Meds
Nepotismo
O escritório estava mal iluminado e com uma tensão palpável enquanto um casal se encarava. O ambiente estava trancado e com ordens restritas pra que ninguém interrompesse sob nenhuma circunstância.
Lílian Murdoc olhava pro homem a sua frente estupefata. Alta, longos cabelos ruivos e olhos verdes tão ameaçadores quanto sedutores, apesar de ter a mesma idade do marido que também a observava não aparentava nem três quartos da mesma.
-Você não vai fazer isso! – Ela explodiu enquanto ele mantinha a expressão impassível de sempre. – Ela é uma menina! Uma menina, Igor!
-Se ela não fosse capaz eu não... – Ele tentou começar sendo interrompido por um tapa que a mulher dera na mesa entre os dois.
-Ela não vai nem mesmo passar pelo teste, caramba! – Lílian gritou sem se incomodar com o tom. – Sabe o que vai acontecer se continuar com isso? Vai matar sua filha! E eu não vou me importar em gritar na sua cara: “Eu te avisei”!
Igor Murdoc não aceitava aquele tom de ninguém, mas aquela ruiva simplesmente berrava no seu local de trabalho enquanto ele apenas suspirava e tentava nas meras pausas delas argumentar.
-Não concordei desde o inicio! Que diabos queria com aquela menina aqui?
-Foi decisão dela, Lily.
A senhora Murdoc lançou um olhar furioso ao marido enquanto andava ao redor da mesa pra se aproximar dele.
-E quem se importa em dar o que ela quer o tempo inteiro? Ah, eu esqueci... você Igor! Sempre você! – Ela falou pela primeira com um tom de voz controlado por estar bem ao lado dele. – Você sabe o que todos os outros betas vão pensar?
-Então é com isso que está preocupada, não é? Com o equilíbrio da sua querida equipe favorita? – Ele provocou diminuindo o espaço entre os dois fazendo-a balançar a cabeça negativamente. – Acha que eles podem me acusar de nepotismo?
-Isso não é piada, Igor Murdoc. – Ela falou séria se aproximando os dois deixando a boca bem próxima ao ouvido dele. – Mas se quiser mesmo ir adiante com isso, não espere que eu vá mostrar compaixão. Afinal, é a minha equipe favorita, certo?
-Você não seria capaz, Lily. – Ele debochou das ameaças da esposa enquanto ela se afastava dele.
Ela observou Igor por alguns segundos. Cabelos negros curtos e perfeitamente alinhados, forte e com um olhar quase suplicante raro de se ver. Só quando se tratava de Cibele é que era possível ver uma figura tão imponente como a dele com uma expressão como aquela.
-Acha mesmo querido? Tudo bem então, e pra mostrar meu apoio a sua decisão. – Ela perguntou fazendo-o arquear a sobrancelha enquanto ela aproximou os lábios pra um beijo rápido. – Até já decidi quem vai se responsabilizar por testar a Cibele pra equipe Beta.
Ele sorriu desconfiado enquanto ela levantava o corpo se preparando para sair.
-E quem seria? Demétrio?
Lílian sorriu divertida virando de costas se preparando pra sair virando pra ele pra murmurar em um tom quase inaudível.
-Melhor que isso, amor. Anne.
Igor sentiu uma sensação ameaçadora invadi-lo enquanto olhava a esposa incrédulo.
-Nem você seria... – Ele começou enquanto caminhava em direção a porta em passos elegantes. – Ela é sua filha também Lílian!
Igor Murdoc sentiu o sangue ferver enquanto olhava a porta entreaberta pela qual a mulher acabava de sair, berrava com ele e o ameaçava e ainda saia com um sorriso no rosto o deixando imponente na cadeira. Lílian Murdoc era definitivamente a única que conseguia tal proeza com ele.
Suspirou encostando a cabeça na cadeira. Ela não seria capaz de fazer aquilo com a própria filha seria? Anne era covardia com qualquer que fosse o iniciante a equipe, com a loira delicada e entusiasmada que ele chamava de filha seria simplesmente impiedoso.
-§-
Anne terminava o copo de uísque enquanto observava o infortúnio que seria obrigada a ter de acompanhante levar um golpe patético. De novo. Aquilo seria divertido se ele fosse qualquer outro, mas com ele era simplesmente deplorável.
Terminou o que ainda tinha no copo em um gole acenando pro barman. Ela não tinha parceiros por um motivo bem específico e agora ela teria que lidar com a “Escória de Anne” como ele era gentilmente chamado pelos íntimos, apelido que nem tinha sido ela mesma a criativa pra inventar e popularizar.
Sentiu o som do copo ao seu lado sendo preenchido novamente voltando à atenção pro jovem moreno que colocava a bebida em seu copo. Fez um sinal indicando que estava suficiente enquanto ele se retirava pra atender outros sentados no balcão enquanto ela apreciava o primeiro gole do quarto copo. Uma beta andando escoltada por um sigma, simplesmente uma blasfêmia aos bons costumes da cadeia alimentar. Onde estava a tão prezada regra da hierarquia?
Olhou novamente pra “escória” suspirando, não importa a quantidade de álcool no organismo aquilo continuava indigno pra observação, e depois de tanto tempo fazendo isso percebeu o próprio lapso de dignidade. Em que momento havia permitido a si mesma chegar ao ponto em que estava? No quarto copo de uísque vendo um babaca que tinha que chamar de parceiro levar surra em um fundo de bar.
O som de algo vibrando no seu casaco a fez sair de seus devaneios olhou no visor e sorriu satisfeita. Trabalho. Sim, ironicamente em uma sociedade tão capitalista ela simplesmente adorava o seu.
Pegou o copo que ainda continuava parcialmente cheio e finalizou em poucos goles levantando do banco em seguida. Olhou novamente pro que roubara sua atenção durante todo o seu tempo no bar e se aproximou se irritando mais do que antes com os gritos que os espectadores soltavam com o circo criado por ele e outro com o dobro do seu tamanho.
-Trabalho, guri. – Sua voz saiu seca como de costume fazendo Lucas tirar a atenção do oponente e olhar pra ela assim como todos os outros que assistiam, em uma tentativa em vão ele tentou pedir pra deixá-lo terminar – Odeio esperar.
Ele assentiu com a cabeça dando os ombros pro homem a sua frente enquanto virava de costas pra pegar suas coisas em um canto ao lado. Assim que o jovem se virou o homem com quem antes lutava avançou decidido a finalizá-lo enquanto estava de guarda baixa sendo impedido pela mulher que rapidamente se colocara no meio.
-Se existe algo que eu odeio mais do que esperar. – Ela começou olhando pro homem que agora estático – É covardia no bar.
Todos olhavam apreensivos a cena esperando que o homem não reagisse inclusive Lucas apesar de ser por motivos completamente diferente de todos os demais.
Percebendo o leve movimento da mão dele Lucas se aproximou pensando em uma forma rápida que impedisse o pobre ex-oponente a tomar uma atitude como a que pretendia.
-Você realmente não deveri... – Não completou sua frase pelo fato do homem já ter completado seu movimento jogando o punho contra o rosto da jovem que abaixou em reflexo pra sua esquerda levantando a perna direita e atingindo-o na barriga com um chute aparentemente pesado.
O homem urrou de dor enquanto a apreensão da “platéia” se transformava em susto e o corpo cambaleante do que agora gemia era jogado na mesa atrás de si.
-Vadia... – Ele ainda conseguiu murmurar depois que seu corpo cair no chão fazendo-a se aproximar.
-O que você disse? – Anne perguntou em tom de desafio.
-Nada, eu não ouvi nada. – Comentou Lucas se aproximando de Anne com um sorriso nervoso. – Ele tá bêbado e tenho certeza que se caso tenha...
Ela ignorou completamente a tentativa do parceiro se abaixando ao nível do homem caído sem tirar o foco dele.
-Pode repetir?
-Eu disse vadia! – Ele jogou fazendo Lucas praguejar um palavrão percebendo que aquilo não acabaria ali e Anne sorrir de um jeito sádico estranhamente divertido.
Todos exclamaram quando a viram de repente pegar a mão do homem e puxá-lo até que ficasse em pé novamente.
-Não quis te deixar em desvantagem pra não te deixar sem motivos pra não chorar toda vez que entrar nesse bar e lembrar esse momento.
Antes que lançasse o braço contra ela sentiu o mesmo sendo puxado dando mais impacto ao golpe que com o joelho ela aplicara no seu estômago fazendo-o cuspir algumas gotas de sangue, e sem nem ter a chance de dar continuação ao que fazia sentiu o homem ser afastado de si por mãos de terceiros: Lucas.
-O que acha que está fazendo? – Ela perguntou enquanto Lucas olhava o homem com os dois braços em volta da própria barriga com o corpo curvado gemendo de dor.
-É você que odeia chegar atrasada, certo? – Ele falou apontando o próprio bolso em que podia se ouvir algo vibrar. – E eu acho que já defendeu o suficiente minha honra.
Arqueou a sobrancelha com o comentário dele esquecendo sua ultima vitima de atenção.
-Como se você tivesse alguma pra ser defendida.
Lucas lançou um olhar magoado enquanto ela tirava algumas notas do bolso e colocava em uma das mesas perto da saída do bar.
-A conta, a gorjeta e pra qualquer copo quebrado. – Informou sendo acompanhada até deixar o local pelos olhos instigados de alguns e olhos aborrecidos de outros que não citavam aquela como a primeira vez.
Algum tempo de silêncio com os olhos no homem que gemia até que em minutos o barman serviu outras bebidas e todos voltaram a seus próprios assuntos nem tão interessantes, mas sempre aceitáveis depois de um pouco de álcool.
-§-
Cibele estava ofegante enquanto tentava se concentrar em manter o foco nos movimentos ao seu redor mesmo sem um dos principais sentidos a disposição. Podia sentir os passos e perceber ações alheias mesmo sem enxergá-las, só precisava de foco e estaria pronta pra quem quer que fosse.
Desviou sem dificuldades de um soco que ela realmente esperava que viesse a uma maior velocidade e de forma mais sorrateira, o mesmo aconteceu com outros dois golpes fazendo-a suspirar arrancado a venda dos olhos.
-Você não está me levando a sério... – Ela murmurou balançando a cabeça negativamente sentando em um lugar qualquer do dojo. – Poxa, Demi. Se nem você acha que eu sou capaz disso imagine o que os...
Demétrio arqueou a sobrancelha sentando de frente pra ela. Era alto, forte, treinado há muitos anos e com cabelos quase tão negros quanto à roupa dela. Enquanto a jovem a sua frente exibia seus belos cachos loiros até a altura do ombro e os olhos cor de âmbar com uma frustração que o corroia por dentro só por sentir que aumentara aquilo.
-Não te acho incapaz, Cibele. – Ele começou cauteloso como se estivesse falando com uma criança. – Só acho que talvez você não queira mesmo fazer isso, sabe?
-Você fala como minha mãe... Mas ela só ta preocupada mesmo com a credibilidade da equipe, como se alguém fosse pensar que isso é um tipo de nepotismo, entende?
Demétrio riu com o comentário dela imaginando alguém ser acusado de algo como aquilo em uma organização como aquela.
-De qualquer jeito isso seria meio improvável, afinal você vai passar pela semana que todos nós passamos pra poder entrar, certo?
A loira apenas afirmou com a cabeça pensativa, aquilo também a preocupava. A semana não seria fácil e como sabia que seria a própria mãe que escolheria seu “mentor” tudo ficava ainda mais complicado.
-Perdida no ambiente dos adultos, menina? – A voz não tão grave quanto sarcástica invadiu o ambiente fazendo Cibele revirar os olhos e Demétrio suspirar.
Alto, pele com um tom devidamente bronzeado, cabelos como sempre bagunçados propositalmente e com o sorriso debochado de sempre. A figura masculina invadia o ambiente com seus passos calmos e elegantes.
-Estava demorando Victor, nem acredito que o Demi conseguiu te despistar por tanto tempo... – Cibele rebateu com o tom extremamente provocativo.
-Demi? Há-há, até parece que ele ia querer me despistar. – O moreno de olhos azuis debochou enquanto sentava ao lado de Demétrio ficando a frente de Cibele. – Ele fica triste só por me perder de vista.
Cibele estreitou os olhos para Victor olhando logo depois pra Demétrio que nunca nem comentava sobre a atitude dos dois mais novos.
-De qualquer jeito, estava tentando seduzir o Demi com essa roupinha de meretriz? – Ele começou olhando o top preto com a bermuda da mesma cor que não cobria lá muitas partes do corpo.
-Ah, faça-me o favor Victor. – Ela exasperou com sua expressão emburrada enquanto até Demétrio se permitiu dar um meio sorriso enquanto Victor gargalhava.
-É brincadeira, pequena. – Ele murmurou colocando as mãos nas pernas dela em sinal de paz. – Mas o que estão fazendo aqui, mesmo?
-Cibele quer entrar pra equipe beta. – Demétrio se pronunciou pela primeira vez desde a entrada de Victor. – Eu disse pra ela que lá não é tão bonito, e que ela seria...
-Ah, isso... – Victor interrompeu Demétrio com um tom curioso. – Achei que já tinha desistido da idéia.
-Desistido? Se vai me dizer que também acha que eu vou ser comida viva e que eu não sou... – Ela começou com um tom de voz não tão baixo quanto normalmente.
-Calma ai criança, eu não disse nada. Só previ que desistiria por causa da sua mentora, ninguém quase nunca passa com ela mesmo.
-É a Ísis? – Demétrio perguntou com certa preocupação.
-Ísis? Ah aquela lá foi banida da elite. Vocês são tão desatualizados.
-Por quê? – Cibele perguntou mesmo sem conhecer a comentada, apenas ouvir falar dela.
-Atirou em um porteiro e seu pai ficou bravinho, questões disciplinares e...
-Não importa Vic, quem é a mentora afinal? – Dessa vez Demétrio interrompeu impaciente sobre o futuro da mais nova.
-Ah é isso, ouvi que a Lílian escolheu a Anne.
-Come é? – Demétrio perguntou incrédulo. – Você não pode ta falando sério.
Victor apenas deu os ombros enquanto Cibele sentia sua cabeça girar várias e várias vezes. Aquilo não podia estar acontecendo.
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