Memento

Boas vindas


A luz da manhã atravessava a fresta entre as cortinas, banhando o cabelo solto de Homura, que estava sentada na cama com um semblante cansado.

Isto não é um sonho. Eu estou de volta a esse lugar.

Ela olhava para o anel em sua mão esquerda, para as runas que ela conseguia ler claramente.

Depois de tudo o que aconteceu, eu estou de volta a esse lugar...

Ela ouviu um ranger e então olhou para o armário.

Uma das portas estava entreaberta, de onde olhares azuis inumanos espreitavam.

Homura mudou sua postura para uma mais firme. “Fiquem onde estão.”

A porta se abriu e como uma avalanche as crianças desabaram para dentro do quarto.

“O que estão fazendo!”

As crianças se ajudaram umas as outras a se levantarem, checando e reencaixando qualquer parte que havia soltado.

Homura saiu da cama prontamente e começou a empurrá-las de volta para o armário. “Desapareçam. Eu não... estou... com paciência...” Ela notou que uma de suas crianças estava diferente.

Era Mie, vestida com um traje preto de bailarina. Ela cumprimentou sua mestra puxando as pontas da saia e se curvando para ela.

“T-Tire isso já!” Homura arrancou o vestido da sua criança, deixando-o cair no chão.

Mie se abraçou, tentando esconder seu corpo de cera nu que não tinha característica alguma.

Homura ainda estava pensando no sermão que iria dar quando ouviu um sibilo familiar.

Dessa vez era Noroma que havia aberto a caixa de música.

Ela correu para fechá-lo e a repreendeu. “Nunca mais toque...!”

A criança segurava uma pequena bailarina de plástico e estava prestes a colocá-la em sua boca.

“Noroma...”

A criança olhou confusa para a sua mestra.

Homura rangeu os dentes para deixar bem claro. “Não...”

Contudo a criança, ainda olhando para ela, abriu bem a boca para abocanhar a bailarina.

Em um bote, Homura conseguiu tirar o objeto da sua criança.

As outras crianças estavam brincando com a casa de boneca, abrindo todas as portas e janelas, seus olhos de vidro curiosos em saber o que havia dentro.

Vendo aquilo, a garota suspirou e abriu a caixa de música para por a bailarina, apenas um pouco para que a música não tocasse.

“Homura-san, você está acordada?”

A súbita voz de Chiharu. Ela se virou e viu a porta se abrindo.

Suas crianças também, parando o que estavam fazendo.

Ela só tinha um instante.

Homura agarrou o despertador que estava ao lado da caixa de música. As bordas do objeto foram preenchidos pela luz lilás de sua magia. Quando alcançou os ponteiros, estes pararam assim como o mundo. Ela engoliu seco ao ver Chiharu sob o véu de cores desbotadas, parcialmente atrás da porta. Ao que parecia, ela não havia notado nada ainda.

O relógio começou a vibrar e o metal estalar.

O tempo era uma força tremenda, ir contra o seu capricho mesmo para um simples grão areia era uma idéia absurda e aqui ela estava o segurando, de todo o universo, em um artefato construído por imperfeitas mãos humanas.

Homura sabia disso. Ela se concentrou em sua mão livre, pronta para conjurar uma ampulheta.

O relógio estourou e seus pedaços estatelaram no chão.

A porta se abriu, com Chiharu já pulando de susto. “Ahhh!”

Era tarde demais. Homura empalideceu.

As bonecas mudaram seus olhos para o verde e vermelho e suas bocas ficaram forradas de dentes afiados enquanto Mie pulou para dentro do armário.

Com a mão no peito e respirando fundo, Chiharu se aproximou de onde Homura estava.

A garota rangeu os dentes e balançou a cabeça freneticamente para que ela não viesse.

Contudo, Chiharu estava prestando atenção para o despertador despedaçado. “Oh... Que sujeira...”

Homura arregalou os olhos enquanto respirava ofegante.

Foi então que Chiharu se deu conta. “Homura-san?” Ela tocou a face da garota. “Oh! Você está gelada! É o seu coração?”

Confusa, Homura abaixou a cabeça e se abraçou, tentando se controlar. “N-Não... Eu só estou assustada... com o relógio.” Ela olhou de relance para as bonecas, que estavam estáticas e mudando os seus semblantes para o aspecto menos ameaçador.

Chiharu continuava um tanto preocupada com a reação dela. “Sim, fez um barulho e tanto quando bateu no chão. Não pensei que ele fosse tão frágil.” Então ela olhou para casa de bonecas. “Não é uma grande perda, você nunca gostou desse presente do seu pai comparado com...”

Homura estremeceu. Chiharu estava olhando diretamente para as bonecas e a garota estava certa de que a mulher havia percebido algo.

A governanta andou, as bonecas abrindo caminho para ela com os seus olhares curiosos, e pegou o traje de bailarina no chão. Após procurar por algum dano no tecido, ela consultou Homura.

A garota desviou o olhar.

“Seu pai me pediu para deixar tudo como estava.” Chiharu se inclinou para dentro do armário para por o traje de volta ao cabide. “Peço desculpa se você queria que eu as removesse.”

“Eu não me importo mais com isso.”

“Então por que removeu todos os trajes dos cabides e os deixou caído no fundo do armário?”

Homura franziu o cenho.

Mie, já com o seu vestido original, rastejou para fora do armário, passando entre as pernas de Chiharu. Quando se levantou, sua cabeça ficou parcialmente presa sob a saia da mulher, quase a levantando também.

As outras bonecas gargalharam em silêncio.

Chiharu fechou a porta do armário e ajeitou a sua saia. “Certo, eu vou chamar alguém para limpar o seu quarto. Enquanto isso você deve tomar o café da manhã, eu não irei permitir que você fique mais tempo sem comer.”

Homura suspirou. “Ok...” Ela pensou que a governanta iria sair depois de dizer isso.

Muito pelo contrário. “Mas o que é isso?” A mulher foi até a mala sobre a cama. “Você não retirou nada daqui de dentro?”

Homura balbuciou, “Eu só irei ficar alguns poucos dias aqui.”

Chiharu começou a vasculhar a mala. “Onde estão os seus remédios? Está seguindo o que o médico receitou?”

“Se eu não estivesse, eu já estaria morta.”

Ela pegou as caixas, eram mais de vinte, e leu os rótulos de cada uma, “Hidroclorotiazida, Amiodarona, Cloridato de Sotalol...” Então ela aproximou uma delas de seus olhos. “Eu deveria ter trazido os meus óculos.”

Homura olhou para o rótulo. “Remifentanila, um analgésico.”

Chiharu ergueu as sobrancelhas. “Você leu?”

A garota olhou de relance para o par de óculos que ela havia deixado sobre o criado mudo. “Eu reconheci pela cor da embalagem.”

A mulher ficou encarando ela por um momento e então assentiu, pondo a caixa de volta para mala. “E onde está o medidor de pressão?”

Homura arregalou os olhos.

Chiharu entendeu. “Ainda bem que nós temos um aqui. Eu irei trazer.” Ao se virar para sair, seu braço foi segurado, uma pegada firme.

Com a surpresa dela, Homura a soltou. “Por favor... Traga, mas deixe-me fazer isso sozinha. Eu consigo.”

“’Ou eu já estaria morta’,” a mulher imitou o que a garota havia dito, semicerrando o olhar, “tudo bem, mas ao menos se lave e troque essas roupas. Depois de todo esse tempo, seu pai espera se encontrar com uma filha, não com um defunto.”

Homura segurou os seus tremores até que Chiharu se ausentasse. Ela então olhou para as suas crianças, murmurando para si mesma, “Ela não consegue ver elas...”

“Bom dia!” Madoka adentrou no quarto sem fazer cerimônia. “Oh!”

As bonecas alargaram mais os seus sorrisos e a rodearam.

Madoka abriu os braços e ofereceu as palmas das mãos para receber os toques gelados daquelas mãos de cera. “Wehihi! Então Homura não dormiu sozinha.”

Vendo aquela cena, Homura cruzou os braços e virou a cara. Nisso ela notou que Ibari estava ao lado dela, também de braços cruzados, assim como Ganko. Enquanto Ibari erguia o seu queixo, Ganko abaixou a cabeça e tentava fazer uma cara de emburrada.

Madoka se aproximou de Homura, olhando para as peças do relógio espalhadas no chão. “Eu vi Chiharu-san saindo do quarto com pressa.”

“Não foi nada, apenas um acidente.”

“Sério?”

Homura olhou de relance para ela, sentindo que aquilo não era exatamente uma pergunta.

“Você parou o tempo.”

Ela fechou os olhos e suspirou.

“Você temeu que ela pudesse enxergar os seus lacaios.” Madoka continuava sorrindo. “Mas uma bruxa, se ela deseja isso, consegue esconder sua natureza da visão comum.”

Homura olhou para ela com convicção e afirmou, “Eu temi que Chiharu-san fosse ferida.”

O sorriso de Madoka desapareceu. “Você deseja isso?”

Homura estremeceu. “É claro que não!” Ela então foi até o criado mudo e pegou os óculos, enquanto tentava aliviar a sua respiração. Quando se virou viu que Madoka já estava se distraindo com a casa de bonecas.

“Tão grande, não é? É incrível,” a garota rosa comentou.

“Grande e vazia. Não há nada para se ver aqui.” Homura se aproximou. “Eu irei ao banheiro.”

“Posso ajudá-la?” Madoka mostrou suas mãos imitando garras.

Homura segurou uma mecha de seu cabelo solto. “Claro...”

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“O jantar de ontem foi bem leve. Chiharu-san tem sido bastante cuidadosa quanto a sua condição.”

Com as suas tranças bem amarradas, Homura ia em direção a escadaria.

Com Madoka. “Ela sempre está pensando em seu bem estar.”

“Esse é o trabalho dela,” Homura disse friamente.

Madoka olhou para ela, levantando as sobrancelhas. “Tem certeza que é apenas isso?”

Homura ponderou a questão e respondeu sem mudar sua expressão, “Ela está sendo bem paga.”

Elas desceram e se depararam com a governanta as aguardando.

Ao ver como Homura estava, Chiharu sorriu com satisfação. “Por favor, venham comigo.”

Elas foram até um par de portas francesas que levava para uma grande varanda, onde havia um longo caminho de lajotas que continuava até uma piscina.

Havia uma mesa na varanda, com um café da manhã tradicional de sopa, soja fermentada e omelete, além de frutas. Um rapaz que estava sentando para ela, cumprimentou, “Bom dia. Eu já estava pensando que eu comeria sozinho, apesar de haver uma bela garota e minha amada irmã em casa.”

“Bom dia.” Madoka sorriu para ele, um tanto constrangida.

Homura o ignorou completamente e se sentou.

Chiharu olhou atravessado para ele.

Udo percebeu e fez um exagerado gesto com a mão para ela, e se curvou em um ato de homenagem. “Eu não me esqueci de você. Eu estou muito agradecido por essa rica refeição.”

“Deixe de lado esses agradecimentos elaborados,” respondeu a governanta, “me dar ouvidos seria muito melhor.”

Enquanto se sentava, Madoka sentiu a necessidade de intervir. “Ele tem razão. Esse lugar, a toalha sobre a mesa e as vasilhas, tudo está encantador.”

Chiharu voltou a sorrir. “Isso não é nada.”

“Você não quer sentar conosco?” a garota convidou.

“Eu já tomei o café da manhã com os outros funcionários.”

Sob a vigília da mulher, os três agradeceram pela comida e começaram a comer em silêncio.

Homura alcançou uma maçã.

Fazendo Udo franzir a testa. “Olha, minha irmã está comendo sólidos agora.”

A garota pressionou os lábios e fez menção que iria devolvê-la à fruteira.

“Opa!” Udo rapidamente se levantou da cadeira e a impediu, empurrando a fruta em uma disputa. “Desculpa pelo que eu disse.”

“Udo-san!” Chiharu exclamou.

Sem esforço algum Homura venceu a disputa e botou a maçã de volta, enquanto tentava se explicar para a governanta. “Foi mal! Mas eu fiquei surpreso, você também não ficou?”

“Fiquei.” Chiharu cruzou os braços e disse duramente, “Mas expressar isso é algo completamente diferente. A língua é uma arma que fere profundamente.”

Udo assentiu e fez um sinal de paz enquanto voltava a se sentar.

Homura ficou apenas com a sopa, onde ela trazia a vasilha até a sua boca, sem olhar para ninguém. Ela fazia tudo mecanicamente, até o mesmo o ato de tirar os seus óculos embaçados.

Madoka estava a observando, enquanto mastigava lentamente, sentindo a tensão que ainda pairava no ar.

Udo, no entanto, já estava sorrindo. “Ow, Madoka.”

“Oi?” Mesmo para ela, ter alguém do sexo oposto que não era da família lhe chamando assim era ainda estranho.

“Como foi aquele desastre em Mitakihara? Eu vi que até alguns arranha-céus foram arrancados pelo vento. Como é que vocês sobreviveram?”

Ela deu um leve sorriso. “Assim como todo mundo, eu acho... Eu fiquei com a minha família em um abrigo de emergência até a tempestade passar.”

“Então não viram nada.” Udo ficou decepcionado. “Você já era amiga da minha irmã?”

Madoka parou de comer e juntou as mãos. “Ah sim! Nós estudamos na mesma sala.”

“Legal... mas você deve ter ficado bastante preocupada com ela naquele dia.”

“Ela estava comigo no abrigo.”

“É?” Udo coçou o seu pescoço e puxou corrente envolta dele. “Isso é estranho.”

Madoka ergueu uma sobrancelha. “Por quê?”

“Os abrigos têm registros de quem entrou neles. Papai procurou em todos eles e não encontrou o nome dela.” Udo olhou para um ponto vazio e balançou a cabeça. “Ele estava tão desesperado. Eu não o via assim desde a morte da mamãe.”

Homura continuava a sorver a sopa, fazendo o mínimo de barulho possível.

“Já terminou de comer, Udo-san?” Chiharu indagou, bastante incomodada.

“Eu irei! Eu irei!” O rapaz retornou sua atenção para o seu omelete.

Enquanto Madoka deu uma palavra final. “Ahn... Provavelmente eles esqueceram de fazer isso, a situação estava caótica...”

O silêncio perdurou até eles terminarem a refeição, foi quando Udo tirou um smartphone de seu bolso.

“Sem telefones à mesa,” a mulher avisou.

“É rapidinho.” Ele acendeu a tela do dispositivo. “Eu passei a noite estudando a cidade de Mitakihara, eu estou craque nisso. Só preciso me lembrar do nome... Aha!” Em júbilo, ele logo perguntou para Madoka. “E como é Shirome, tem um pessoal legal lá?”

Ela respondeu, “Eu estudo em outro lugar, conhecido como escola de Mitakihara.”

Udo crispou as sobrancelhas. “Mas você tinha acabado de me dizer que minha irmã estudava contigo na mesma sala.” Então ele olhou para Homura.

A garota estava com a cara virada, parcialmente escondida com uma mão hesitante próxima à boca.

“Udo-san, vá para o seu quarto,” Chiharu disse.

Usando o braço inteiro, ele apontou para a sua irmã enquanto perguntava para a mulher, “Você sabia disso?”

“Minha paciência se esgotou.” A governanta foi mais energética. “Para o seu quarto, agora!”

Ele se levantou com as mãos para cima. “Tudo bem! Tudo bem...”

“Rápido!” Ela bateu o pé.

Udo obedeceu, mas ao passar por trás dela ele parou e deu uma piscadela para Madoka.

A garota ficou curiosa com o que ele pretendia fazer.

Usando as mãos, ele imitou um par de chifres na cabeça de Chiharu e então começou a fazer caretas.

Madoka pôs a mão na boca para não rir.

“Hã?” Chiharu se virou, mas Udo já estava longe. “O que foi? O que aconteceu?”

“Ele estava agindo engraçado,” a garota disse.

A mulher suspirou. “Eu peço desculpas pela atitude de Udo-san. Ele ainda pensa que o mundo gira em torno dos desejos dele.”

Aparentando mais calma, Homura pôs os óculos de volta.

Chiharu deu um sorriso educado. “Homura-san, seu pai espera chegar próximo ao horário do almoço. Esteja pronta para ocasião.”

Homura levantou da cadeira. “Obrigada...” E saiu.

Não esperando por Madoka. “Ah!” Ela se levantou rapidamente. “Chiharu-san, o café da manhã estava ótimo!” Ela conseguiu alcançar a outra garota no banheiro, onde escovaram os dentes juntas.

Nesse momento ela observou que Homura continuava com movimentos metódicos, como se fosse um robô seguindo uma rotina.

Elas retornaram ao terceiro andar, foi quando Madoka tentou quebrar o gelo. “Quer ver o quarto que Chiharu-san escolheu para mim?”

“Eu já tenho uma boa idéia de como ele é,” Homura respondeu com nenhuma emoção.

Assim que chegaram à entrada do quarto de Homura, ela logo abriu.

“Você... vai ficar no quarto de novo?”

Com a pergunta de Madoka, ela parou e sussurrou, “Chiharu-san já está desconfiando de mim, eu devo evitar em me expor muito. Entendeu?”

“Uhum...”

“Bom.” Homura entrou no quarto.

Madoka iria segui-la, mas porta fechou na sua cara. Ela recuou, pressionando os lábios. “Sim, eu entendi...” Sozinha, ela retornou ao seu quarto.

A janela mostrava um dia nublado, só era possível ver o pé do Monte Fuji. Ao menos era possível se distrair vendo a movimentação de embarcações na baía.

Sobre a cama, seu telefone deu um sinal de vida.

“Deve ser mãe.” No entanto, Madoka se surpreendeu a ver de quem era a mensagem.

Gota Azul

“Sayaka-chan...” Ela então a abriu.

Oiêêê! Tudo quieto aqui em Hokkaido (um pouco frio também T_T, o vento aqui é horrível). Só encontramos bruxas em Sapporo, Kyouko e eu vamos procurar por garotas mágicas nas vilas de pescadores. Como você está? Ela ainda está morando contigo?

Madoka se lembrou que fazia um tempo que não via sua amiga. Se tudo desse certo, elas se encontrariam logo. Por hora, precisaria responder aquela mensagem e apagá-la.

E como era esperado, havia uma mensagem da sua mãe também.

Vocês chegaram em Tóquio? Conheceu a família dela?

Isso fez Madoka lembrar de outra coisa. “É melhor começar a tirar umas fotos...”

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As horas passavam.

Deitada sobre a cama, Madoka as contava. Para alguém que sentiu o gosto da eternidade, aquilo poderia não significar nada. No entanto, para ela, naquele lugar com aquelas pessoas, cada momento infinitesimal era precioso.

Assim como aquela melodia que se deu início. Notas simples e ao mesmo tempo aconchegantes, mesmo com as paredes abafando.

Madoka se levantou e foi para o corredor, seguindo aquele som sem hesitar, até chegar à porta aberta de um quarto, onde Udo sobre a cama dedilhava um violão.

Ele ficou surpreso com a presença. “Ora... Se eu me lembro, são os cantos das sereias que atraem os homens, não o contrário.”

“Eu tenho plena certeza de que isso é uma idéia errada.” Madoka sorriu.

A bagunça do quarto contrastava com luxo. Pôsteres de bandas pop e roupas amassadas cobriam a madeira de alta qualidade.

Udo jogou um par de cuecas usadas, liberando um espaço na cama. “Senta aqui. Não ligue muito, okay? Eu faço isso para me sentir em casa.”

Madoka aceitou convite. “Mas você morou aqui.”

“É...” Ele ergueu as sobrancelhas delineadas. “Mas esse lugar deixou de ser uma casa faz muito tempo.” Então perguntou, “Por que não está com a minha irmã? Ela está sozinha no quarto dela?”

Madoka assentiu.

Udo sorriu e balançou a cabeça. “Homura... Ela está mais ranzinza do que nunca. Pudera, quando os seus sonhos morrem...”

“O seu é de ser músico.”

Udo ficou perplexo. “Isso é uma pergunta?”

“Ela ainda é para você?” Madoka franziu a testa. “Você se parece com um ídolo.”

Ele voltou a sorrir. “É! Eu sou baterista de uma banda da escola. É uma pena que não posso trazer os instrumentos para cá.”

“Vocês fazem muito sucesso?”

“Nós somos os melhores!” A empolgação de Udo foi curta. “Ao menos na escola. Nós não somos profissionais ainda e eu acho que não vou poder ser...”

“Seu pai não gosta do que faz?”

“Hmmm...” Ele fez uma careta enquanto pensava. “Não é isso, é mais que... É mais que ele não entende, sabe. O negócio dele é contratos e construções. Ele não quer se arriscar em investir na minha carreira, ainda mais que ele não tem contatos que podem nos ajudar isso.” Ele pôs as mãos atrás da cabeça, enquanto olhava para o teto. “Se mamãe estivesse viva, as coisas podiam ser diferentes.”

Madoka disse em tom mais melancólico, “Isso também seria verdade para Homura?”

Udo ficou curioso, pois ele sentiu de algum modo que aquela pergunta não era apenas para ele.

Ela continuou, “Ao chegar aqui, ela até conversou com Chiharu-san, mas contigo, sendo irmão dela, ela não trocou palavra alguma até agora.”

O rapaz assentiu, coçando a testa. “Veja, depois que mamãe morreu tudo ficou mais chato. Nosso pai nunca mais foi o mesmo, agora imagina eu, um garotinho. Agora imagina a minha irmã, um bebe, o motivo pelo qual nossa mãe morreu, e nós precisávamos cuidar dela.”

Madoka desviou olhar e levou a mão ao peito ao ouvir aquilo.

Udo ficou boquiaberto com aquela reação, então suspirou e balançou a cabeça. “Foi um passado ruim para nós todos. Eu superei isso, mas têm pessoas que não.”

“Se você superou isso, você não acha que pode fazer algo por ela?”

Udo franziu a testa. “Você já ajudou ela alguma vez?”

Madoka abaixou cabeça e sorriu. “Eu sempre tento.”

“Eu acho que você tem mais chances do que eu, sendo uma garota...”

Ela olhou de relance para ele. “Mas você tem algo em comum com ela que eu não tenho. Um sonho que chegou ao fim, aguardando pelo alvorecer de um novo dia.”

Wow! Você é compositora? Eu gostei dessa.” Udo deu um sorrisinho de lado. “Sabe, quando te vi eu achei que fosse bonita e tímida. Agora eu nem sei como descrever, você é algo... especial. Sério.”

“Eu já desejei ser especial.” O olhar de Madoka contemplava o vazio. “Talentos, privilégios, responsabilidades... Eu aprendi que nem sempre têm importância quando precisa ajudar o próximo.”

“Minha irmã é abençoada de ter você como amiga...” Ainda sentado sobre a cama, ele se virou para ela. “Ei! Eu quero ser o seu amigo também!”

“Wehihi...”

Ele preparou o violão. “Vou te convencer com essa canção. Quer ouvir?”

O som crescente de um helicóptero se aproximando podia ser ouvido.

Udo revirou os olhos e se jogou na cama. “Ah não...”

Madoka se levantou. “É ele?”

Com a face enterrada no colchão, a confirmação dele veio abafada. “É.”

“Você não vem?”

“Hmmm...” O rapaz rolou pela cama e gesticulou para ela. “Pode ir na frente.”

Ela saiu do quarto se apressou pelo corredor, até cruzar com Homura que havia acabado de abrir a porta.

A garota com tranças estava com um semblante soturno.

Isso não intimidou Madoka, que fez uso da telepatia devido ao som ensurdecedor vindo do lado de fora. [Seu pai chegou.]

Homura olhou para ela, um olhar inquisitivo. [Onde você estava?]

A súbita questão fez Madoka piscar e dar de ombros. [Aqui, dentro da casa.]

“Homura-san!” O chamado de Chiharu veio da escadaria.

O olhar de Homura ficou menos intenso e ela fechou a porta, assegurando que nenhuma boneca havia escapado. [Vamos.]

As garotas se juntaram com Chiharu no pátio, onde o helicóptero já havia pousado.

As pás ainda estavam girando quando a porta se abriu e um homem deixou o veículo. Seu cabelo era grisalho, quase branco, mas não era calvo. Ele aparentava ser magro e sua pele da face era manchada, marcadas pela idade. Estava usando óculos escuros e camisa com botões, carregando o terno e gravata em seu braço.

Chiharu sussurrou para Homura, “Se aproxime.”

A garota suspirou e, resignada, obedeceu.

E Madoka a seguiu. As duas pararam na metade do caminho.

O homem caminhava vagarosamente, mas sem hesitação, seu sapato lustroso amassando a grama até parar na frente de Homura.

Ele não era alto, não era uma figura imponente, mas Madoka viu uma Homura de cabeça abaixada e de mãos juntas ao ventre, como uma estátua submissa.

O homem a examinou da cabeça aos pés antes de proferir em uma voz fria, “Nós iremos conversar...” Depois, ele olhou para a outra garota.

Madoka se curvou. “Oi.”

Assim como fez com Homura, ele a examinou sem esboçar nenhuma expressão, no entanto, mesmo de óculos escuros era possível sentir seu olhar penetrante.

Madoka sorriu levemente.

Ele fez um aceno com cabeça quase imperceptível e seguiu em direção a mansão.

“Bem vindo, Hiroshi-sama.” Chiharu se curvou. “Seu quarto está pronto e o almoço será servido logo. Eu instrui a cozinha que preparasse atum grelhado no ponto que você gosta.”

“Onde está Udo?” Hiroshi perguntou.

Chiharu se curvou ainda mais. “Ele deve estar em seu quarto, dormindo... provavelmente. Eu deveria tê-lo chamado.”

“Eu estou aqui!” Udo saiu da casa, alegremente. “Tudo certo, papai? Firmou algum contrato novo?”

Dessa vez, Hiroshi foi mais ríspido. “Isso são modos?”

“Ow, peraí!” Udo recuou. “Do que está falando? Eu estou aqui te recebendo, não estou?”

Diante do início daquela discussão, Chiharu manteve sua compostura, sem olhar para eles.

Não era o caso de Madoka, que estava preocupada com desenrolar daquilo.

Homura continuava imóvel, mas também olhava aquela cena pelo canto do olho.

“Você me envergonha mais uma vez!” Hiroshi apontou para as garotas agressivamente. “Você me traz outra garota, que eu duvido que tenha um relacionamento apropriado, e ainda tem a desfaçatez de deixá-la sozinha, sem você ao lado para apresentá-la para mim!”

Udo franziu o cenho e balançou a cabeça. “Eu não tenho rolo com essa garota. Ela é amiga da Homura.”

“Ela é amiga da...” Hiroshi não terminou de repetir a sentença, ficando boquiaberto. Ele se virou e retornou para onde Madoka estava.

Ela aguardou, sem reagir.

Ele retirou os óculos, revelando de quem Homura havia puxado os olhos. “Seu nome.”

“Madoka Kaname.”

“Kaname...” Hiroshi disse aquele nome com grande arrependimento e então se curvou. “Eu peço perdão pelo meu julgamento precipitado. Eu, Hiroshi Akemi, pai de Homura, só deveria ter agradecimentos por você tê-la ajudado.”

Chiharu se apressou e se curvou novamente para ele. “É minha culpa! Eu não avisei sobre ela, e-eu queria fazer uma surpresa. Eu não esper-”

Hiroshi ergueu a mão.

Ela silenciou de imediato.

“Não precisa se desculpar.” Hiroshi olhou para a sua filha. “É uma boa surpresa...”

Homura havia fechado os olhos.

Ele retornou sua atenção para Madoka. “Essa casa está aberta para você. Eu espero que esteja confortável.”

Madoka assentiu e sorriu. “Eu estou.”

“Qualquer coisa que precise, peça para Chiharu-san ou Ichiro, eles podem providenciar. Com licença...” Hiroshi a deixou, indo para casa.

Udo esperou ele passar antes de comentar para si mesmo, “Que mancada...”

O piloto do helicóptero já tinha feito as últimas checagens e foi em direção a elas. Ele era alto e bem afeiçoado, com o cabelo escuro de corte reto e curto, podia muito bem fazer o trabalho de modelo. Seus olhos eram bordô e tinha uma pele pálida. A gravata ainda estava amarrada à gola e carregava o terno no braço. Ele primeiro se aproximou de Homura.

A garota ergueu seus olhos uma vez e então não olhou mais para ele.

“É bom ver que está bem, irmã,” o jovem homem afirmou, com uma expressão de pesar.

Madoka viu o semblante mudar para algo mais leve quando a atenção dele voltou para ela.

“Eu vi meu pai se desculpando para você. Espero que o temperamento dele não tenha te assustado muito.”

Ela ficou encabulada. “Não, foi apenas um mal entendido.”

“Bom.” Ele se curvou. “Eu sou Ichiro Akemi. Você é colega da minha irmã?”

“Ela da família dos Kanames,” Chiharu disse.

“Oh...” Ichiro não conteve sua surpresa. “É um grande prazer em conhecê-la.”

“Eu me chamo Madoka Kaname.” Ela se curvou. “O prazer é meu em conhecer pessoalmente a família da minha amiga.”

“Hmm...” Ele afrouxou a gravata e ele falou, brincando, “Nossa família é um tanto rica demais, tente não se intimidar.”

“É um tanto difícil.” Ela deu uma piscadela, seguindo a idéia.

Então ele sussurrou, apontando com a cabeça, “E tome cuidado com aquele sujeito ali.”

Madoka olhou para o distante Udo, que acenou para eles. “Certo...”

Ichiro fez menção que iria sair, mas parou. “Ah!”

Madoka ergueu as sobrancelhas, ansiando com o que ele iria dizer.

No entanto, as palavras dele se dirigiram para Chiharu. “Quase me esqueci de dizer de como você está mais magnífica a cada vez que te vejo.”

A mulher semicerrou o olhar e disse também em tom de brincadeira, “O que você andou aprontando, garoto bobo?”

Ele apenas respondeu com um sorriso e foi para casa.

Antes disso Udo o interceptou com uma ombrada. “Eae irmãozão! Cuidado para não amassar a sua roupa!”

Ichiro retribuiu o ataque, desmonhecando o rapaz franzino. “Fraco como sempre...”

Udo fez uma cara de dor, mas o sorriso não havia desaparecido. “Por que não trouxe umas garotas?”

“Hein?”

“Você mais esse helicóptero aí... Qualquer uma iria topar se você convidasse passar a semana conosco.”

Ichiro não estava acreditando. “Com o nosso pai?”

Udo abriu os braços. “Ah... Ele nem iria ligar. Você sabe como ele fica quando está aqui.”

“Esquece.” Ichiro ficou mais sério.

“Ahhh...” Udo ergueu a cabeça, ficando com a boca e escancarada e os olhos revirados. “Aqui é chato demais!”

Ichiro pôs a mão no ombro do irmão, o guiando para dentro da casa. “Se eu me lembro bem, você não pensava assim.”

“Aquele lugar não existe mais, se foi.”

“De fato...”

Chiharu fez um gesto para que as garotas a acompanhassem, logo elas já estavam lá dentro. Então, a governanta as deixou. “Eu estarei na cozinha.”

Ficando ali paradas no hall, Madoka tentou trocar olhares com a outra garota, mas ela não reagia. “Homura...”

“Homura!”

Uma voz muito mais austera pôde ser ouvida, era Hiroshi olhando para elas, enquanto limpava um par de óculos transparentes e entrando em um corredor.

Homura claramente entendeu que precisava segui-lo.

“Vai ficar tudo bem.”

Ela finalmente olhou para Madoka, que assentiu para ela com uma expressão confidente. Nada disso importava, nem aquelas palavras, nem aquelas atitudes, pois ela sabia para onde teria que ir.

Ela foi sozinha. Caminhando pelo corredor, Homura sentia sua cabeça formigar, fervilhando de memórias, como a imagem daquele homem, que tirava uma chave de sua carteira para destrancar a porta daquela sala.

Ela entrou primeiro. Em passos devidamente calculados, ela se posicionou dentro daquela biblioteca. A primeira coisa que focou foi no altar, no porta de retrato de uma boneca sorridente de longos cabelos negros.

Ela piscou.

A imagem de uma mulher, de alguém que ela só conheceria dessa forma.

Hiroshi fechou a porta, passou na frente da sua filha e se apoiou em um dos assentos, baixando a cabeça e suspirando. “Você tem alguma idéia?”

Para Homura essa era a parte mais fácil, ela não precisava dizer nada.

Ele se virou e disse, mais agressivo, “Você tem sim, ninguém faria se não tivesse.” Ele suspirou de novo e pegou um lenço em seu bolso para passar em sua testa. “Assim que eu soube do caos e destruição em Mitakihara, eu liguei para você.”

Era só manter os olhos abaixados e ouvir.

“Eu sabia que era inútil, mas eu liguei. Depois descobri que o lugar que eu aluguei para você morar tinha sido completamente destruído. Eles encontraram os seus pertences, mas nenhum corpo...” Os lábios de Hiroshi tremeram enquanto as rugas de sua pele se esticaram com a tensão. “Eu procurei por ti nos hospitais, nos abrigos, até no necrotério. Então... Eu procurei na escola que você deveria estar estudando, Shirome, e eles nunca viram você, seu nome não estava lá.”

Era só manter um semblante impassivo.

“Sabe o que eu pensei? Que você havia fugido, que você podia estar, viva ou morta, em qualquer sarjeta ou fossa desse país.” Ele balançou a cabeça lentamente, falando em um tom mais baixo. “E eu não podia relatar o seu desaparecimento. As pessoas iriam pensar que eu abandonei você, que eu a deixei à própria sorte em Mitakihara.” Então voltou a erguê-la. “Mas nós tínhamos um acordo, não tínhamos?”

Era só manter.

Com o silêncio que se sucedeu, ele passou a mão no cabelo de nervoso. “Foi seu irmão Ichiro que deu a idéia de procurarmos algum registro seu naquela escola onde estamos construindo. Quando encontramos, eu não acreditei, o que você estava pensando? Eles descobriram que você estava morando com outra família, dessa garota que você trouxe aqui.”

“’Eles’?” Homura murmurou, “então você mandou alguém para me espionar.”

“O QUE VOCÊ SUPÔS QUE EU IRIA FAZER?!”

Homura se encolheu. Cometera um erro, mas, sentindo lá no fundo de sua consciência, que talvez não fosse. O que ela estava tentando manter era uma ilusão que não podia mais esconder o seu cerne.

“Se você não queria receber visitas minhas no hospital, nem de seus irmãos, eu aceitei isso!” Esbaforindo, ele apontou para ela. “Mas uma filha simplesmente sumir, como se não existisse, nenhum pai merece isso. NENHUM PAI!”

Homura fechou os olhos e enrugou o queixo. Aquilo queria sair de dentro dela.

Hiroshi ajeitou os óculos enquanto acalmava o seu animo e começou a andar. “Veja, eu te perdôo.”

Ela reabriu os olhos para acompanhar os movimentos deles, seguindo um caminho que suas memórias prediziam. Primeiro, ele iria até o bar e pegaria dois copos.

“Mas o que isso significa só depende de você.”

Depois seria a bebida, como esperado, ele começaria com algo tradicional. Ele encheu os dois copos com saquê.

“Esse impasse entre nós não pode continuar, não há mais tempo, o futuro urge...”

Os próximos passos seriam até o altar, onde ele deixava os copos, um em frente ao retrato daquela mulher.

“A cirurgia lhe permitiu isso, você deve agarrar essa oportunidade.”

Então ele alisava o tubo frio do gramofone e pegava na estante uma capa, onde retirava cuidadosamente um disco.

“Você está viva, você sempre pode recomeçar...”

“Recomeçar?”

Hiroshi a princípio não reconheceu aquela voz. Ele mal se lembrava das vezes que sua filha falava em voz alta e, definitivamente, nunca com um sarcasmo frio. Ele olhou para ela para ter certeza.

Homura não estava mais de cabeça baixa, sua face, sua postura firme, era de um passivo rancor. “Vindo isso de você, é uma ironia hedionda.”

Ele arregalou os olhos. “O que aconteceu contigo?!”

“O que você sempre quis.” Ela foi para a porta. “Eu amadureci.”

Assim que ela a abriu, Hiroshi ergueu a voz. “Isso não acabou!”

Em um súbito movimento, ela virou a cabeça com um intenso olhar para ele.

Hiroshi se calou.

Homura desviou o olhar e disse, “Nós ambos sabemos que isso acabou antes de começar, Hiroshi-san.”

A porta se fechou e ele ficou sozinho. Sua mão aflita buscou o seu copo e ele bebeu o conteúdo todo de uma vez, sentindo o calor reconfortante descer pela goela e preencher seu peito. Para os lugares onde não alcançava, havia a foto de sua graciosa esposa, mas dessa vez nem isso era o bastante.

“Minha Ai... O que eu deveria ter feito?” O homem se segurou no altar, nem para si mesmo ele cairia.

/人 ‿‿ 人\

Madoka esperava no fim corredor quando viu Homura chegando, em passos rápidos e um olhar duro. A garota passou por ela sem trocar palavra alguma e subiu as escadarias correndo.

Já no terceiro andar, Madoka foi até o quarto de Homura e a porta estava aberta. Lá dentro, a garota de tranças estava de costas para a porta, olhando para as bonecas reunidas no fundo do cômodo. “Eu sabia que você iria me seguir...”

“Eu não cheguei a ouvir nada,” Madoka disse.

“Saia do meu quarto,” Homura afirmou, sem deixar dúvidas.

As bonecas olhavam para ela, mostrando apreensão.

Madoka buscou se aproximar lentamente, mas a madeira do assoalho produziu um leve estalo.

Uma faísca que fez Homura explodir. “Vá embora!”

Os olhos das bonecas mudaram de cor e seus dentes apareceram. Madoka as viu apontarem em sincronia para ela, para a porta.

Homura cerrou os punhos. “Desculpe, por favor...”

Madoka assentiu tão lentamente quanto andou para trás, saindo do quarto.

“Feche a porta.”

E assim ela fez, fazendo o mínimo de barulho possível, o mesmo para os seus passos pelo corredor.

No entanto, o silêncio foi quebrado pelo som de talheres. Era Chiharu que vinha com uma bandeja com comida, o ótimo aroma do peixe grelhado não combinava com a face melancólica dela. “Eu sabia que isso iria acontecer. Com licença...”

Madoka abriu caminho e observou a mulher parar na frente do quarto de Homura.

“Homura-san, eu trouxe o almoço,” Chiharu disse, “por favor, minhas mãos estão ocupadas, abra a porta.”

Sem resposta.

“Você precisa se alimentar bem agora, seu sangue não pode ficar fraco.”

Depois de um tempo maior de espera, Madoka notou um estremecimento em Chiharu.

“Não volte a agir assim!” ela repreendeu, “sua amiga está aqui vendo isso!”

O som da maçaneta. Madoka viu a porta se abrir e, antes que Chiharu pudesse dar um passo para dentro, as mãos de Homura arrancaram o que ela carregava. Pôde-se ouvir o som da bandeja sendo posto no chão do quarto, seguido pelo fechar violento da porta. A mulher manteve-se a cabeça erguida, mas o seu pescoço se contraiu.

Não havia mais nada para ver. Com o mesmo silêncio de antes, Madoka retornou ao seu quarto.