Memórias - Interativa

A Confissão de Tania e o Segredo do Dom


Ontem, passamos várias horas tentando descobrir o que aconteceu, mas só chegamos à uma conclusão, e mesmo ela é incerta: eu fui a causa daquilo. Afinal, só eu conheço os Rangers bem o suficiente para saber das capas peculiares, das facas e do escudo de Carvalho.

Decidimos não contar para ninguém o que havia acontecido; nem me lembro direito os argumentos que usamos na discussão.

Agora, eu estou em um dos raros momentos que dedico ao treinamento. Quase não usei a Mesa de Treinamento desde que cheguei aqui, mas é o que eu e Tania estamos fazendo agora.

A ilusão de ontem e a Mesa de Treinamento seguem o mesmo princípio: em ambas a gente sente, cheira, vê e ouve. A única diferença é que as ilusões da Mesa têm um objetivo fixo e bem-definido.

O Treinamento de corrida de obstáculos se passa em um campo infinito, de grama baixa e verde até onde a vista alcança, com uma faixa asfaltada de mais ou menos 3 metros de largura contínua e interminável repleta de barras, muros, muradas, cones e outros obstáculos.

Eu e Tania estamos correndo no que meus professores de educação física chamariam de ‘intermediário entre o ‘meio-galope’ e o ‘trote’, um ritmo constante e regular que podemos manter com facilidade.

Em determinado momento, Tania me pergunta:

– Bel – ela salta sobre um cone, dando uma pausa na frase – o que você acha do Mitch?

Estranho a pergunta.

– Ele é legal. É um grande amigo e acho fofo como ele tenta me proteger... ele é meio protetor com todo mundo, mas comigo é tipo superprotetor... – respondo, com sinceridade.

Ela fica em silêncio por alguns segundos.

– Você não gosta dele como... sei lá, namorado?

A pergunta me pega de surpresa.

– Bom, como eu disse, ele é um grande amigo, é simpático e fofo, mas não, não gosto dele desse jeito. É mais como um irmão mais velho daquelas histórias de ficção – comparo. Eu tenho uma irmã um ano mais nova, e sei que muito do que se conta nas histórias é a mais completa ficção – pelo menos, para a maioria dos irmãos. Tania talvez tenha um irmão ou conheça alguém que tenha, pois parece entender o comentário.

– Mesmo? – ela indaga.

– Mesmo – confirmo. – Por que?

– É que... – ela fica em silêncio por algum tempo, salta por cima de uma barra e desvia de um cone. Por fim, respira fundo e completa – eu gosto do Mitchel.

.

A resposta me pega desprevenida. Cambaleio por alguns metros, tomada pela surpresa, e então meu pé se prende em uma das barras mais rasteiras e próximas do chão, me fazendo cair. Sinto o meu pé se dobrando, e gemo de dor.

– Ai, acho que torci o tornozelo – reclamo, me endireitando e sentando. – É tipo um carma, esse maldito.

O cenário e o ambiente são substituídos pelo quarto de Tanni – que, na verdade, é idêntico ao meu – e sinto a dor, aos poucos, diminuir, até desaparecer completamente, como costuma acontecer com as feridas adquiridas no Treinamento.

– Você está bem, Bel? – ela pergunta. Seu rosto está vermelho como se estivesse pegando fogo. Não sei como seu corpo não está pálido com todo o seu sangue concentrado na cabeça.

– Sim – afirmo. – Já estou melhor. Mas esse tornozelo é mesmo desgraçado.

Tania ri, fracamente e quase sem humor, da menção à queimadura. Quatro dias e eu já havia me queimado e torcido o mesmo tornozelo.

Nenhuma de nós duas menciona a sua confissão.

.

Duas horas depois, é como se a luz da compreensão tivesse se acendido de repente em minha mente.

De repente, eu simplesmente sei o que fazer.

– Samantha! Mitchel! – disparo até a porta.

Os dois estavam comendo algo que não sei o que era, pois, francamente, não dei a menor importância; toda a minha atenção estava voltada para outra coisa.

– Eu descobri o que aconteceu ontem!

Essa frase capta toda a sua atenção, e ambos se viram para mim, subitamente esquecendo de sua comida.

– Não sei exatamente o que é, mas sei que tem a ver com isso.

Me viro e levanto o meu pouco cabelo, deixando à mostra a cicatriz.

– Eu senti algumas pontadas agudas nela durante a ilusão, mas eu não prestei muita atenção na hora – ‘por motivos óbvios’, completo, em pensamento – Só eu conhecia o suficiente dos Rangers para poder criar a ilusão, e me lembro que a última coisa que pensei antes de irmos parar na floresta foi comparar-nos aos personagens da história e pensar em como seria bom ter uma aventura assim com eles.

Me viro e corro até ambos. Me sento ao seu lado no chão, com as costas apoiadas na cama de Sam.

– Segurem minha mão.

Eles obedecem prontamente.

Penso em um dos meus sonhos do qual eu me lembro com clareza.

Eu queria poder estar lá com meus amigos.

E em um instante, já não estamos mais no quarto.