Meds

Adaptação


Ísis bufou tirando a peça de roupa branca de dentro da maleta entregue, algo similar a um jaleco e ainda encobria sapatos e calça da mesma cor. Enquanto processava as informações e tentava se acostumar com sua própria realidade, o homem ao seu lado estendeu um pequeno documento.

-É tudo parte de um disfarce. – Ele começou a explicação enquanto ela pegava o cartão e analisava. – Você entra, estuda o território e começa a fazer parte dele até que no momento oportuno realize o trabalho. Leva apenas algumas semanas.

-Semanas?

-É um trabalho de recrutamento senhorita Vermont, precisa conquistar o alvo e isso requer tempo e paciência. A ficha dele está no compartimento ao lado das roupas.

Ela bufou guardando o cartão que agora sabia se tratar de um crachá de identificação, e o resto das coisas que tinha tirado da maleta. Fez um sinal de que havia entendido pro encarregado da área, e saiu carregando seus novos desinteressantes e desmotivantes instrumentos de trabalho, junto com um desejo mortal de trucidar Igor Murdoc. Maldito. Agora além de um talento desperdiçado ela se descobrira caçadora baba ovo de novos talentos.

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“O orfanato estava em um silêncio absoluto como era de se esperar durante a madrugada em uma instituição conservadora como aquela. Todos em seus devidos dormitórios e alojamentos exceto pelo jovem Dante.

A claridade era mínima e a criança parecia extremamente confortável com isso. Estava sentado em uma das esquinas do prédio e não parecia se preocupar com o frio. Ao seu lado três enormes galões de gasolina.

Os cabelos loiros com um tom que quase atingia o branco escondiam parcialmente seus olhos, que fitavam com admiração o isqueiro em sua mão. Brincava observando o fogo que saia magicamente do objeto com o movimento do seu polegar. Era magnífico.

Desviou a atenção por meros segundos pra tocar o chão do corredor molhado com o líquido que evaporava em uma velocidade impressionante. Sorriu pegando uma sacola plástica do bolso e dividindo-a em dois pedaços. Voltou ao isqueiro e ateou fogo em ambas.

Levantou do chão enquanto o fogo consumia os pedaços de plástico e observou os corredores a sua frente. Colocou um pedaço de plástico que queimava em cada uma das extremidades da esquina onde sentava fazendo o fogo correr a sua direita assim como pela sua esquerda.

Como uma dança harmonizada e frenética ele observava o fogo seguir o caminho trilhado por ele mesmo, pelo corredor externo do prédio até atingir o fim de ambos, local onde duas garrafas plásticas com álcool dentro esperavam pra dar clímax ao show.

A explosão causou um espetáculo de luz pra ele e um som ensurdecedor pros que dormiam dentro do alojamento. Não demorou até que o fogo atingisse todos os lugares que devia atingir segundo os planos do garoto que balançava o isqueiro de um lado pro outro divertido.

Os gritos indicavam que tudo estava de acordo com o planejado e ele apenas deu as costas seguindo tranquilamente até a moto. Respirou fundo com um meio sorriso colocando o capacete e se preparando pra subir na moto estacionada a sua frente. Sentiu uma satisfação o consumir até que ouviu um grito perturbador, o que era extremamente incomum pra ele.

Ouviu o a voz feminina em um grito que realmente o incomodou. Então ela gritou seu nome. Tirou o capacete amaldiçoando o dia no qual tinha se permitido contato com algo que não fosse inanimado.

Desviou a atenção do veiculo que o tiraria dali e voltou ao alojamento a sua esquerda que agora estava quase completamente em chamas e alguns pulavam pelas janelas enquanto várias crianças corriam desesperadas de um lado pro outro entre os blocos.

Esperava mesmo que os pirralhos não fossem estúpidos o suficiente pra se jogarem no fogo e suspirou imaginando o que ela estaria fazendo no bloco das madres durante a madrugada. Ele podia até imaginar.

Olhou uma ultima vez pra moto a sua direita antes de decidir sem receio entrar no prédio no qual ainda a ouvia gritar. Porque diabos ele se dava ao trabalho? Ele bem queria saber responder.”

Dante abriu os olhos fitando a parede branca e piscando incomodado com a iluminação. Não sabia o que era mais irritante... a luz, a cor das paredes ou o maldito silêncio. O quarto era minúsculo e a cada minuto se tornava mais insuportável ficar enclausurado como um animal.

Sua cabeça doía, seus movimentos demoravam mais do que geralmente pra serem executados, e ele tinha certeza de que as injeções recebidas na noite anterior não era suplemento alimentar.

Tinha uma fita numerada no pulso que identificava pacientes e roupas surradas que certamente não pertenciam a ele. Eram muito largas.

Levantou sentindo tudo girar e apenas se apoiou na parede sem desistir do que queria fazer, caminhou até o pequeno banheiro também extremamente iluminado com apenas o básico pras necessidades fisiológicas dele. Olhou acima da pia tocando a parte na parede aonde ele acreditava faltar algo. Sem espelho. Nem mesmo no quarto.

“Eles provavelmente aprenderam da ultima vez”

Ele pensou consigo mesmo lembrando o ultimo plano de fuga que traçara. O espelho havia sido bem útil. Só que o maldito lugar era maior, e bem mais vigiado do que ele imaginara. Agora não seria agraciado com pílulas. Tomaria injeções todas às noites que o tornaria incapaz de cometer atos hediondos... deviam aplicar lobotomia logo, o que não duvidaria que fossem capazes de fazer.

Ele só precisava sair dali logo. Sem espelho. Sem reflexo. Sem movimentos rápidos. Perguntou-se como seria capaz de impedi-los de torná-lo impotente assim.

= =

Anne atravessou o corredor em direção a sala principal da equipe beta onde a responsável por toda a equipe a esperava. Lucas a seguiu até metade do caminho com suas perguntas descabidas e comentários desnecessários sobre o comportamento agressivo dela. Ele era tão ridículo, que até ela já tinha desistido de questionar. Melhorava a convivência. Ele falava. Ela ignorava.

Já podia ver a sala quando uma figura curiosa murmurou seu nome. Ele estava sentado da sua forma imponente em uma das cadeiras no salão que antecedia a sala principal, e tinha uma expressão não tão feliz, mas amigável demais para alguém como ele.

-Murdoc? – Ela perguntou vendo-o levantar e se colocar a frente dela.

-Olá, Anne... – Ele começou com uma dificuldade inédita pra Anne. – Eu sei o que está prestes a fazer.

Ela arqueou a sobrancelha sem saber o que ele tinha haver com a vida dela, enquanto ele suspirava e abria a boca como se buscasse palavras.

-Uma nova interna vai tentar entrar na equipe e... – Igor finalmente começou fitando seriamente os olhos castanhos da jovem a sua frente. – A Lily provavelmente vai te escolher pra ser mentora.

Anne pareceu surpresa com a informação apesar de não demonstrar nada com muita exatidão na figura imparcial dela. Ela não era escolhida pra isso há anos, por motivos óbvios.

-Acho que ela mesma pode falar comigo sobre isso, já que ela é a encarregada. – Ela comentou seca como sempre fazendo Igor lançar um olhar preocupado que a instigou.

-É a Cibele... – Ele murmurou fazendo com que tudo fizesse sentido na cabeça da mais nova.

-Que patético Murdoc. – Ela comentou enquanto ele suspirava vendo que ela finalmente entendia o motivo dele estar tento aquela conversa. – Vai agora me pedir pra não ser a profissional de sempre por motivos pessoais?

-Anne, sabe que se não fosse a...

-Ainda bem que eu nunca te olhei como um modelo a ser seguido. Agora me deixa passar porque assim como eu a Lílian odeia atrasos. – Comentou simplesmente fazendo o desespero de Igor aumentar.

-Anne você não pode...

-Não posso? Olha pra si mesmo Igor. – Anne rebateu indo pra esquerda desviando do corpo dele a sua frente. – Você é que não pode fazer isso. E com o meu mau-humor eu podia até relatar isso a alguém, mas como estou de bom humor prefiro deixar você me devendo um favor. E quanto a Cibele... Não espere mesmo que logo eu vá cometer favoritismo. Prefiro ao contrário.

Igor Murdoc sentiu uma pontada no peito enquanto Anne se distanciava. Ele provavelmente tinha piorado as coisas pra pequena. Agora ia fazer o que lhe restava. Ia convencer Cibele a desistir da Meds como devia ter feito anos atrás.

= =

Assobiava uma canção antiga enquanto atravessava tranquilamente o corredor branco, que mais do que qualquer ambiente despertava memórias que ela garantia antes não ter lembrança. Os anos que passara em uma clínica de reabilitação eram eliminados pela memória seletiva, ou pelo menos tinha achado que sim.

Chegou ao final do corredor acompanhando com os olhos uma figura feminina vestida de branco, ela preenchia vários copos descartáveis com respectivos nomes com diferentes pílulas. Uma enfermeira responsável pelos medicamentos. Aquilo era um terror pra sua memória.

A enfermeira abandonou os copinhos pra pegar mais remédio no estoque. E Isis foi até eles lembrando quando ela mesma tinha seu respectivo copo com seu nome anexado. Lembrou do que devia fazer pra que tudo fosse feito, e deu um meio sorriso pensando que o seu método seria muito mais eficiente.

Pegou o pacotinho de balinhas de menta no seu bolso sorrindo travessa para as pílulas nos copinhos, aquele lugar silencioso e organizado estava prestes a ficar interessante.

-O que achaque está fazendo? – A jovem responsável por aquilo que ela usava como diversão exasperou. – Tá maluca?

Ísis fitou o olhar chocado da mulher que voltava com os refis cheios. Tinha se esquecido dela. Era sempre tão desligada, devia começar a ser como o Demétrio sempre falava: Focada, focada, focada.

-Tá me ouvindo garota? – A enfermeira continuou com o tom agressivo se aproximando. – Esses remédios são coisas sérias e...

Ela foi interrompida pelas mãos não tão delicadas que a puxaram pelo pulso e quando deu por si estava de volta ao quartinho que tinha usado minutos antes. Tentou dizer alguma coisa, mas sentiu algo em seu pescoço fazendo-a perder os sentidos.

-Dessa vez eu realmente nem tinha a intenção... – Ísis murmurou olhando a mulher desacordada no chão, mas já que a situação estava ali porque não aproveitar?

= =

Dante estava deitado contemplado o teto se perguntando por que ninguém viera com seu medicamento diário até aquele horário. Seu corpo estava bem, seus movimentos não tão lentos e ele parecia ter uma maior autonomia de si mesmo.

O efeito do que quer que davam pra ele estava passando, grande erro o deles porque com ou sem cacos de espelho pra usar como arma ele sairia daquele lugar de qualquer jeito. Mesmo que fosse com as próprias mãos e o que encontrasse pelo caminho.

Não sabia as horas, a estação e nem sequer o período do dia naquele quarto isolado do mundo, sem nem ao menos uma minúscula janela que o fizesse lembrar que ainda havia um mundo lá fora.

Levantou ao escutar barulhos incomuns vindos do lado de fora. Aproximou-se da porta pra entender o que estava acontecendo e podia ouvir vários gritos, passos apressados e pedidos de ajuda. Talvez ele não fosse o único a ficar sem medicamento naquele dia.

Viu a maçaneta da porta girar e sorriu prevendo que agora finalmente veria se o efeito do remédio tinha passado totalmente, eles estavam fora do horário e iam se arrepender do erro, porque de maneira nenhuma ele ia se deixar ser dopado novamente sem reagir.

Viu uma enfermeira incomum entrar no quarto, ela tinha cabelos negros e não trazia nenhum carrinho ou medicamento visível. Mas nem por isso pensou duas vezes antes de avançar nela com um murro.

Quando calculou que suas mãos deviam estar contra o rosto dela sentiu outro punho atingi-lo em cheio na boca do estomago. Urrou de dor enquanto a jovem vestida de enfermeira sorria curiosa com a atitude dele.

-Tsc, tsc Dante... – Ela comentou enquanto ele se perguntava o que faria agora. – Nunca falaram pra você que precisa controlar essa sua agressividade?

-Quem... – Ele começou avaliando a figura a sua frente se perguntando se o volume na cintura era exatamente o que ele achava que fosse. – Quem é você?...

-Devia ter começado assim e não com um soco, garotinho. – Ela provocou sentando na cama que ele antes deitava tranqüila. – Ou por acaso não tomou seu remédio hoje?