ele tinha de tolerar todas as noites, eram quase parte de sua pele.

No refeitório, o cheiro de café encheu seus pulmões com uma certa vitalidade que já não sentia a alguns dias, dias de trabalho lidando com papeis e burocracia, mas agora com a grande xícara branca nas mãos conseguia raciocinar claramente o que faria durante o dia, os soldados normalmente orbitavam nas mesas vizinhas ao redor dele, curiosos a observá-lo, estuda-lo. Aos poucos as mesas foram se enchendo até que o primeiro soldado fora audacioso para se sentar a mesa com ele, e lança-lo um respeitoso “bom dia, senhor...”

– Bom dia, soldado. – disse, lendo os papeis que trouxera consigo do quarto.

As fichas daqueles com quem trabalharia. Lia-as com cuidado, anotando as falhas e as qualidades de seus homens associadas as fotos 3x4 em preto e branco que haviam lhe dado quando definiram que trabalharia com o setor 27.

Aos poucos outros soldados foram se sentando a mesa com ele, em silêncio, observando-o com cautela, tentando não falar muito alto.

– Quem é o médico? – perguntou, a todos e a ninguém especifico, olhando vagamente para o soldado a sua frente.

– É o Doutor Klaus, senhor. Ele deve estar na enfermaria a essa hora, senhor.

– Onde é a enfermaria? – ele disse, terminando o café que a essa altura já estava quase frio.

– No corredor 48-B, senhor.

– Obrigado, soldado.

Ele se levanta, com as fichas de seus homens, debaixo dos braços, lendo as informações citadas da ficha do médico do setor 27. Doutor Yohan Kitzke. Codinome: Klaus.

Uma grande placa prateado polida exibia em letras grandes e pretas as palavras:

CORREDOR 48-B.

<= ALA MÉDICA / SETOR PSIQUIÁTRICO

TRATAMENTO EMEGENCIAL / ENFERMARIA =>

Talvez não houvesse necessidade de bater na porta, mas o fez mesmo assim, não se entra na sala de trabalho de alguém sem antes se bater na porta, pelo menos em seu caso era assim que pensava.

– Entre. – disse a voz abafada do outro lado da porta.

– Com licença, Dr. Klaus? Tenho algumas dúvidas sobre a sua ficha.

A primeira coisa que chamou a atenção do comandante naquele que seria a partir daí seu médico, foi o fato de usar luvas negras, pareciam ser de veludo, preto como o cabelo, as roupas, e o pequeno sinal embaixo da boca.

– Hm? – ele diz, escorrendo o avental branco pelos ombros e jogando-o sobre a mesa. Sua blusa de malha preta tinha mangas 3/4.

Olhos prateados vagos e plácidos. O tipo de olhar amortecido de alguém que já não tem mais nada a perder.

– Todo o histórico da sua ficha está em branco, sabe me dizer o por quê?

– Talvez porque eu seja um homem sem história, comandante. – ele diz, ausente, reclinando-se sobre uma das mesas de pedra branca lustrosas.

– Hm, sorte a sua doutor. – disse, olhando uma última vez para a ficha quase em branco.

– Alguns diriam que não.

– Eu não sou alguns, doutor, sou seu comandante.

– Comandante Morpheu, certo?

– Precisamente.

– Li sobre você uma vez comandante.

– Infelizmente não posso dizer o mesmo. – ele diz, indicando as várias páginas em branco da ficha com a pequena foto do doutor que tinha em mãos. – Mas é um prazer ainda assim.

O doutor cruza os braços sobre o peito em silêncio.

– Igualmente.

Deixando a ficha em branco sobre a mesa, o comandante silenciosamente deixa a sala, saindo pela porta dupla até o amplo corredor encerado, onde suas botas chiam no chão reflexivo. Tudo era abusivamente limpo.

O sangue que manchou aquelas paredes continuaria embaixo das demãos de tinta, de uma forma ou de outra.

O doutor observa seu novo superior saindo da sala, olhando vagamente para o teto, pensando consigo mesmo, no vazio da sala cheia de camas forradas com lençóis limpos.

– Acho que ele não percebeu ainda... ou será que já? – seus olhos se voltam para a porta.

Com os olhos fixos num ponto mais além, Morpheu se questionava se ainda lhe restava alguma subjetividade.

Em seus ouvidos, apenas seus passos.

Em seus olhos, apenas o linear do corredor.

Hoje faria seu primeiro anúncio ao seu setor.

– Hoje iremos pela floresta do norte. Dividam-se em grupos de sete. Mantenha-se próximos uns dos outros, mantenham as armas em mãos, mas não atirem a menos que seja estritamente necessário. Dúvidas?

– Iremos até as fronteiras, senhor? Confronto direto?

– Exato.