– Valentino? – Mitchel indaga, surpreso.

– Sim, algum problema? – o senhor pergunta de volta.

– Mit, mudaram o sobrenome, lembra? – sussurro.

Olho para aquele homem decadente à minha frente. Nada nele me causa medo, exceto seus olhos amarelos. É, eu sei que os olhos de Mit também são amarelos. Mas tem alguma coisa naquele senhor, Richard, que irradia ódio. Ódio, desprezo, raiva. Ele não me encara e, quando o faz, vejo-o se fixando nos meus olhos verdes. Verdes de uma Conjuradora da Luz.

Mitchel se coloca diante de mim, numa atitude protetora.

– Tudo bem – diz. – O senhor nos chamou aqui e aqui nós estamos. Agora diga o que quer conosco.

Richard balança a cabeça, voltada para o chão, com um sorriso triste no rosto:

– Vocês não entendem...

– O senhor poderia nos explicar – replico.

Ele levanta seu olhar para mim e me observa. Não ouso mover um músculo do meu corpo. Então continua:

– Há muito tempo que não vejo olhos como os seus, senhorita. Há muito tempo...

– Desde que amaldiçoou Victor e Camila? – Mitchel intervêm, e noto raiva em seu tom de voz. – Desde que amaldiçoou toda a minha família, tirou de nós a nossa chance de viver, por incontáveis gerações?

Os ombros de Richard se arriam e ele se recosta na cadeira. Eu poderia até dizer que ele está triste com tudo isso. Mas seria esperar demais.

– Acho melhor vocês se sentarem – fala.

– Estamos bem aqui – responde Mit.

– Tudo bem, então serei breve. – Respira fundo. – Vocês já ouviram falar em algo como O Livro das Luas?

Arquejo. É claro que eu já tinha ouvido falar daquele maldito livro. O livro que amaldiçoou minha família, que levou meu pai a se suicidar para salvar a Ordem das Coisas e então retornar para ficar com minha mãe. O livro que cobrou o preço mais alto que poderia existir: a sobrevivência do mundo.

– Ele não está mais aqui – digo, com a voz um pouco trêmula. – Não está mais no plano Mortal.

– Ah, sim, eu sei bem disso... – Richard me encara. – Uma Duchannes. Claro. Filha de uma Conjuradora da Magia com um Mortal.

– O que tem isso?

– Qual melhor combinação que um Cataclista que teve seus poderes oriundos do Livro das Estrelas e uma Natural com poderes do Livro das Luas?

– O que você está dizendo? – pergunta Mitchel.

Mas o velho não responde. Ele está olhando para mim, está esperando a resposta de mim. E minha cabeça está dando mil voltas.

A maldição da minha família, Mit. Tudo foi causado por causa do Livro das Luas. Genevieve Duchannes usou o Livro para trazer seu amado de volta da morte. Mas o Livro sempre tem um preço. E o preço foi a Invocação de todas as crianças da família Duchannes. Exceto uma. “A primeira será Invocada, mas a segunda poderá escolher.” Sarafine, minha avó, foi a primeira Natural depois de Genevieve. Ela foi Invocada para as Trevas. Mas minha mãe foi a segunda. Ela pôde escolher.

E o que isso tem a ver com nós dois?

Aconteceram muitas coisas...

Tipo?

Não importa isso agora, Mitchel. O que importa é que Richard tem razão sobre uma coisa: meu poder vem dO Livro das Luas. Sou a filha Natural de uma Conjuradora das Trevas e da Luz com um Mortal. Sou aquilo que não deveria existir. Mas só existo por causa do Livro.

Olho para Richard. Durante todo esse tempo, ele esteve observando a nós dois, eu e Mit.

Liz. O que é esse Livro das Estrelas?

Tudo é Luz e Trevas. Se O Livro das Luas é das Trevas, O Livro das Estrelas é da Luz.

Como pode saber isso? Como pode saber que ele não está mentindo?

Meu pai encontrou os dois livros. Um, o da Luz, já estava guardado em segurança. E meu pai levou o outro para o mesmo lugar. Assim não poderia fazer mal a ninguém.

– Você sabe que é verdade, menina – Richard se intromete. – Sabe que tudo o que falo é verdade.

– Pode ser – respondo. – Mas como conseguiram O Livro das Estrelas?

– Estava na família de Camila por gerações. Era a herança dela.

– O que ela fez? – Tento me controlar, mas o desespero e o medo é perceptível em minha voz.

– Ela o levou, ao partir com Victor. Não sei o que ela fez com o Livro.

Respiro fundo. Até agora, nada disso faz sentido.

– O que isso tem a ver comigo e Liz? – Mitchel pergunta. – O que os Livros têm a ver com nós dois?

– As almas de vocês pertencem aos Livros. – Richard dá de ombros. – Vocês devem se entregar a eles.

– Como assim, nossas almas pertencem aos Livros e nós devemos nos entregar a eles? – pergunto, com medo da resposta.

O meu poder. Sei que não nasci com ele por acaso. O poder sobre a Vida e a Morte. Ou talvez, somente sobre a Morte.

É isso, não é? Eu nunca senti nada que me ligasse a alguém para salvá-lo. Eu sempre pensei nos motivos para morrer, e não para viver. O Livro das Luas pertence às Trevas, assim como meu poder. Não porque ele é destrutivo, porque é mau. É somente o que ele é. É das Trevas. Mesmo que eu tenha sido Invocada para a Luz.

E Mitchel. Mitchel é a outra parte. A Vida. É isso que o poder dele é, da Luz. Do Livro das Estrelas. Um Conjurador das Trevas, um Cataclista, com poderes da Luz.

As lágrimas começam a escorrer por minha face.

– Sempre foi assim, não é? – murmuro. – Nunca houve uma saída. Meu destino não era salvá-lo.

Mit vira-se para mim, depressa.

– O que quer dizer?

Encaro aqueles olhos amarelos que me fizeram sentir única em apenas poucas horas. Tudo o que passamos, em um único dia. O sentimento que já morava aqui, e só não sabíamos que existia. Era um amor antes da primeira vista. Um amor que continuou vivo ao longo dos séculos, enquanto nossas almas se buscavam e caminhavam uma para outra.

Agora entendo que não é por acaso. Não foi por acaso que O Livro das Luas amaldiçoou minha família. Não foi por acaso que justo meu pai, um Mortal, o tenha encontrado. E encontrado também O Livro das Estrelas. Tudo tinha que acontecer. Eu tinha que estar preparada para o meu destino.

E meu destino não era salvar Mitchel. Nunca foi.

Victor fora arrancado de Camila.

Meu destino era...

Meu destino é...

Caio de joelhos e Mit me ampara. Olho para Richard, que está desaparecendo.

– O que devo fazer? – pergunto para ele.

– Você sabe o que tem que fazer, senhorita Duchannes. Você sempre soube. Todo esse tempo, eu a preparei para isso. É o único jeito. E, Mitchel. – Pausa. – Perdão, filho. Eu me arrependi assim que Victor foi embora. Nunca me perdoei por tudo isso.

– Espere! – grito. – Vai dar certo?

– Espero que sim, Liz Duchannes Wate. Eu espero que sim.

Então ele desaparece e Mitchel me segura em seus braços, levando-me para a cama.

– Liz, o que ele quis dizer? – pergunta. O desespero e a preocupação é visível em seus olhos. – Como assim, dar certo?

Respiro fundo, mas não consigo conter as lágrimas. Seguro sua mão direita e a aperto contra meu peito.

– Está sentindo? – sussurro.

Vejo-o engolir em seco, mas não responde.

– É o meu poder, Mitchel. Ele reage a você. Eu não posso tirá-lo.

– Não...

– Só você pode. Só você pode, Mit. Precisa fazer isso.

– Mas você vai...

– É o único jeito. Devolver os nossos poderes, que não são nossos. São eles que mantém essa maldição.

– Mas eu não tenho poder... – tenta discutir.

– Você tem, Mit. Eu tenho poder somente sobre a Morte, mas você tem sobre a Vida. Não são nossos, não pertencem a nós. Temos que devolver para a maldição se quebrar. Um Cataclista não pertence ao Livro das Estrelas, assim como uma Natural não pertence ao Livro das Luas.

– O que vai acontecer?

– Temos que entregar nossos poderes.

Ele assente, então fecho os olhos.

– Coloque sua mão sobre meu peito – peço. – Está sentindo, não está? – Coloco minha mão direita sobre o peito dele. – Não precisamos dizer nada. Apenas pensar nos nossos poderes. Pense que está tirando-o de mim, como se estivesse sugando um veneno.

– O que pode acontecer? – pergunta.

Abro os olhos.

– Tudo vai dar certo, Mit. Acredita em mim?

Ele assente de novo e fecha os olhos. Eu o observo mais um pouco e o chamo:

– Mitchel.

Abre os olhos e dizemos ao mesmo tempo:

– Eu amo você.

Então nos concentramos e eu sinto. Sinto o poder vindo.

O poder. A Vida.

A Morte.

Não!

Morrendo. Nós dois.

Mitchel me encara e se aproxima de mim, tocando meus lábios com os seus.

Me desculpe, Mit.

Eu te amo.

Eu amo você.

Não deu certo.

E nossos corpos caem, sem peso, sem vida, sobre a cama.