Mar de Lírios

O Risco do Sacrifício.


Graças a Aslam, aquela chuva durou apenas algumas horas, sem maiores preocupações. O dia seguinte, no entanto, estava nublado. Vi Caspian e Drinian ao lado do manche conversando quando saí naquela manhã. Desci para comer na cozinha. Todos já deveriam ter tomado café, eu havia perdido a hora. Foi um pouco difícil dormir na noite anterior com todo o barulho no convés e os raios. Quis oferecer-me para ajudar quando Rip veio ver se eu estava bem, mas me informou-me que não seria necessário.

—Bom dia. – disse Eustáquio, que chegara na cozinha com a típica cara de poucos amigos.

—Não há nada de bom para comer? – disparou. Encarei-o sem dizer nada, apanhei um pêra do mesmo lugar que tirara a minha e lancei para ele. Sem esperar pelo arremesso, Eustáquio quase a derrubou. Suspirei.

Toda tentativa que fiz para conversar com ele desde a Ilha de Coriakin foi em vão e, depois da terceira, eu parei de tentar. Tudo corria bem, o vento nos favorecia, haviam mantimentos de sobra, mas sem dias de céu limpo ou qualquer sinal da Estrela Azul. Procurava ajudar no que fosse possível e via Caspian poucas vezes, pois ele andava ocupado com Drinian para definir como reagiríamos nas mais diversas situações a partir de agora. Então, jogar xadrez com Ripchip ocupava minhas tardes.

Edmundo me ensinara a jogar tempos atrás, mas eu não possuía tanta habilidade quanto ele. Ripchip era um adversário tão bom quanto meu irmão e vencê-lo em uma partida se tornara um desafio.

—Ora – ele piscou para mim e pôs a mão no queixo minúsculo, pensando. – Sua proposta é deveras interessante, Majestade.

Sorri para ele. Estávamos no convés a bombordo, onde sempre costumávamos jogar.

—O que me diz?

—Bem, seria uma honra para alguém como eu... Mas sabe que não precisa fazer nada disso, eu seria seu oponente de muito bom grado.

—Tenho certeza que seria. – concordei. – Mas não quero que pegue leve comigo. Até porquê quanto mais difícil for vencer você, mais eu melhorarei, não?

—Entendo. – a pena vermelha balançou à brisa. – E ainda assim, acho que não precisa de recompensa.

—Ora, não seria uma recompensa, Rip, sei que você não aceitaria se fosse. É uma tradição. – os olhos dele brilharam mais. – Edmundo era o melhor jogador de toda Nárnia em nossa época e foi reconhecido como tal. Muitos tentaram vencê-lo e falharam. O próprio Edmundo me ensinou a jogar, então se eu não conseguir vencê-lo até o final da viagem...

—Significa que serei o melhor jogador! – ele concluiu, maravilhado, e riu. – Oh, eu adorei! Quando começamos?

Eu ri.

—Agora mesmo!

Começamos a reorganizar o tabuleiro e Rip estava visivelmente animado com a ideia que me ocorrera na última noite. O prêmio, apesar de ser de fato valioso, para Rip tinha maior valor sentimental e de honra do que qualquer outro que poderia ser oferecido. Na primeira vez que nos viu jogando, Caspian comentou que havia guardado, juntamente com nossas armas, a última peça que restara do tabuleiro de Edmundo. Seria o troféu em questão, e eu tinha certeza que Ripchip amaria a ideia.

Também tive certeza que as partidas ficariam incrivelmente mais difíceis, como realmente ficaram. Não porquê Rip facilitava para mim antes, mas por que agora ele estava muito mais motivado. Passamos nossa tarde ali, concentrados, e foi no final da partida que as primeiras gotas de chuva caíram sobre o tabuleiro, atraindo nossa atenção.

—O que... – Rip olhou para o céu e eu o acompanhei. Estava em cinza profundo, os relâmpagos que despontavam no meio delas nos permitiam ver, seus reflexos aqui em baixo. Mais gotas caíram e um vento frio soprou, a correria começava no convés.

—Preparem-se! – ouvi a voz de Drinian.

—É melhor entrar, Majestade. – disse Ripchip. As gotas se intensificaram.

Assenti para ele que logo saltou do barril. Apanhei o jogo e fui em direção a cabine sentindo gotas pesadas caírem contra meu rosto e braços. Estiquei a mão para abrir a porta quando alguém o fez primeiro e saiu, esbarrando em mim.

—Opa. – cantarolei. Caspian segurou-me pelos ombros para que eu não batesse contra a quina logo atrás de mim.

—Desculpe, Su. – pediu. – Você está bem?

—Não foi nada. – sorri. Um trovão.

—Por favor, evite sair da cabine. – pediu.

Assenti para ele, notando a tensão em sua voz.

—Tenha cuidado. – pedi antes de ele ir para o convés.

Fechei a porta da cabine e pausei o jogo sobre a mesa, observando o céu lá fora pelas portas da pequena varanda, que agora batiam com o vento. O dia escurecera rapidamente e as nuvens pareciam não ter fim. Fechei aquelas portas com cuidado e caminhei para a pequena escotilha entre as pinturas na parede. Até onde podia ver, haviam nuvens de tempestade que se intensificava.

Fui até a escotilha seguinte, do lado oposto, e encontrei o mesmo resultado. O balanço do barco se tornava mais vertiginoso e as ordens do lado de fora começaram a ser gritadas. Um raio cortou o céu logo acima do Peregrino e a chuva caiu com mais intensidade. Havia uma tensão quase tocável dentro do navio, e eu nada podia fazer além de torcer para que passasse logo.

[...]

Cinco dias se passaram. Cinco dias de chuva constante e mar revolto. Da cama podia ver as torrentes de água que escorriam pelas vidraças e nada além delas se fazia visível. Era um tanto massacrante simplesmente aguardar, mas Caspian me garantiu – em uma das poucas vezes que o vi. – que chamaria caso fosse necessário. Eu sabia que ele me manteria aqui o quanto pudesse, mas pelo andar da carruagem, não demoraria muito.

Consegui alguns papéis e um pouco de carvão não muito depois de chegar ao navio e usá-los para distração no meio dessa tormenta era o melhor que eu podia fazer. O segundo pedaço de carvão estava quase no fim depois de dar forma aos jardins de Coriakin; foi quando ouvi batidas na porta que logo foi aberta. Caspian tinha olheiras notáveis e seu cabelo e parte de suas roupas estavam molhadas. A insatisfação em seu olhar dizia que eu precisaria sair.

Atravessamos o convés sob a chuva e o vento forte. Os homens lutavam a todo custo com as velas e as cordas, Drinian gritava ordens agarrado ao leme com mais três marinheiros. O balanço do barco e o vento nos faziam cambalear, as gotas de chuva eram dolorosas contra o rosto. Descemos para a cozinha e então fomos para onde guardávamos os mantimentos.

O chão estava ensopado. Um dos barris de água havia quebrado, molhando os mantimentos que ficaram na base da pilha na qual foram organizados. Isso não era bom.

—Normalmente teríamos mantidos os barris separados das sacas, mas precisávamos de espaço. – explicou Caspian. – Temos que tirar as demais daqui.

Concordei com a cabeça. Um som de protestos se aproximou da entrada e Eustáquio foi empurrado para dentro por um marinheiro.

—Aqui está, Majestade. – disse o homem. Caspian assentiu e ele saiu.

—Veja quem resolveu ofertar sua ajuda. – Caspian disse ao garoto. Eustáquio bufou.

—São um bando de trogloditas! – protestou o menino, trêmulo. – Eu sou uma pessoa livre!

—Se quiser pode deixar o navio agora mesmo, assim não terá que ajudar. – Caspian disparou. Eustáquio engoliu em seco. Caspian preparou-se para puxar o primeiro saco. – Não temos tempo a perder.

Indiquei um saco de batatas quase no fim e felizmente Eustáquio parou de questionar. Puxei um caixote com garrafas cheias de manteiga e seguimos Caspian até o novo cômodo livre de água. O balanço vigoroso do navio era um obstáculo a parte, rangidos vinham de toda parte e a chuva assolava continuamente do lado de fora.

Levamos algumas boas horas para transportar tudo com apenas três pares de mãos e braços. Eustáquio reclamava de tempos em tempos, ou puxava algum assunto aleatório que findava em uma reclamação velada. A paciência de Caspian se aproximava de um fim, ele estava cansado e muito preocupado, e um único olhar severo para Eustáquio nos rendeu duas horas sem comentários inconvenientes.

Já estávamos terminando, faltavam apenas os sacos maiores. Eustáquio e eu carregávamos um deles praticamente ofegantes – pois era muito pesado – pelo corredor rumo ao outro cômodo. As ondas pareciam ter se intensificado, os balanços tornavam-se mais abruptos, o equilíbrio e o trajeto, muito mais difíceis. Num solavanco repentino, Eustáquio chocou-se contra a parede, soltando o saco que foi ao chão, puxando-me junto. O peso causou uma dor rápida e aguda em meus ombros ao passo que o mesmo solavanco jogou-me contra a parede oposta. Arquejamos quase ao mesmo tempo.

—Você está bem? – perguntei ao meu primo, que segurava o próprio ombro com uma careta cansada e descontente.

—Claro! Para quem acabou de quebrar um osso, estou muito bem.

Rolei os olhos. Passos se aproximaram por trás de mim quando tentava me levantar. Eustáquio ficou sentado ao chão, escorado na parede.

—Estão bem? – Caspian perguntou. Eustáquio se limitou a encará-lo.

—Sim. – respondi, ficando de pé com a ajuda da mão que me ofereceu. De fato, a dor havia sumido, embora suspeitasse que voltaria mais tarde. Caspian respondeu com um aceno.

—Estes são os últimos. – disse, incluindo o saco que trazia. Eustáquio entendeu o recado para que continuássemos e rolou os olhos. Estendi a mão e o ajudei a levantar.

Terminamos a tarefa logo em seguida. Insisti para ver o ombro de Eustáquio, mas ele se recusou, pedindo apenas para ir embora. Ele pareceu bastante aliviado ao conseguir sua permissão e sumir pelo navio. Olhei para Caspian, sua expressão tensa e cansada – mas jamais desanimada – persistia em seu rosto.

—Você está bem? – foi minha vez de perguntar. Caspian levou um segundo para responder.

—Apenas preocupado. - lançou-me um sorriso levíssimo. Tomei a liberdade de levar uma mecha solta de seu cabelo para trás de sua orelha. O Peregrino rangeu a nossa volta.

—Ficará tudo bem. – assegurei, olhando em seus olhos. Senti Caspian segurar minha mão e levá-la até seus lábios, depositando um beijo cálido nos nós de meus dedos.

—Ficará sim.

[...]

Dez dias que pareceram noites devido as nuvens negras. Dez dias que praticamente todos perdiam o sono. No meio daquela noite, eu quase conseguia dormir quando um estrondo alto fez-me despertar, mais um estalo de algo se partindo então uma sucessão de gritos e correria desesperada. Outro estalo. Um raio iluminou a cabine, calcei as botas e corri para a porta com o coração aos saltos, os gritos se intensificavam. Precisei proteger o rosto quando o vento e água chicotearam contra meu corpo com violência.

Estava tudo ainda mais escuro, mas outro raio fez-me perder o fôlego ao jogar sua luz sobre o convés, permitindo-me ver o que acontecia. Ondas enormes tinham suas cristas iluminadas pela luz dos raios, o Peregrino balançava vertiginosamente, o vento gélido fustigava a todos. E no meio do convés, o mastro se partia com estalos assustadores.

Com o coração ainda disparado e mais preocupada ainda, fechei a porta da cabine. Sequei meu rosto molhado com a pequena parte seca de minha camisa. Podia ver as ondas monstruosas do lado de fora a cada relâmpago, o Peregrino rangeu. Se aquela tempestade durasse mais poderíamos afundar, sem qualquer sinal de terra por perto. Fiz um pedido silencioso a Aslam e tratei logo de trocar as roupas molhadas. Sentei na cama apoiando as costas na parede.

—O mar está estranho. – taxou Drinian, algum tempo mais tarde. Ele e Caspian vieram para a cabine algumas horas depois da perda do mastro. – Só temos água e comida para uma semana, no máximo. Não há qualquer sinal da Estrela Azul e mesmo que houvesse é impossível perceber nessas condições. Essa pode ser a única chance de voltarmos, Majestades.

—Não podemos simplesmente abandonar aqueles que foram levados. – comentei, como um pensamento alto.

—Se perecermos nos juntaremos a eles, e quem virá atrás de nós? – Drinian pontuou, com certa gentileza na voz.

—Quando as coisas fogem do nosso controle em Nárnia é a hora de Aslam intervir. - lembrei-o.

—Compreendo, e não duvido disto. Mas devemos considerar a possibilidade de morrermos aqui. Se isso acontecer, sem ninguém para governá-la, então Nárnia estará com sérios problemas. – lembrou.

O capitão estava visivelmente preocupado. Poderíamos todos morrer, pela tempestade ou de fome se não encontrássemos terra logo. Ele tinha sua razão, sua preocupação era prudente e o argumento válido, mas havia também outra questão, que Caspian levantou antes de mim.

—Como eu voltarei e explicarei a cada narniano que desistimos de trazer seus entes queridos de volta? – Caspian tinha a voz grave, estava sério além do normal. Drinian permitiu-se expirar e não foi preciso mais que os olhares dos dois para saber que já haviam discutido aquilo outras vezes.

—Vou voltar para o meu posto. – foi tudo que o Capitão disse, fazendo uma breve reverência e vestindo sua capa próximo a porta. Antes de sair, parou e voltou-se para nós. – Só não esqueçam, Majestades, o mar prega peças malvadas na mente da tripulação.

Drinian bateu a porta e o silêncio reinou profundo. Caspian sentou-se novamente e, com os cotovelos sobre a mesa, sem conter o choque de sua mão contra ela. Afundou o rosto nas mãos antes de apoiar o queixo. Eu conhecia aquela expressão, já tinha visto tempos atrás. A seriedade e a concentração intensificavam seu olhar, sinais de uma mente que não parou um segundo por mais tempo do que deveria devido o grande peso em seus ombros. A diferença desta vez é o sinal do cansaço acumulado de dias.

Eu compreendia mais do que ninguém pelo que Caspian passava. Nárnia era maravilhosa, seu povo era inestimável, governá-la também era maravilhoso e inestimável, mas exatamente por isso o fardo era enorme. Não havia espaço para passos em falso. Sentei-me à janela banhada pela chuva do lado de fora.

—Você está fazendo a coisa certa. – disse, não sei quanto tempo depois. Caspian olhou-me e retribuí seu olhar.

—As vezes me pergunto se não é o contrário. Talvez esteja sacrificando todos neste navio... Inclusive você. – lembrou, a voz baixa, o cansaço era notável. Lancei-lhe um sorriso leve.

—Também nos sacrificamos para depor Miraz. – lembrei. – O risco do sacrifício vale a pena se for pela razão certa. Drinian está contando com a possibilidade de já estarem perdidos, e não o culpo por isso, você sabe. Ele está tentando zelar por seu país cuidando de seu rei. Até porquê ele não está errado, se algo acontecer a você nessa viagem Nárnia ficará muito vulnerável.

Um arrepio percorreu minha espinha. Seria esse o motivo de Aslam ter-me permitido voltar? Tratei logo de afastar esse pensamento para longe.

—Não posso simplesmente deixar para lá todos que podem ser resgatados. – confirmou. – Mas se falhar será devastador.

—Eu sei – assenti. – Se retornar por desistir, a confiança do seu povo em você será abalada. Porém, quando conseguir, você será lembrado. Nárnia inteira será beneficiada.

Caspian baixou o olhar, observando os próprios dedos tamborilarem sobre a mesa. Era claro que não arriscava a todos nós para manter a confiança do povo intacta. Por amor e compaixão a cada uma daquelas pessoas, era óbvio que Caspian iria até o final. Assim como meus irmãos e eu faríamos. Ele era o monarca ideal para confiarmos Nárnia, sabíamos disso desde o começo. Se não fosse, teríamos lutado para expulsar os telmarinos após a queda de Miraz. Mas Caspian era diferente. Era mais do que digno. Ele permaneceu em silêncio e eu acrescentei:

—Quanto a mim, estou bem. Sou uma ótima nadadora, sabia? - lancei-lhe um sorriso de lado. Caspian olhou-me e um pequeno sorriso brincou no canto de seus lábios, aliviando seu olhar.

—Eu percebi – ele disse. – Quase não consegui alcançá-la. – e piscou um olho. Eu ri. Caspian apenas sorriu brevemente, logo em silêncio outra vez.

—Precisa descansar, Caspian. – concluí.

—Devo voltar lá para fora.

—Não. – falei, fazendo-o franzir as sobrancelhas. – Vai ajudá-los se estiver descansado e disposto. – indiquei a cama. – Descanse um pouco.

Ele olhou confuso do móvel para mim.

—Mas você...

—Estou sem sono. – dei de ombros. – Vou ler alguma coisa. Durma um pouco.

Para minha surpresa, Caspian não questionou mais e simplesmente cedeu ao cansaço. Pouco depois de deitar já ressonava em sono pesado. Permaneci em meu assento, saindo apenas para apanhar o livro que havia iniciado há pouco tempo. Felizmente, o assento era espaçoso o suficiente para que pudesse recostar-me. Uma hora depois, o balanço do barco tornara-se cadencioso, as pálpebras começaram a pesar. Olhei para a cama, Caspian sequer havia se movido, não dava sinais de que iria acordar e eu não ousaria reivindicar o espaço que sobrara ali.

Passei as mãos no rosto, pronta para continuar a leitura, porém mais sorrateira do que o previsto, a inconsciência me envolveu sem que eu me desse conta.

[...]

O estalo de uma porta fechando fez-me atentar para a cena a minha frente. Estava em casa, em Finchley. Três pessoas pararam próximas a mim. Ergui o olhar para seus rostos e encontrei meus irmãos. Tão diferentes, mas ainda assim tão familiares. Meu coração acelerou e apertou, a saudade que sentia deles latejou. Estava pronta para correr e abraçá-los, mas suas expressões me fizeram parar. Havia algo errado, e abri a boca para perguntar, porém Lúcia se adiantou:

—Venha com a gente. – seu pedido soou como uma súplica.

—Pode ser a última chance, Susana. – Pedro afirmou, sério, cansado e um tanto... magoado?

—Vamos encontrar os outros, estarão todos lá. - explicou Edmundo, calmamente.

Outra vez tentei falar e responder. Claro que eu iria, no entanto, minha voz falhou novamente. Os três me avaliavam e não estava gostando nem um pouco do que viam, seja lá o que fosse.

—Você vem – Lúcia disse mais uma vez, incerta. Uma apreensão imensa passava por seu olhar. – Não vem?

Meu coração disparou, mas nem isto despertou minha voz. A expressão de decepção em suas faces apunhalou meu coração. Tentei falar, desesperadamente, mas a voz me traiu e escondeu-se em meu interior. Pedro olhou-me feroz, com amargura soando em cada palavra:

—Seu silêncio responde tudo. – cuspiu.

Deu-me as costas e saiu. Edmundo olhou-me magoado e o seguiu. Lúcia tinha lágrimas nos olhos, tentei falar novamente, implorar para que entendessem que não os abandonaria. Foi inútil. Ela partiu também. Meu coração retumbava frenético. Tentei gritar, tentei correr, e não consegui. Lágrimas quentes banhavam minha face. De repente, um toque em meus joelhos e costas me carregaram para longe dali.

[...]

Um relâmpago cortou o céu assim que abri os olhos, de volta ao Peregrino. Não estava mais no assento, mas sim em um colo cujo calor e cheiro eram muito familiares.

—Caspian – chamei, baixo. Ainda tinha medo de minha voz falhar mais uma vez. Ele parou.

—Não quis acordá-la. – disse, a voz rouca. Devia ter acabado de acordar. Gentilmente, permitiu que eu pisasse novamente no chão, mas não frouxou o braço que circundava minha cintura. Havia certo silêncio do lado de fora. A chuva continuava, porém o balanço do navio suavizara. Era tarde, sem dúvida.

—Você deveria estar descansando. - lembrei-o, erguendo o rosto para ele. Caspian tinha os cabelos soltos e levemente bagunçados.

—Parece que dormi por dias inteiros. – comentou, com um leve sorriso. Uns segundos de silêncio e Caspian não desviou o olhar. – Você parecia não dormir muito bem.

—Um pesadelo – tranquilizei, apoiando-me em seu peito sem perceber. Estávamos muito perto. Ele assentiu, ponderando.

—Ao que tudo indica, ninguém nesse navio está livre deles. – falou, dessa vez mais baixo.
—Você também?

—Alguns dos homens acreditam que é o mar sendo traiçoeiro. – comentou, após assentir.

Dei-lhe um sorriso sem graça. Mais uma vez o silêncio recaiu junto com algo que não fazia barulho, sendo tão perceptível quanto se soasse. Aquela conexão que impedia-me de desviar os olhos dos de Caspian parecia cada vez mais forte sempre que se instalava. Não havia aquele instinto quase automático de desviar o olhar e quebrar o contato. Pelo contrário, se pudesse permaneceria ali para sempre.

Caspian aproximou seu rosto lentamente, avaliando-me a medida que chegava mais perto. Com a mão livre tocou meu rosto, num movimento mais rápido do que pude acompanhar, ele beijou-me. O alvoroço das borboletas dentro de mim fez-me perceber o quanto sentia falta dele. Com aqueles dias intermináveis de tempestades e caos, quase não tínhamos visto um ao outro, menos ainda estado qualquer segundo a sós.

Havia uma ligação completamente instalada ali. Um laço que apertava-se como os braços de Caspian a minha volta. As mãos espalmadas em minhas costas não me permitiam um centímetro longe dele, não que eu precisasse ou quisesse, claro. O balanço do navio, os raios ou até mesmo o barulho da tempestade, nada era mais hipnotizante que aquele beijo. Mas de repente, Caspian o interrompeu. Afastou-se, fazendo minhas mãos escorregarem de seus cabelos. O aperto em volta da minha cintura afrouxou.

—Desculpe. – pediu, solene.

—Desculpar? – indaguei. – Pelo quê?

—Você tem razão. – disse Caspian, sua respiração levemente irregular se misturava com a minha. – Sobre fazer a coisa certa.

Sorri de leve. Era muito bom saber que parte daquele peso de dúvida tinha saído de seus ombros, mas não explicava o pedido de desculpas. Quase podia ver os pensamentos passando por trás dos olhos dele no segundo que Caspian hesitou. Ele engoliu, e continuou a falar.

—E eu sempre quero fazer a coisa certa. – explicou. – Por isso me desculpe. Não estou me portando como deveria, não devo tratá-la desse modo. Não posso simplesmente beijá-la a cada oportunidade que tenho sem sequer ter-me comprometido à você. Não é certo.

—Caspian... – sussurrei, não por reprová-lo, pelo contrário: senti meu coração disparar, corando. Mas ele, delicadamente, silenciou-me com um toque em meus lábios. Seus olhos acrescentaram intensidade a cada palavra.

—Preciso saber o que nos aguarda no final. E estarei disposto a tudo para que seja diferente dessa vez.

Compreendi o que ele queria, perfeitamente. Não respondi de imediato. Com todo meu coração, eu desejava que fosse diferente e pedi para que estivéssemos certos. Respirei devagar, e assenti. O abraço de Caspian se desfez para que eu pudesse sair. Guardamos palavras enquanto caminhei para o baú de roupas do outro lado da cabine.

I know that if we give this a little time
It'll only bring us closer to the love we wanna find
It's never felt so real
No, it's never felt so right
—Justa a Kiss, Lady Antebellum.

A chuva caía lá fora e o balanço do navio aliviara. Abri o baú e procurei pela folha solta que guardara ali dentro logo após nossa partida da Ilha de Coriakin. Com ela em mãos, tornei-me para Caspian encontrando certeza em seus olhos. Eu também a tinha. Sentei na beira da cama e Caspian veio sentar ao meu lado. O silêncio parecia mais alto que a tempestade quando desdobrei a folha, encontrando as palavras do feitiço.

Busquei os olhos de Caspian mais uma vez. Ele assentiu, respondi com o mesmo gesto, quando tornei meus olhos para o papel, senti a mão de Caspian na minha, entrelaçando nossos dedos. Respirei fundo e li em voz alta.

—“Querido forasteiro, nem pense em hesitar
Se fugir ou se ficar, não há como evitar
Agora ou depois, o futuro traçado está
Siga em frente de uma vez e pare de esperar
Acabe logo com essa angústia de matar
A dois versos de você, a resposta irei mostrar
Uma nova chance você vivendo está
Descubra, então, como dessa vez acabará.”