Memórias - Interativa

Meu Cabelo, Minha Personalidade e a Simulação


Quando Mitchel vem conversar comigo, mais tarde, estou sentada no chão, observando fixamente uma mecha mais longa da minha franja, enrolada em meu dedo indicador.

Fico feliz por poder dizer que, depois de alguns dias, tudo voltou ao normal entre nós; na verdade, acho até que o Mitch está quase pedindo a Tanni em namoro...

Não é a primeira vez que ele me vê olhando para meu cabelo, então ele me pergunta:

– Sério, Bel, porque você sempre olha para o seu cabelo? Parece que está hipnotizada, ou sei lá.

Ele diz em tom de brincadeira.

Dou de ombros:

– Ele é bem mais complicado do que parece, na verdade.

– Parece loiro normal. – ele diz. – Loiro escuro, na verdade, mas normal mesmo assim.

Esboço uma expressão divertida, e então uma ideia me ocorre.

Visualizo uma cena e me concentro em Mitchel.

Logo, ambos estamos em um ambiente quase totalmente branco. Não consigo diferenciar o chão do resto, e nem ver onde isso acaba; só consigo ver um pequeno computador na minha frente.

Corro até lá. Imagino dois bancos próximos ao computador, e uma tela enorme.

– Vem ver isso, Mitch.

Clico no símbolo do Google Chrome. Eu podia mostrar isso a ele de várias formas, mas nenhuma outra me ocorreu.

Vou no Google e digito ‘cabelos loiro escuros’.

Quando as imagens carregam, me viro para ele.

– Então, você acha que essa é a cor do meu cabelo?

– Mais ou menos... – ele diz.

– E o que você vê de diferente?

Ele pensa um pouco.

– Seu cabelo é mais... sei lá, bronze.

Pesquiso ‘cabelos bronze’.

Assim seguimos. De cabelos bronze vamos para cor de areia, castanho-claros, dourados, castanho-dourados e vários outros.

Por fim, ele se vira para mim.

– Ok, seu cabelo é complicado. Mas de que cor ele é, afinal?

– Essa é a questão.

Imagino meus cabelos longos. Sempre estranharei quando o peso em minha cabeça aumenta.

Arranco vários fios e os mostro a Mitchel.

– Está vendo? – pergunto. – São todos diferentes, irregulares.

Um dos fios que seguro é loiro; outro é loiro escuro; outro é castanho; outro é bronze; um deles é cobre, e um, ainda mais peculiar, é completamente cinza. A única semelhança é que grande parte deles tem a mesma cor de reflexo: amarelo-ouro.

– Diferentes, irregulares, inconstantes e únicos – digo. – É impossível saber qual é a cor do meu cabelo. Costumo dizer que é uma mistura de loiro escuro e uma cor de bronze como a das medalhas de competições escolares. – Eu já ganhei algumas em xadrez e uma em uma olimpíada de sudoku, mas estou distraída demais para me gabar – Mas a verdade é que não há uma única cor. Eles não se encaixam em uma classificação. É como a minha personalidade – comparo, pensativa. – Quem conseguir entender o meu cabelo, talvez esteja no começo do caminho para me entender. É só pensar que minha personalidade é como minhas cores.

Logo estamos de volta ao meu quarto. Mitchel me pergunta como eu tinha reparado nas cores de meu cabelo.

– Primeiro, eu vivo com esse cabelo desde que nasci - comento. – em algum momento eu tinha que reparar. Além disso, na minha aula de artes, eu estudava cores. Além de toda a minha prática de autodidata, acabei desenvolvendo um bom olho para esse tipo de coisa. E também, houve um dia em que eu estava penteando meu cabelo, quando ele ainda era longo, e achei uma mecha loiro-clara, bem clara mesmo, no meio do meu cabelo, e no ano seguinte, quando o prendi em um rabo-de-cavalo, todos os fios próximos à minha orelha eram cinzas.

– Personalidade complicada, não é? – ele comenta.

– Meu cabelo não representa nem uma minúscula fração da complicação que é me entender. – digo. – Tradução, você nem faz ideia.

.

Essa noite, resolvo tentar alguma coisa diferente.

Eu e Samantha no sentamos. Toco em sua mão,pois toda minha concentração estará voltada para outra coisa.

Imagino tudo o que vi, vivi e ouvi desde que cheguei. Tento me lembrar de cada momento marcante em minha vida nos Jogos.

Eu quero estar em uma realidade idêntica a essa, nesse momento.

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Inicialmente, não percebo nada de diferente. Então, imagino que eu e Sam podemos atravessar paredes.

Me aproximo de uma e passo meu braço por ela. É como se a parede fosse feita de ar.

– Legal – digo. – Me siga.

Eu e Sam andamos aleatoriamente pelo lugar. Os túneis estão recolhidos.

Todo o lugar é um enorme retângulo de metal, de quase um quilômetro quadrado.

Sem saber o que procurar, depois de ficar exausta de tanto andar, quase uma hora depois, tenho a brilhante – mas tardia – ideia de imaginar a nós duas com uma audição superdesenvolvida e com o poder de voar, pois todo o lugar tem cerca de 50 metros de altura e incontáveis andares.

Noto imediatamente a diferença.

O barulho em minha cabeça é irritante, mas não sei como especificar o que quero ouvir.

Então, ouço algo que capta a minha atenção.

Olho para Sam, que tenta tapar os ouvidos – um gesto obviamente inútil.

Imagino Sam sem os ouvidos desenvolvidos.

Ela ergue o olhar e agradece com um gesto de cabeça.

– Vem – seguro seu braço.

Sigo por alguns minutos em direção ao som.

Logo chegamos a uma pequena sala, parecida com a que frequento antes de entrar na Arena, mas mais clara.

No centro, há uma mesa circular. À sua volta vejo os Coordenadores das Casas – incluindo Sarah, que é a única da qual sei o nome – , o homem que fizera o discurso no primeiro dia em que Joguei e um outro homem, que eu nunca vira antes, que parecia ser o mais velho de todos, os cabelos antes negros são agora grisalhos, em sua maioria.

Todos, com exceção do homem mais velho, parecem preocupados de uma forma que eu nunca imaginaria que eles podiam ficar.

– Eles vão agir em breve. – o homem, de cabelos pálidos, diz, aflito.

– O que faremos? Se eles resolverem invadir, teremos poucos meios de nos defender. – um dos Coordenadores – o da Esmeralda, pelo uniforme – pergunta.

Sarah se levanta, de repente, e bate com as mãos com força na mesa.

– Nós? Nós? Nada nos acontecerá. Mas e eles? Eles não fazem ideia do que está acontecendo. Temos que explicar a eles o quanto antes!

Eu nunca havia visto Sarah tão furiosa. Ela parecia, de certa forma, protetora.

– Isso vai prejudicar os testes. – o homem mais velho diz, num tom monótono e sem emoção. – Temos que acelerar os Jogos.

O Coordenador Âmbar também se levanta.

– Prejudicar os testes? Acha que acelerar as Provas e deixá-los mais tensos não adulterará os testes? – ele retruca, também bravo, mas nem de longe tanto quanto Sarah.

– Expostos ao nervoso, eles serão mais suscetíveis aos nossos testes. Assim será mais fácil de examinar suas verdadeiras personalidades – a Coordenadora Rubi comenta.

– DANEM-DE OS TESTES!

Todos na sala recuam.

Eu não estou entendendo nada, mas se alguém ali se importa com os Jogadores, essa pessoa é Sarah.

– Coordenadora Sarah – o homem velho é o primeiro a falar. – Sente-se. Tudo o que podemos fazer por agora é acelerar os Jogos. Duplicaremos o número de Competidores por Prova.

Sem conseguir ouvir mais, imagino a mim e Samantha de volta em meu quarto.