Estamos andando pelos túneis pelo o que parecem horas, depois do ataque que Liz deu. Segundo ela, meus olhos haviam mudado de cor. Para a cor verdadeira de um Conjurador das Trevas.

– Mas por que só mudou agora? - perguntei, pela milésima segunda vez.

– Pela última vez, Mit. Eu não sei. Agora fica quieto, antes que eu lance um Conjuro em você!

– Já calei.

E continuamos andando pelo corredor que parecia não ter mais fim.

– Finalmente! - exclamo.

Olho ao redor. Saímos em uma praça, parece. Não havia porta para delimitar o fim do túnel. Apenas alcançamos o fim de um corredor que, percebemos depois, era um beco aparentemente sem saída. E a praça em si era deprimente.

Dois bancos ficavam frente a frente, cor cinza chumbo. Mas já não eram mais bancos. Eram apoio para as plantas que agora cresciam e tomavam todo o local. Estava escuro; apenas a luz da lua iluminava o espaço. Eu não fazia ideia de como o tempo havia passado tão rápido.

O tempo nos túneis é diferente do tempo aqui de cima.

Então já saímos dos túneis?

Aparentemente sim.

E onde nós estamos?

Ao invés de me responder, Liz aponta para algo mais adiante. Uma grande árvore no meio da praça. Mas por que ela me parece tão familiar?

Porque é familiar. É o carvalho. Onde Camila e Victor se encontravam.

Olho para frente. Como por ímã, sinto meu corpo sendo puxado até lá. Deixo que meus pés me guiem. Percebo que Liz está me seguindo.

– O que você está fazendo? - pergunta.

Mas eu não respondo. Pela primeira vez, tenho certeza de que estou fazendo a coisa certa.

Aproximo-me do carvalho, sem saber exatamente o que procuro. Estendo a mão e só penso que quero que a árvore se revele para mim. Um formigamento corre por meus dedos e uma leve brisa balança minhas roupas. Pouco a pouco, as ervas vão desfazendo seu trançado do caule do carvalho.

– Você está conjurando? - ela sussurra.

– Não sei - respondo sinceramente. - Apenas pedi para que ela se revele. Alguma coisa aqui está errada. Mas não faço a menor ideia de como posso sentir isso.

Liz olha para mim, mas não fala nada.

– O que foi? - pergunto.

– Seu poder. Você é extremamente poderoso. Talvez ainda mais poderoso do que minha avó Sarafine. Nunca senti nada assim. Posso sentir sua aura agora que seus olhos estão dourados.

– Todos os Conjuradores podem sentir auras?

– Não sei. Eu posso.

Paro de prestar atenção à conversa. Aquilo só estava me deixando ainda mais confuso. Liz era, como ela disse, uma Natural, apesar de eu não saber muito bem o que aquilo queria dizer. Sou um Cataclista, segundo ela, e eu continuo sem saber o que significava.

Meu estômago se revira.

– São as marcas... - murmura Liz. - Como podem estar aqui depois de tanto tempo?

Passo a mão sobre as marcas e lembro-me da história de Camila e Victor. Ela, uma Natural. Ele, um Cataclista. Apaixonados e unidos por um destino trágico. Com um susto, percebo que estou pensando nos meus antepassados. Meus parentes. Os pais da maldição que eu carrego.

Por que era um amor amaldiçoado? Por que um Conjurador das Trevas e uma Conjuradora da Luz não poderiam ficar juntos?

O amor deles não foi a maldição, Mit. Amor nenhum é uma maldição. O caminho que escolhemos é que faz a diferença. Todo amor, se for verdadeiro, é uma benção. Todo amor verdadeiro ultrapassa barreiras como Luz e Trevas. Amor é somente magia.

Então por que esta maldição?

Liz não me responde. Talvez nem ela soubesse a resposta. Meus dedos sobre as marcas contavam uma a uma os pequenos traços feitos por Victor. Vinte. E no lugar devia estar a vigésima primeira marca, havia um X. Toquei nele, e quando Liz toca a minha mão, nós viajamos.

~~

Estou aguardando e espero que Camila não se atrase. Olho as marcas e conto vinte. Vinte dias desde que nos declaramos um para o outro. Vinte dias desde que deixamos de ser amigos de infância para nos tornarmos amantes. Vinte dias que foram os melhores de toda a minha existência.

Minha mochila está escondida nas raízes da árvore. Camila e eu decidimos fugir, depois que meu pai descobrira que namoramos. Ontem, ele me seguiu e nos flagrou. Ele já desconfiava e começara a notar meus sumiços à noite. Brigamos aos berros ali mesmo, na praça, acordando toda a vizinhaça. Eu prometi silenciosamente que sairia daquela casa onde nasci e viveria o meu amor com Camila. Meu pai me trancou pelo resto do dia.

Aquietei-me. Nada pode me prender. Não há um único Conjuro que eu não possa desfazer ou fazer. Por isso, fiquei no mais completo silêncio durante o dia, fingindo estar de acordo com as regras do meu pai, baixando a cabeça para tudo o que ele falava. E não olhei em seus olhos nenhuma vez.

Às 23:50, eu fugi. Peguei minha mochila e saí em silêncio da casa, dizendo adeus. Não sinto falta.

Ouço passos leves e urgentes. Viro-me e vejo Camila, linda como sempre. Desta vez, usa um vestido azul escuro, o cabelo preso em uma trança. Seus olhos verdes destacam-se na escuridão. Sorrio e ela sorri de volta.

– Oi - ela diz. Sua voz faz meu coração tremer no peito.

– Oi, meu anjo - respondo.

Ela deixa a mochila cair ao seu lado quando me abraça e me beija. Seus lábios são doces e ternos. Toco em seu rosto, quando nos afastamos.

– Para onde? - pergunta.

– Teremos que ir pelos túneis. Há uma passagem aqui perto. Naquele beco. - Aponto.

– Como? Não há nenhuma passagem ali!

– Agora há. - Sorrio e ela arregala os olhos. Beijo-a rapidamente. - Vamos.

Pego sua mão e nossas coisas, mas quando viro-me para seguir nosso caminho, alguém nos bloqueia. Olho para seu rosto.

– Aonde você pensa que vai? - pergunta. Meu pai.

– Estou indo embora.

– Você não vai. Não vai sujar nosso sangue com... essa mulher.

Dou um passo a frente. Não irei permitir que ele insulte Camila.

– Tenha mais respeito. Estou indo embora. Pode me excluir da sua árvore genealógica e dizer que sou a vergonha da sua família. O amor que sinto irá compensar tudo.

– VOCÊ. NÃO. A. AMA! - ele grita.

Olho para ele com pena. Sim. É a única coisa que sinto neste momento.

– Você não sabe o que é amor. Você nunca amou ninguém. Você só ama ao poder e como consegui-lo. - Paro, observando os efeitos das minhas palavras. - Você não merece nada de mim. E eu não serei mais uma arma para você conseguir poder.

Meu pai me encara. Conheço aquela expressão. Ele está prestes a fazer uma loucura. Mas não é porque não quer me ver, seu filho, indo embora. Ele só não quer perder seu brinquedo, seu status. Sua arma.

– Nem pense nisso, pai. Nem pense nisso.

Puxo Camila para trás de mim.

– Victor... - murmura ela.

– Está tudo bem, nós vamos sair daqui - respondo.

– Você não vai sair daqui, Victor! Eu o proíbo! - meu pai berrou.

– Meu pai, saia da minha frente.

Dou um passo na sua direção, mas ele não se move.

– Estou avisando, Victor. Mais um passo e...

Encaro-o, enquanto caminho lentamente, mas firme. Ao estarmos lado a lado, paro e digo:

– Eu tenho pena de você.

Vejo-o respirar pesadamente, como se tivesse acabado de correr por cem quilômetros. Logo Camila e eu o deixamos para trás e estávamos perto da entrada dos túneis. É quando ouvimos a voz do meu pai:

– Amaldiçoado seja esse amor! Que a Lua veja e em nome da Lua eu falo! Que os frutos desta união sejam todos amaldiçoados! Que a vida se rompa aos vinte e um, a idade em que você abandona sua família e renuncia às Trevas! E que nada floresça!

Um trovão soa no alto. Camila se agarra a mim, tremendo. Sinto medo. Não pelo trovão, mas pelas palavras daquele homem que antes chamei de pai.

– Eu digo em nome da Magia, maior que a Lua, maior que Luz e Trevas - pronuncio. - Um dia, a maldição se quebrará. Outro amor como este irá nascer. Duas crianças caminharão uma para o outra durante muitas vidas. E irão se encontrar. Nós voltaremos, nosso amor renascerá. E quando eles/nós quebrarem/quebrarmos a maldição, o preço será pago.

Olho para meu ex-pai.

– Adeus - digo apenas. E logo eu e Camila entramos nos túneis.

~~

Liz está agarrada a mim, tremendo. Passo os braços à sua volta e ela ergue a cabeça para me encarar. Seus olhos verdes me fitam de forma tão intensa que é como se ela pudesse ler cada pensamento meu. Olho para seus lábios, desejando beijá-los.

– Preciso falar uma coisa, Mit.

– Claro, diga.

– Na verdade, perguntar.

Sorrio e pego uma mecha do seu cabelo, colocando-a atrás da orelha.

– Pergunte.

– As visões... Como você as assiste?

– Como assim?

– Qual perspectiva?

Eu nunca havia pensado nisso. Sempre assisti tudo sob a perspectiva de Victor. Sempre senti tudo o que Victor estava sentindo.

– Sei lá, é como se eu sentisse tudo como Victor... Talvez porque seja o diário dele. Por que está me perguntando isso?

– Porque eu não assisto as visões assim.

– Não entendi. Como?

– Eu não sinto como Victor. Não vejo como Victor. Tudo que eu vejo... é como Camila. E essas visões... não são visões.

Ok, agora eu não entendia absolutamente mais nada.

– Claro que são visões. O que mais podem ser?

– Memórias.

– Sim, as memórias de Victor e Camila.

Liz revira os olhos.

– Às vezes, você é tão lerdo... Bom, sim e não, ao mesmo tempo.

– Legal, agora entendi tudo. Só que não.

– Isso é muito sério, Mitchel. Não faz graça.

– Tudo bem, desculpa. - Dou de ombros. - Mas o que há de tão sério?

– Lembra-se das palavras de Victor? Sobre a quebra da maldição?

– Sim, lembro.

Ela me encara, e parece que nosso cérebro se conecta.

Mit. Você vê tudo sob a perspectiva de Victor e eu, de Camila. O Conjuro do diário apenas se revelou para nós. Uma Luz e um Trevas. Depois de centenas de anos. Aquele Conjuro não era um atalho para as visões.

O que era então?

Liz começa a ficar vermelha. Mesmo no escuro, posso perceber. E é então que entendo tudo.

A atração irresistível, o ímã que parece me puxar para ela, a sensação de finalmente ter chegado onde deveria chegar.

– Éramos nós, Mit - sussurra, e eu olho em seus olhos por vários sengundos antes de falar:

– Somos nós. Sempre fomos.