Marcas da Alma

Marcas da Alma: Parte 2


Keith acordou com um solavanco de Krolia e o lobo cósmico sobre si. Seu rosto estava úmido e a respiração pesada.

— Keith! Você estava gritando!

Lobo uivou, como se concordasse com ela.

Keith se afastou fechando os olhos, mas voltou a abri-los quando o animal lambeu seu rosto. Ele tinha tido um pesadelo com Shiro, mas a sensação era estranha, diferente de um pesadelo comum.

— Você está bem?

Keith fitou os olhos preocupados do lobo em sua direção, fugindo dos violetas de Krolia, mas quando tentou afagar o pelo azulado do animal seu braço estava dormente demais e sequer levantou. Keith o tocou relutante sabendo que Krolia o avaliava com o olhar.

— Ela está doendo?

— Hum, sim... – admitiu envergonhado, acariciando a parte de trás da orelha do lobo com a mão direita.

— Há algo que eu possa fazer? – a galra questionou preocupada.

— Não... estou bem, foi só um pesadelo.

Krolia franziu o cenho incomodada.

— Você estava gritando o nome do seu humano – comunicou.

Keith arregalou o olhar. “Seu humano” era uma expressão intrigante, mas não podia dizer que não gostava dela. Em seu sonho, via Shiro com uma aura negativa, um olhar furioso e uma voz distorcida. Ele lhe dizia coisas horríveis, mas no momento não se lembrava muito bem delas, no entanto, o sentimento de medo e dor por Shiro estavam lá. Aquele realmente não era o seu Shiro e, embora não soubesse o quão distante aquela visão do abismo quântico estivesse, ele sabia que lutaria por Shiro sempre que ele precisasse.

Keith fitou a galra e depois anuiu.

— Foi só um pesadelo com a visão do abismo quântico.

— Aquele homem não parece ser um bom parceiro – Krolia respondeu séria ao se recordar da visão do filho.

— Aquele não era ele, o... o meu humano é uma ótima pessoa. O universo não o merece.

A galra tombou a cabeça para o lado, refletindo sobre.

— Ele é atual o líder do Voltron, acho que isso diz algo sobre ele – ela ponderou – Agora vá dormir, eu posso ficar.

Keith quis debater, mas se já havia caído no sono era melhor atender aos comandos da mais velha. Anuiu desgostoso e então foi se deitar dentro da caverna, lobo o seguiu e dormiu contra seu tronco, o esquentando durante a noite inteira.

Foi necessário dois anos para que o organismo espacial completasse a volta no abismo quântico. Durante esse tempo, Krolia e Keith estreitarem seus laços de uma forma natural, tanto que agora o jovem paladino tinha certeza de que a mãe estaria ao seu lado até o fim, fosse na guerra contra os galras ou em sua vida privada; e Krolia fazia questão de expressar seu afeto e sua preocupação pelas questões humanas de Keith, como o fato dele ficar doente com maior facilidade que os galras.

Quando chegaram ao outro lado do abismo, o que menos esperavam era encontrar uma alteana sobrevivente. Depois que Romelle contou-lhes quem era e o que Lotor havia feito consigo e com os alteanos de sua comunidade, Keith decidiu que precisavam retornar com urgência ao Castelo a fim de desmascará-lo. Nunca havia gostado de Lotor e depois da revelação de Romelle, só esperava que seus amigos não estivessem em perigo.

Keith trincou o maxilar com a possibilidade de Shiro estar machucado ou em risco justo quando estava longe, sem conseguir defendê-lo de qualquer inimigo, e tal pensamento fez sua marca pulsar forte e uma angústia sem precedentes tomar conta de si.

— Keith, você está bem? – Krolia disse ao cruzar a porta da cabine de comando da nave alteana em que estavam.

— Sim – respondeu sério, monitorando os sensores do visor.

Ele estava bem, o problema era exatamente esse. Enquanto ele esteve seguro num organismo espacial por dois anos, seus amigos estiveram ao lado de Lotor e, agora, ele não tinha notícias de como estavam.

Keith queria desesperadamentecontatá-los!

Foi preciso estar longe para que Keith finalmente aceitasse que o Voltron era sua nova família. E agora ele só esperava que estivessem seguros.

— Sei que está preocupado com seu humano, mas com base em tudo que me contou, tenho certeza de que ele está bem.

Keith fitou a mãe de esguelha. Desde a descoberta de Romelle eles não tiveram tempo para conversarem sobre a verdade de Lotor e como ela havia lhe impactado, então para que Krolia percebe-se seu atual estado era porquê ele estava demonstrando sua preocupação de alguma forma.

— Como está Romelle? – questionou, tentando mudar o tópico da conversa.

Amava Krolia, mas “Shiro” ainda era um assunto delicado, principalmente naquele momento em que corria perigo.

— Dormindo, Lobo está com ela – respondeu terna, sentando-se no banco de co-piloto e colocando o cinto – Para onde vamos?

— Programei a nave para o sistema solar mais próximo, lá deveremos ter alguma informação sobre o Voltron e, consequentemente, meus amigos. Eles devem saber onde Lotor está e o que deveremos fazer com a informação dos campos de concentração de alteanos.

— É um bom plano. Keith, tem certeza que não quer conversar sobre o seu humano? Eu sei que ele é importante para você.

O paladino suspirou pesadamente. Certo, as habilidades maternais de Krolia também haviam sido ampliadas durante a convivência.

— Só espero que ele esteja bem.

— Keith, você tem certeza de que a sua marca não o prejudica de alguma forma, certo?

— Sim, mãe.. er, quer dizer, Krolia.

A galra sorriu para si com seus olhos brilhando afetuosos.

— Você pode me chamar assim, filhote.

— Ok – Keith concordou, sorrido envergonhado ao ouvir novamente aquela palavra galra no tradutor alteano. No instante seguinte, o painel de comando começou a piscar, atraindo sua atenção – Oh, a nave detectou alguma coisa! Vamos checar!

Keith acelerou os propulsores e assim que esteve perto o suficiente, identificou aquilo que mais queria: o Castelo. Ele não sabia porquê e nem como o Castelo estava daquele lado do universo, mas vê-lo ali fazia seu coração disparar e seus olhos brilharem de ansiedade.

— Atenção, nave alteana, identifique-se – a mensagem de voz de Shiro vinda do Castelo apareceu em seu visor e Keith só conseguiu sorrir e olhar para Krolia, que preparava as funções armamentistas da nave que pilotavam.

— Mãe, não! São eles!

As íris violetas focaram em Keith.

— Seus amigos? Seu humano?

— É exatamente ele! – Keith sorriu animado, mas logo seu sorriso diminuiu conforme as bochechas ficavam vermelhas – Ah, por favor, não o chame assim, sabe? Ele não é meu humano...

Krolia tombou a cabeça para o lado, confusa. Os galras tinham seus parceiros marcados exatamente por isso, não fazia sentido para ela que os humanos não tivessem esse tipo de marcação de território. Uma vez, o pai de Keith havia comentado sobre um ritual terráqueo que tinha a mesma função das marcas galras, mas depois ela descobriu que esse ritual era frágil e que se os humanos não estivessem mais interessados, eles poderiam diluir o ritual. Se galras tentassem aquilo, eles morriam.

Ela definitivamente não entendia os humanos.

— Eu vou responder – Keith comunicou animado, ligando o visor e o áudio de sua própria nave – Shiro, aqui é Keith.

— Keith! Você... Você está bem?! – a voz surpresa de Shiro era como um alivio para seu coração preocupado.

— Onde você estava? – Keith conseguiu identificar a voz de Pidge ao fundo.

— E como conseguiu essa nave? – Coran perguntou em seguida.

— Ele está um pouco maior para vocês? Ele cresceu, né? – foi a vez de Lance se pronunciar.

— Onde está o Lotor? – Keith perguntou, interessado na real causa.

— Ele está no campo Quintaessencial – Hunk respondeu.

— Não pode ser! – Keith grunhiu, olhando preocupado para Krolia ao seu lado.

— Coran, prepare o Castelo, eu vou pousar – Keith cortou as demais perguntas, já preparando a nave para entrar nas defesas do Castelo.

Quando a nave aterrissou, Keith se reencostou no assento e inspirou profundamente. A marca em seu braço pulsava forte e uma sensação desconfortável atingia seu estômago, tudo porque dali a dez metros estava Shiro. Depois de tanto tempo, de toda a preocupação com seu bem-estar, ele estava ali.

Vivo.

— Keith... – Krolia o chamou.

— Vá acordar Romelle, eu irei encontrá-los – disse rápido, impedindo qualquer tentativa da maior em falar sobre o paladino negro.

Ele retirou o cinto e saiu da cabine, passou por Lobo que levantou a cabeça curioso e então Romelle despertou, coçando um dos olhos.

— Nós pousamos? Onde estamos?

— Seguros – Keith disse com um sorriso satisfeito adornando os lábios.

Ele caminhou até a saída da nave e abriu a escotilha. Assim que viu seus amigos reunidos no galpão e Shiro entre eles, sua vontade foi correr e se jogar nos braços do amigo, se certificando de que ele estava bem. A latência em seu braço era só mais uma prova de como seu coração estava disparado pela visão dos olhos castanhos tão ternos em sua direção.

— Keith... como é bom ver você! – Shiro foi o primeiro a falar, e Keith podia jurar que todos ali ouviam as batidas aceleradas de seu coração.

— Peraí, como a gente vai saber que você é o Keith verdadeiro e não o irmão mais velho e mais legal dele? – Lance questionou desconfiado, andando em sua direção.

E todo o sentimento pacífico que Keith tinha tido há segundos havia sido dissipado pela burrice do paladino azul.

— Eu não tenho tempo para isso, Lance! – grunhiu, passando por ele.

— Aí, galera, o Keith tá de volta!

— A gente tem que impedir o Lotor. Ele mentiu pra todos nós – Keith disse firme, mantendo o olhar em Shiro.

— Mas mentiu sobre o quê? – Shiro questionou confuso.

— Sobre tudo! – Romelle gritou mais atrás, saindo da nave com Krolia e Lobo.

— Você... você é uma alteana! – Coran falou estupefato.

— Quem é essa galra?

— Isso é um lobo?

— De onde você veio? – Coran questionou à Romelle.

— Eu prometo que explico tudo quando a gente pegar o Lotor – Keith ditou.

— Não temos como — Pidge falou – ele entrou no campo Quintaessencial com a Allura.

— Mas a gente já viajou para outras realidades antes! – Keith refutou – a gente não pode ir até lá e atacar?

— Ela disse que a Allura tá com ele, a gente não pode machucar ela! – Lance falou irritado.

— E por que a gente vai atacar? – Hunk perguntou ingenuamente.

— Keith, pessoal, vamos nos acalmar e quando eles voltarem nós vamos resolver isso – Shiro foi quem ditou a sentença final, mas Keith jamais reclamaria de tê-lo ali liderando o grupo – Lance tem razão, você mudou mesmo – Shiro disse com um sorriso genuíno adornando os lábios.

Keith olhou para ele e sentiu seu peito esquentar. O sorriso de Shiro era o mais bonito que já havia visto e tê-lo sendo direcionado a si fazia sua marca pulsar de acordo com seu coração tolamente apaixonado.

— De onde eu vim o tempo é diferente... – explicou, sorrindo.

— Shiro, eu sou Krolia – a galra tomou à frente e estendeu a mão para o paladino negro, que a cumprimentou educado – Keith me contou tudo sobre você. Obrigada por cuidar para que ele se tornasse o homem que é hoje.

Keith olhou a mais velha chocado. Ele não esperava que depois de todas as suas conversas sobre o “seu humano” ela viria a agradecê-lo por qualquer coisa. Ainda assim, ele sabia que ela estava fazendo aquilo por ele, como uma forma de apoio.

Keith deu um passo à frente.

— Krolia é da Espada de Marmora e... também é minha mãe – comunicou envergonhado, mas logo voltou a fitar os dois à frente pela fala seguinte de Shiro.

— É uma honra conhecê-la.

Keith tinha certeza que o universo realmente não merecia Shiro. Ele se lembrava de quando todos souberam que era um mestiço, um humano-semi-galra, e como o trataram diferente de início, com exceção de Shiro. Por isso, Keith sabia que ele realmente estava feliz por estar conhecendo a sua mãe, independentemente da origem dela.

Seu momento de reflexão foi cortado por um Lance dramático. Após mais questões, Romelle contou sua história, a verdade sobre Lotor e, ao final, todos estavam chocados. Minutos depois, a nave em que Lotor e Allura estavam foi mostrada no mapa do Castelo e assim que o grupo decidiu esperar pelo retorno do príncipe galra, Keith grunhiu.

Lotor era um monstro e eles deveriam pegá-lo o mais rápido possível! Mas seu plano saiu completamente da linha quando o Castelo foi invadido e Shiro ajudou Lotor a escapar. Keith não pensou duas vezes antes de pilotar o Leão Negro e ir atrás deles.

Naquele momento, seu verdadeiro objetivo era resgatar Shiro. Keith não entendia o porquê do amigo estar ajudando Lotor a fugir, mas ele sabia que havia alguma explicação para aquele comportamento atípico. E Keith também sabia que iria até o final para trazê-lo de volta, nem que isso colocasse a sua própria vida em risco, por esse motivo ordenou que o Voltron se separasse na luta espacial e, assim, o empuxo o levasse ao buraco-de-minhoca pelo qual a equipe de Lotor tinha passado. Quando atravessou o portal e viu todas as naves galras, Keith tentou batalhar, mas assim que uma nave pilotada por Shiro tomou outra rota, ele a seguiu até uma instalação galra abandonada.

Keith se deixou guiar por sua marca. Ele se tornava mais quente e mais pulsante conforme estava perto de Shiro, agindo quase como um rastreador dele. Nesses momentos, Keith sabia que seus sentimentos tinham até mesmo um ponto positivo. Da primeira vez em que o mais velho havia desaparecido, não desistiu de encontrá-lo por dois motivos: porque Shiro havia prometido nunca desistir dele – e Keith tinha assumido esse promessa de uma forma recíproca – e também porque a sua marca era um indicador de sua ligação com Shiro, o lembrando todos os dias que ele tinha alguém por quem valia a pena lutar.

Seu sentimento era o mais puro dos humanos, afinal.

Contudo, assim que pousou na estação espacial galra e viu que haviam diversos clones de Shiro, Keith sentiu o pânico se instaurar. Aqueles não eram Shiro, eram clones, mas ainda assim eram Shiro’s e também precisavam de sua ajuda, mas quando cogitou salvá-los, Keith ouviu a voz de Shiro atrás de si e então reconheceu a visão do abismo quântico.

A aura negativa, a voz distorcida e os olhos furiosos eram os mesmos de sua visão, e Keith não sabia dizer se aquela seria a última vez que se veriam, se ao menos conseguiria tirá-lo daquele controle mental. Allura havia comentado que era Haggar o dominando e o brilho violeta nas íris castanhas faziam-no acreditar naquela teoria. No entanto, mesmo que tentasse conversar, mesmo que lutasse contra ele, Keith não conseguia pará-lo.

O paladino negro havia feito tanto por ele... Shiro era a pessoa que Keith mais amou depois da morte de seu pai – até mesmo mais que Krolia – e vê-lo tão perdido, tão fora de si, o machucava e o impedia de atacá-lo de verdade. Seu coração se apertava com o medo de perdê-lo para sempre e sua marca era outro lembrete de que não podia deixar aquilo acontecer de modo algum.

Quando a lâmina galra estava contra sua própria espada, numa batalha acirrada pelo controle, Keith sentiu medo de morrer, mas o seu maior medo era o de falhar com Shiro naquele momento.

— Shiro, por favor, você é meu irmão... – Keith grunhiu com a lâmina se aproximando de seu rosto. E naqueles últimos instantes, ele quis dizer algo que talvez não tivesse outra oportunidade para se confessar – Eu... eu amo você.

A marca queimou como da primeira vez. Dizer aquelas palavras, naquele momento especifico, tinha um verdadeiro peso para ele e assim que conseguiu uma brecha, cortou o braço mecânico de Shiro. Seu corpo inteiro estava dormente, seu braço esquerdo era praticamente inútil naquele estado, mas quando a estação espacial começou a cair, foi com ele que Keith segurou Shiro consigo, o impedindo de morrer.

Foi o seu braço marcado pelo seu amor que segurava àquele cujo seus sentimentos eram direcionados e foi ao constatar isso que Keith preferiu cair junto a Shiro a soltá-lo pelo seu próprio bem.

Ele jamais viraria suas costas para Shiro, fosse um clone ou não.

Porque além de seu humano¸ Shiro era o seu universo.¹