Caspian

Eu estava desesperado. Eles levaram Susana, eu tenho que encontrá-la... Antes que seja tarde demais. Não quero nem imaginar o que irão fazer a ela. Vi claramente a malícia nos olhos daquele mercador. Não, não posso deixar isso acontecer com Susana...

Mas onde ela está?

Está tudo escuro e não importa para onde eu vá, só enxergo a escuridão. Não havia sinal de luz ou de alguém, os gritos de socorro de Susana ecoavam alto, atormentando-me, me deixando desesperado. Mas eu não conseguia e começava a chegar à conclusão de que já era tarde de mais.

Foi quando ouvi uma voz familiar me chamar.

Caspian? Caspian, acorde... Eu estou aqui, vai ficar tudo bem... Vamos acorde, por favor...

Era a voz dela. E estava cada vez mais perto. Lentamente, fui abrindo os olhos.

-Caspian? - a voz doce e calma ao meu lado. Assim que minha visão desembaçou foquei na dona da voz.

-Susana...?! - minha voz era muito fraca.

-Estou aqui. - ela tocou meu rosto. Parecia um sonho, mas não era. E eu agradeci por isso.

- Susana! - me sentei, abraçando-a fortemente, sentindo um alívio imediato. - Ah, Su, eu fiquei tão preocupado! Me desculpe, me desculpe por não ter ido ajudar você... - eu afagava seus cabelos, abraçando-a fortemente.

- Tudo bem, Caspian, não há o que desculpar... Você não podia fazer nada. - falou ela, calmamente.

- Eles fizeram alguma coisa com você? - segurei seu rosto entre minhas mãos, olhando-a nos olhos. - Susana, eles machucaram você?

- Não. Eu estou bem – ela sorriu. - Graças a ele. - ela olhou para um homem parado mais atrás, nos observando com um sorriso leve.

- E quem seria ele? - perguntei.

- Não o reconhece? - perguntou ela, sentando ao meu lado enquanto o homem se aproximava.

-Me parece familiar, mas não recordo de onde o conheço. - falei, olhando para ele.

-Meu rei. - ele fez uma reverência. - Sou Bern.

Então tudo ficou claro.

- Lorde Bern?!

- Sim. - disse Susana. - Ele me comprou dos mercadores... Por apenas cento e cinquenta moedas de ouro, dá para acreditar?! - brincou ela.

- Nossa, tudo isso? - brinquei e ela me deu um leve soco no ombro. Nós três rimos. - Devo agradecê-lo por ajudá-la. - disse a Lorde Bern.

-Não foi nada, Milorde.

-Não foi nada? - perguntou Susana. - Foi muito. Graças ao senhor me livrei das garras daquele mercador.

-Nem quero pensar no que poderia ter acontecido... - sussurrei. Alguns segundos de silêncio foram cortados por gritos vindos do lado de fora.

Nos direcionamos para a minúscula janela aberta grotescamente na parede, espiando pelas barras enferrujadas de ferro. Era uma espécie de carroça, e esta trazia pessoas acorrentadas. Logo atrás do veículo, vinha uma pessoa, gritando e correndo, na vã tentativa de resgatar alguém que fora capturado. Era um homem, e ele gritava um nome.

-Elaine! Elaine! - ele estava desesperado para alcançar o carroça, mas os mercadores o pegaram e acetaram-lhe murros, deixando-o bem longe das pessoas capturadas. A mulher em questão, gritou de volta, chamando por ele, um nome que não entendi. - Eu vou encontrar você, meu amor, eu prometo! - garantiu ele, vendo que não conseguiria alcançá-la.

-O que está acontecendo? - perguntou Caspian para Lorde Bern.

-Vai olhando. - disse o velho.

Vimos as pessoas ainda acorrentadas chagarem ao cais e serem postas bruscamente dentro de dois botes, esses botes seguiram em direção ao mar. De repente, de forma sombria e assustadora, o céu que já estava banhado pelos raios de sol de um novo dia, escureceu e das águas azuis surgiu uma névoa densa e verde que envolveu os botes. Questão de segundos depois, o nevoeiro desaparecera misteriosamente, do jeito que surgira, o dia clareou e não havia mais vestígios dos botes e muito menos das pessoas. Reprimi o susto.

-O que aconteceu?!

-É um sacrifício. - disse Lorde Bern. - As pessoas que não são vendidas para o Senhores são entregues ao nevoeiro.

-E para onde elas são levadas? - questionou Caspian.

-Ninguém sabe. - lamentou Bern. - O nevoeiro foi visto primeiro no leste, registros de pescadores e marinheiros desaparecendo no mar. Nós, Lordes, fizemos um juramento; iríamos atrás da fonte do nevoeiro e o destruiríamos. Todos partiram, nenhum voltou.

Caspian e eu trocamos um olhar.

-Temos que encontrar Eustáquio... Antes que seja tarde demais.

[…]

Naquela mesma manhã, assim que o sol surgiu completamente no céu, os mercadores voltaram. Eles nos algemaram e nos empurraram para fora da cela e, assim, para fora da prisão. Nos empurraram em fila indiana pelas ruas desertas da cidade, andávamos por uma parte alta de onde podíamos ver, lá em baixo, a praça principal, onde os escravos eram exibidos por Pug em cima de um palanque para os compradores grotescos. Escutei uma voz ao longe.

-Eu ganhei o premio de Higiene Escolar dois anos seguidos! - reconheci a voz. E poucos depois, outra voz familiar.

-Eu livro você dessa carga, livro você de toda essa carga. POR NARNIA!

-POR NARNIA! - outras vozes acompanharam e logo escutei som do tilintar das laminas de espadas e grande correria. Estiquei o pescoço para tentar ver. Era Drinian e Ripchip que vieram atrás de nós. Os mercadores que nos traziam também se distraíram e foi o momento certo. Atacamos.

Caspian empurrou um dos mercadores que se apoiava na beirada, fazendo-o cair lá em baixo, na praça. Chutei um dos dois que avançavam para mim, chutando o outro em seguida. De relance pude ver Lorde Bern acertando uns e outros.

-As chaves! - gritou Caspian. Bern jogou as mesmas para ele. Sem que eu percebesse, um dos mercadores passou os braços ao redor dos meus prendendo-me, acertei-lhe uma cabeçada fazendo seu nariz sangrar, ele se curvou de dor e acertei um belo chute e seu rosto fazendo-o desmaiar. Caspian jogou as chaves para mim. Elas escorreram por meus dedos num deslize e escorregaram até cair lá em baixo.

-Droga! - resmunguei.

Chutei outro mercador e pulei dali mesmo para o andar de baixo e o movimento fez o penteado se desfazer, deixando meus cabelos soltos. Ajuntei as chaves e finalmente pude soltar as algemas que me prendiam. Caspian pulou lá de cima também, aterrissando às minhas costas enquanto eu travava uma breve briga com as diversas chaves. Ouvi um som alto assim que consegui me soltar e virei a tempo de ver o homem cair zonzo com o soco de Caspian.

-Obrigada. - falei, ofegando. Caspian deu apenas um aceno de cabeça e nós pulamos dali juntos, passando por cima da mureta no mesmo momento em que uma coluna de concreto caiu onde estávamos espalhando pedaços e poeira por trás de nós. Caímos na praça principal e lutamos junto dos marinheiros que derrubavam os mercadores. Os moradores, enchidos de valentia, saíram da segurança de suas casas armados com vasos e pedaços de pau.

Meu arco e flecha estavam longe de vista então tive que usar o que tinha a meu dispor. Não era muito boa em lutar corpo a corpo, muito menos quando meus oponentes são homens bem mais fortes do que eu, mas eu tive que persistir. Tinha acabado de lançar um mercador no chão quando vi Eustáquio correndo desengonçado escadaria acima, tentando fugir de um homem.

Corri até lá, subindo os degraus atrás do homem. Consegui agarrar sua túnica e puxá-lo para trás no mesmo momento que saia de seu caminho, colando as costas na parede, deixando-o rolar escada abaixo. Estendi a mão para Eustáquio, ajudando-o a levantar.

-Por que demorou tanto?!

-De nada, querido primo. - ironizei. - Ande, saia logo daqui, ache um abrigo já que não sabe lutar.

Ele assentiu e correu. Voltei para descer as escadas, foi quando dei de cara com outro homem que subia os primeiros degraus. Ele estava armado com a conhecida cimitarra calormana. Ele balançou a arma tentando me acertar, mas me abaixei, apoiando-me com as mãos nos degraus, fazendo a espada passar por cima de mim. Não demorou muito para o homem atacar de novo e ele não deu tempo para que eu levantasse.

Consegui esquivar de duas de suas tentativas de me atingir, mas na terceira, quase sem força para continuar me apoiando nos degraus de pedra, ele conseguiu me acertar. Foi um corte na barriga, nada que me mataria, mas que doeu bastante, fazendo o sangue molhar a camisa. Chutei sua mão tentando fazê-lo largar a espada. Quase consegui. Ele continuou a golpear tentando acertar meu peito e como ultima solução, rolei, mas a escada não tinha proteção e eu caí de costas em cima de caixotes que se despedaçaram levantando poeira. Uma flecha narniana atingiu o homem que ficou caído sem vida na escada. Após permanecer alguns segundos parada do jeito que caí, tentando não sentir a dor nas costas, eu levantei.

Minha blusa próximo ao quadril, do lado direito, estava molhada de sangue e a dor era forte, mas mesmo assim continuei. Lutamos, lutamos até o ultimo mercador cair morto. Os moradores estavam nas janelas e corredores, dando vivas a nós, narnianos, que os livramos do mercado de escravo e agora estávamos ofegantes pela batalha.

Caspian, Drinian e Ripichip seguiram em direção ao cais e eu fui mais atrás, caminhando com um pouco de dificuldade. Os marinheiros andavam pelas ruas, recebendo as vivas da população. Ao descermos a rampa de volta ao cais onde estavam nossos botes, Lorde Bern veio em nossa direção.

-Meu rei! Meu rei! - chamava ele, caminhando em nossa direção trazendo algo nas mãos. - Leve isto. - entregou o objeto à Caspian.

-É um espada Narnia antiga. - falei, meio ofegante por causa do ferimento, mas ninguém pareceu perceber. Agradeci por isso.

-Sim, - concordou Bern. - Seu pai as confiou a nós. Venho guardando-a por todos esses anos. - Caspian assentiu.

-Vamos trazer seus cidadãos desaparecidos. - garantiu Caspian.

Com essa promessa, nos despedimos de Bern, voltando ao navio. Voltando ao mar.