Marcas da Meia Noite
A resposta está em nós
Encaro Mitchel, surpresa de que ele tenha chegado àquela conclusão tão rápido.
Sim, éramos nós. Essa era a minha desconfiança, desde o primeiro momento em que começamos a ter aquelas visões. Eu sempre as assistia do ponto de vista de Camila, mas me perguntei como aquilo era possível se o diário era escrito por Victor. Foi aí que eu entendi.
Aquele Conjuro não era para nos fazer ver o que aconteceu. Era para nos fazer lembrar.
E agora eu e Mitchel estamos presos um ao outro. Para sempre.
**
– Acho que já sei para onde devemos ir - ele diz.
Ergo uma sobrancelha, olhando-o. Isso era novidade. Geralmente, era eu que guiava, eu dizia o que fazer. E agora é ele que sabe para onde ir.
– Tem certeza?
– Acho... que sim. Bom, analise meu raciocínio. - Ele faz uma pausa. - Nós estivemos na casa do meu pai que era da família por gerações. Talvez tenha sido ali que Camila e Victor viveram.
É, aquilo faz sentido.
– Minha tia Ridley me contou sobre isso, uma vez. Ela... viajava muito, e disse que topou com um Wight, certo dia. A curiosidade foi mais forte que ela. Procurou de onde aquela família tinha vindo, mas não havia registros.
Ele assente, enquanto caminhamos até o final da rua. Dobramos uma esquina, até que ele fala:
– Não sei quando, mas já ouvi algo assim, na casa do meu pai. Provavelmente eles mudaram o sobrenome. Inventaram. Para que as suas famílias não os encontrassem.
– Nunca houve registros disso, até onde eu saiba. Conjuradores são famílias muito tradicionais e que prezam o sobrenome... - Mas lembro-me da história do meu pai. Quando ele conheceu John Breed. Ele também era uma espécie jamais vista antes. Isso não o impediu de existir. Então continuo: - Mas você pode ter razão.
Olhamos adiante e, a mais ou menos uns trezentos metros, vemos duas casas frente a frente, completamente opostas uma a outra.
A casa da direita lembrava uma fortaleza medieval. Altos muros, e até algumas torres. As vidraças da janela, agora cheias de poeira, eram escuras. A porta de madeira aparentava ser pesada. Eu a via como uma noite sombria. Quem quer que morasse ali, não gostava muito de convivência.
Já a casa da direita parecia o sol. O branco predominava na cor e os vidros, mesmo que quebrados agora, eram transparentes. Mesmo que estivessem rasgadas, podia-se ver várias cortinas. No andar superior, várias janelas escondiam o que eu supunha serem quartos.
– Onde estamos? - pergunto novamente.
– Voltando ao meu raciocínio... Bem, estivemos na casa do meu pai, que foi onde Camila e Victor viveram. E também, provavelmente morreram. - Assinto, e ele continua: - Depois viemos pelo túnel e chegamos aqui, no carvalho. E saímos exatamente pelo portal de onde eles partiram.
– Tudo bem, continue - peço.
– Acho que temos que voltar ao início. Nós achamos o diário na casa do meu pai, e estamos vendo as visões na ordem certa. Na ordem das datas.
– E?
Mit pega o diário e o estende para mim. Eu o toco e, no mesmo instante, sinto minha mão formigar.
– Está sentindo? - pergunta. - Eu não podia sentir antes. Mas agora que meus olhos...
– Estão dourados - ajudo.
– Sim. - Ele se mexe em desconforto. Toco em seu ombro e fixo meus olhos nos seus. Mitchel respira fundo e pega a minha mão, entrelaçando nossos dedos. Volta a falar: - Bem, agora eu posso sentir.
– Talvez seja porque seus poderes se revelam completos agora. - Paro. - Mas e por que eu não pude sentir antes?
– Porque eu só sinto quando você toca também.
Olhamo-nos fixamente. Agora que temos uma ligação que ultrapassa muitas vidas, essa coisa, essa atração que eu sinto por ele e que eu tentei negar, fica mais forte a cada segundo.
Tenho vontade de protegê-lo. Estender os braços para ele, abraçá-lo e dizer que vai ficar tudo bem. Mas não só dizer. Quero fazer com que tudo fique bem. E é irônico, porque a última coisa que posso fazer é protegê-lo.
Desvio meu olhar do seu. Ele percebe porque solta a minha mão e volta a observar as casas e depois o diário.
– Acho que devemos tentar desfazer - diz.
– quê? - sobressalto-me. Meus pensamentos estavam distantes.
– O Conjuro do diário. Acho que está enfeitiçado.
– Ah - é minha resposta genial. - Sim, acho que sim.
– Se estiver mesmo com um Conjuro, confirmará meu raciocínio.
– Tudo bem, vamos logo com isso, então - digo. - Toque no diário e pense nele se revelando para você.
– Tão fácil assim?
– Você é um Cataclista, cabeção. Pode fazer o que quiser, só em pensar.
Ele me olha, com um sorriso descarado no rosto. Eu rio, ao ver sua expressão. Faz tanto tempo que não o vejo fazer graça que delicio-me com o momento.
– Tudo, é? - indaga.
– Nem tudo - respondo e percebo meu rosto esquentar. - Vamos logo!
Ele toca no diário e sua mão encosta na minha. Sinto minha pele formigar, mas suspeito que não tem nada a ver com o diário. Fecho meus olhos e concentro-me no Conjuro. Aos poucos as palavras chegam e recitamos juntos:
Ostende nobis teipsum,
Tempus autem non est tempus,
Vita autem non est vita.
Et nos cedamus.
..
Revele-se para nós,
Tempo que não é tempo,
Vida que não é vida.
Entregue-se.
Linhas de fogo envolvem nossas mãos. Abro os olhos e observo Mitchel. Ele está com medo, percebo. Chamo-o e ele me olha.
– Apenas pense - sussurro.
Ele fecha os olhos novamente e eu faço o mesmo. E viajamos.
~~
– Mitchel? - pergunto.
Pela primeira vez, nós somos nós, realmente. Nada de Camila ou Victor.
– Ainda somos nós? - ele pergunta de volta.
– Sim, é o que parece. - Olho ao redor. - Que lugar é esse?
– Não faço a menor ideia.
Mas quando ele fecha a boca, a cena muda.
– E estamos de volta ao mesmo lugar.
– Mas que di... - Mitchel começa.
– Shh!
Parece que voltamos no tempo. E dessa vez, era o tempo de fato. Não nossas memórias. E eu soube disso porque via duas pessoas saindo das casas gêmeas contrárias.
– Olha - murmuro para Mitchel.
– São...?
– Acho que sim.
– As duas sombras se aproximam de nós. Começo a prestar atenção nos traços da menor. Os gestos são suaves. O seu vestido vai até o chão. Ela caminha até a mim.
– Camila - digo.
Ela sorri. Olho para Victor, e ele está em frente a Mitchel.
– O que querem de nós? - pergunto.
– Não - diz Camila, com a voz suave. - O que vocês querem de si mesmos?
– Não entendo - Mit fala.
– Lembrem-se de uma coisa - dessa vez é Victor que diz. - O amor exige sacrifícios. Nem sempre é o que esperamos. E pode haver mais de uma maneira dele se realizar.
Mitchel franze a testa.
– Isso não muda muita coisa.
Camila sorri e responde:
– Acredite. Muda tudo.
Então eles estendem as mãos e nos tocam. E nos unimos.
~~
Já não somos mais somente Liz e Mitchel. Agora somos também plenamente Camila e Victor. E o sentimento, percebo agora, nasce de novo.
Estamos voltando no tempo. As páginas do diário se reorganizam.
A resposta está no passado, está no presente.
Entramos na casa da noite.
A resposta está em nós.
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