Mar de Lírios

Uma Chama de Esperança.


—“Querido forasteiro, nem pense em hesitar
Se fugir ou se ficar, não há como evitar
Agora ou depois, o futuro traçado está
Siga em frente de uma vez e pare de esperar
Acabe logo com essa angústia de matar
A dois versos de você, a resposta irei mostrar
Uma nova chance você vivendo está
Descubra, então, como dessa vez acabará.”

Quando a última palavra do feitiço morreu no silêncio, uma suave vibração no ar se fez perceber, acompanhada de um aroma suave e sutil que eu conhecia muito bem. Cheiro de magia. Era como Lúcia o descreveria.

O movimento do Peregrino cessou e o som da tempestade não era mais ouvido. Olhei para Caspian, seu olhar era atento, alerta, mas esperançoso. Antes que eu concluísse esse pensamento, uma luz mais forte acendeu atrás de mim atraindo a atenção de Caspian e a minha. Pelas escotilhas e portas da varanda entrava uma luz branca que ofuscava tudo que houvesse do lado de fora.

Dentro da cabine, entretanto, tudo se tornou mais nítido, e o espelho de pé junto à parede se tornou atraente. Ele seduzia nossa curiosidade com o vidro límpido, a moldura perfeita como se tivesse sido feito para emanar magia. Soube exatamente para onde ir. Sem soltar minha mão, Caspian se pôs de pé comigo e andamos cautelosos até o espelho. Um frio percorreu minha coluna inteira, causou um reboliço empolgante em meu estômago quando chegamos a um passo do móvel, de um ângulo que não nos dava reflexo ainda.

—Está certo sobre isso? – perguntei outra vez.

—Você está? - olhou-me cúmplice, nunca deixando a seriedade completamente. Dei-lhe um breve sorriso triste.

—Não. – confessei. Caspian não se ofendeu ou algo parecido. Seus olhos me diziam que sentia o mesmo. – Tenho medo de não encontrar algo bom... Afinal, ainda não sabemos por quê estou aqui.

Caspian apertou mais seus dedos em volta dos meus.

—Precisamos de respostas, então.

Sim. Precisávamos. Encarei o espelho ao passo que nossas imagens apareceram pela aproximação. Nosso reflexo era nítido, perfeito. Então, nossa imagem de mãos dadas no espelho começou a mudar. Sobre a cabeça do reflexo de Caspian surgiu uma coroa imponente como era a sua própria. Olhar para Caspian ao meu lado foi inevitável, assim como ele levar a mão a cabeça, encontrando o mesmo resultado que eu: nada. A coroa estava unicamente sobre a cabeça do seu reflexo, que naturalmente exibia todos os seus movimentos.

Ao encarar-nos novamente na imagem, vi minhas roupas mudarem e contive o ímpeto de constatar isso com um toque sobre meu corpo. Já era claro que a mudança só acontecia no espelho. Logo reconheci a roupa, tinha sido presente de minha mãe. Então, diferente de nós dois, o Caspian e a Susana no espelho soltaram as mãos. Eles mudaram novamente, como se o tempo tivesse passado. A barba de Caspian se tornou ligeiramente maior e ele se afastou, caminhando cada vez mais para dentro do espelho enquanto meu reflexo pareceu imóvel. Um som novo soou e, apesar de indistinguível, fez o reflexo de Caspian parar e aguardar.

Meu coração disparou quando uma criança chegou até ele, segurando sua mão. Não era possível ver seu rosto. O reflexo de Caspian ajoelhou-se sorrindo e carinhosamente colocou sua coroa na cabeça do pequeno, apesar de ser bem maior. Então não se moveram mais. Meu reflexo, até então congelado, respirou fundo como se lhe faltasse ar, sua roupa tornou-se preta, flores vieram para sua mão, ela estava ensopada. O que antes parecia falta de ar mostrou-se ser um pranto desolado, desamparado, era um luto.

O temor crescente em meu peito me fez arfar, apertando e sufocando como naquele pesadelo despertaram no fundo. A Susana de luto chorava para a solitude, pois não havia mais ninguém. Não percebi o quanto estava hipnotizada pela imagem e pelo som ensurdecedor em meu peito, até outro som tão alto quanto, chamar minha atenção. Com um estalo, a lateral do espelho desprendeu-se da moldura abrindo como uma porta para o lado de dentro. Nossas imagens desapareceram no mesmo segundo.

Caspian foi o primeiro a se mover. O susto pelo estalo e as emoções recorrentes do pesadelo retardaram qualquer ação minha de primeira. Caspian não soltou minha mão em momento algum, nem em seus passos firmes em direção ao espelho, nem quando o tocou, testando. Devagar, usando as pontas dos dedos, ele afastou a folha de espelho, escancarando a porta a nossa frente. Que dava para um completo breu.

Sem pensar duas vezes, atravessamos.

.

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Tudo a minha volta era escuro como o céu noturno. Não sentia a presença de mais ninguém.

—Caspian? – chamei, não recebendo resposta. – Caspian?

Ninguém respondeu de volta, apesar de ainda sentir o toque dele em minha mão. Então, uma brisa suave chegou até mim, acelerando no segundo seguinte até se tornar um vento forte que varreu a escuridão para longe. Uma claridade ofuscou-me antes de aliviar, permitindo-me ver onde eu estava.

Era uma casa familiar como as casas de Finchley, muito arrumada e silenciosa. Comecei a andar, mas topei em algo. Quando olhei, meus sapatos não eram mais os mesmos. Eram comuns, como os que eu usava em meu mundo. Minha roupa também era outra, a que aparecera no reflexo. Meu coração disparava e forcei a atenção para cada detalhe, qualquer coisa que pudesse me dar uma resposta.

Como se minha intenção fosse audível, um zumbido tapou meus ouvidos ao passo que meus olhos encontraram o elo dourado e reluzente no anelar esquerdo. O toque de Caspian ainda presente ali compôs o peso da situação ainda mais.

Outra brisa soprou contra meu rosto e ao erguer o olhar , tudo havia mudado novamente. A escuridão súbita cegou-me por instantes até que me acostumasse a luz do luar. Era um bosque, ou muito perto de um, pois podia identificar as árvores em volta. Encontrei, então, um ponto de luz e me aproximei. Aos poucos identifiquei o charmoso chalé, logo tratando de me aproximar. Alguém surgiu na porta e eu parei, com o coração aos pulos. Por mais que olhasse em minha direção, Pedro não me via. Seus olhos estavam... tristes.

Com um suspiro, escorou-se ao lado da porta da entrada e, enfiando uma das mãos no bolso, puxou um pedaço de papel. Seus olhos percorreram as palavras nele como se já houvesse feito várias e várias vezes. Seu olhar continuava triste, buscava uma resposta. A porta ao seu lado se abriu e nosso querido Professor Kirke passou vagaroso, ficando em silêncio ao lado de Pedro.

—Não entendo. – confessou meu irmão. - Ele disse que não voltaríamos, por que... Porque mudou de ideia quanto a Susana?

O aperto em meu peito foi inevitável. E repetir o aperto fechando minhas mãos também.

—Talvez não seja para entender agora. – ponderou o Professor, após um breve silêncio. – Talvez Caspian e Nárnia precisassem dela de uma forma que você, Lúcia e Edmundo não poderiam ajudar.

—Algo muito grave deve ter acontecido para que ele mudasse de ideia.

—Quando eu fui a Nárnia – voltou o professor. – Retornei com o fruto que curou minha mãe, desse fruto veio a árvore que forneceu madeira para o guarda-roupa que levou você e seus irmãos a Nárnia. Sempre sonhei em retornar, mas depois de tanto tempo, comecei a pensar que ele não me permitiu para que eu pudesse guardar a passagem para vocês. Guardar o meio que levaria salvação para Nárnia. – Pedro olhou-o e ele retribuiu. – Aslam é sábio e justo. Sempre há uma razão para ir, e também para voltar.

Ainda pude ver os olhos dos dois em minha direção, sem que me vissem. Então o vento soprou e a imagem foi levada mais uma vez, dando lugar a uma faixa de areia deserta, cercada por água, por onde o vento continuou correndo, mas sem tirar nada do lugar. Logo mais adiante, os grandes e sábios olhos de Aslam me encaravam ternos como sempre.

Caspian.

Assim que atravessei o espelho, o silêncio pesado fez as batidas em meu peito soarem altas. Com um rápido olhar em volta, reconheci o bosque de Nárnia e vi que Susana não estava ali. Sentir sua mão na minha conteve o ímpeto de ir procurá-la. Era noite, mas o luar clareava tudo a minha volta em tons azulados.

Deixei a respiração escapar pelos lábios. Havia um silêncio profundo naquele bosque e nada aparente mostrava o motivo de eu estar ali, então decidi avançar. No primeiro mínimo movimento para andar, senti um peso sobre meus pés. Um peso gelado. Ao baixar os olhos para lá, vi a serpente verde deslizando sobre meus pés. Suprimindo a vontade de me afastar rapidamente, apertei a mão direita em volta do toque que sentia da mão de Susana e mantive-me o mais imóvel possível até que a serpente passasse de mim e seguisse seu caminho com uma tranquilidade e elegância incomum. O verde de sua pele brilhava como esmeralda à luz azulada, jamais havia visto qualquer serpente como aquela.

Um vento frio soprou, acentuando o peso daquele lugar. Algo sombrio parecia espreitar da noite e não estava visível em direção alguma. A serpente havia desaparecido e o vento soprou mais e mais forte. Usei o braço para proteger os olhos e ao baixá-lo, já conseguindo ver, notei outra presença de imediato.

No limite da sombra de um grande carvalho estava a figura imponente, elegante, com seu porte de guerreiro. Por um instante pensei que meu coração saltaria pelo peito até o gramado, meus joelhos chacoalhavam mesmo sem se moverem, como se fosse feitos de líquido. Mal me dei conta de que fechava as mãos com força, como que buscando apoio. Quando aqueles olhos tão escuros e semelhantes aos meus encararam-me de volta, a respiração que segurava foi expulsa de meu corpo a força, bem como as lágrimas.

—Pai... – alguém balbuciou, provavelmente eu.
Caspian IX deu um leve sorriso de canto. Meu corpo e minha mente estavam paralisados, assistindo-o se aproximar alguns passos. Ele apenas encarou-me por segundos, horas, não saberia dizer quanto tempo fiquei ali parado, entorpecido pela presença que almejei durante tantos anos. Minha voz foi substituída por um nó seco que não consegui desfazer.

—Veja como cresceu. – ele comentou. – Se parece muito comigo, mas a boca e o formato dos olhos sempre foram iguais aos da sua mãe.
Estático permaneci, por mais que me debatesse para reagir, para falar, correr, abraçar.

—Sempre soube que você seria um grande homem, Caspian. – disse calmamente. – Mas para ser um rei, ser apenas um grande homem não é suficiente, como restaurar a paz e a estabilidade não é suficiente para mantê-las.

Meu coração vacilou. Claro que não seria um encontro como os que sonhara inúmeras vezes. Engoli, vencido pelo nó outra vez.

—Somos uma nação poderosa, que está caminhando para ser mais forte ainda. Você soube como derrotar Miraz, deve ter sabido como reunificar nossos fragmentos. Então vai saber como dar ao seu povo esperança e estabilidade contínuas. – seu olhar era sério, mas nada parecia fazer sentido. Tentei falar e travei, então tentei de novo e minha voz saiu baixa.

—Não entendo... – disse, aproximando um passo. Meu pai não se moveu.

—Já é um homem feito. Quando eu tinha sua idade, você estava para nascer. Chegará a hora que a coroa exigirá sua descendência.

—Sobre isso, eu...

—Escute, filho. – interrompeu. – Seja prudente e esteja preparado. A coroa tem um peso árduo demais que o coração pode se recusar a carregar.

—Pai, eu... – avancei um passo, porém fui obrigado a recuar. O vento forte soprou, varrendo a paisagem diante de meus olhos. Um luz forte ofuscou meu olhar, acompanhada do som forte de uma trompa, uma lembrança.

Quando o som cessou e pude abrir os olhos outra vez, senti a umidade em meus pés. Eu estava na água rasa e ondulante de uma praia. A faixa de areia era solitária parecia perdida no meio da água calma, de um azul safira que cintilava à luz. Meus pés estavam completamente submersos e, além do monte de areia, havia apenas mar. E sobre a superfície deste, delicados como os raios de sol pela manhã, haviam lírios. Lírios brancos.

Apertei a mão direita constatando que Susana ainda estava lá, onde quer que fosse. Seria impossível não lembrar dela ao ver aquele tapete alvo sobre a água, até onde a vista alcançava. Curvei-me e apanhei um deles. A delicadeza, a simetria irretocável, eram mais belos dos que haviam em Nárnia. Senti outra vez uma presença nova, mas muito familiar. Ao erguer os olhos, o Grande Leão observava-me da areia.

—Aslam...! - apressei-me em sair da água em direção a ele. Ajoelhei-me na areia e Aslam sentou-se.

—Levante-se, Caspian. – reconfortante e magnânima, era como sua voz soava.

—Como é bom vê-lo. – comentei. Aslam fez o som de um leve riso e assentiu, como se dissesse o mesmo.

—Tem sido uma jornada cheia de percalços, não é mesmo? – disse. Sorri-lhe e concordei. – Espero que Eustáquio não esteja dando muito trabalho.

Abri a boca para responder, mas ele soltou um novo riso que me contagiou e entendi que não precisava de resposta.

—O que o trás aqui, Majestade? – perguntou, calmamente. Lambi os lábios.

—Bem, nós... – de repente as palavras sumiram. Nada parecia coerente para aquela resposta. Fechei os olhos e suspirei. Parecia uma completa idiotice não ter confiado e aguardado os desígnios dele.

—Eu entendo, criança. – falou. A dose de alívio que recaiu sobre mim era difícil de descrever, mas uma coisa não anulava a outra. – Ainda assim, você deveria ter confiado.

—Tem razão. – falei. – Sei do que está falando, mas ainda assim eu precisava saber, precisava ter certeza.

—Você acha que saber do fim melhoraria o trajeto, mas e se for o contrário? Já pensou que ter uma resposta concreta pode comprometer toda sua jornada? – questionou. Aslam não esperou minha resposta. – Há mais de uma razão para que a volta de Susana fosse permitida. Tudo o que aconteceu após a partida deles, em Nárnia e na Inglaterra, nada passou desapercebido. Permiti que se encontrassem pois sei que precisariam desse tempo para o que está por vir. Há mais em jogo desta vez do que apenas Nárnia.

Olhei-o sem entender.

—O que... O que devemos fazer? – não conseguia entender, o que quer que fosse que viria pela frente, não conseguia enxergar.

—Vocês saberão o que fazer. - lançou-me um sorriso que vinha de seus olhos, reconfortante. – Cada coisa no seu tempo. Tenha cuidado no caminho, Caspian. Ouça seu coração para encontrar a resposta que procura, mas não deixe que ele o traia nem cegue. Você é um Rei e Susana uma Rainha, se não se desviarem do caminho, farão a coisa certa.

Por trás dele, longe na areia, outra figura surgiu, aos poucos tomando forma. O toque em minha mão desapareceu. Aslam levantou-se e virou para olhá-la. A metros de distância, Susana parou. O vento constante soprava-lhe os cabelos para o lado, acentuando sua expressão tensa.

—Vá, Caspian. – disse Aslam. – E não esqueça, tudo acontece em seu devido tempo, cada peça se encaixa e nem sempre faz sentido imediato. Tenha cuidado com a resposta que tanto espera.

Obedeci, dando os primeiros passos, então parei, hesitando. Tornei-me a Aslam encontrando seus imensos olhos dourados cheios de compreensão e encorajamento. Com um simples assentir, houve esperança. Nada acontecia por acaso, Nárnia me ensinara isso. Dentro de mim pude sentir a chama da esperança crepitar. Assenti de volta a Aslam e retomei meu caminho.

A expressão de Susana era ponderadora e pensativa, seus olhos miravam Aslam numa conversa silenciosa. Quando caíram sobre mim, permaneceram fixos, intensos e intrigantes. Contudo, a esperança ardia em mim. A que dizia que poderíamos escolher juntos fazer um caminho lado a lado, que não seria como a última vez quando tudo o que queria era ter mais tempo. Agora teríamos. A vida inteira.

Parei diante dela. Seu semblante não mudara e algo trazia tristeza ao seu olhar brilhante pela luz. Estendi a mão para pegar a sua outra vez, mas algo impediu, empurrando minha mão para trás. Tentei outra vez, mas a barreira continuava lá. Avancei um passo e fui empurrado para trás. Susana tentou se aproximar e também não pôde. Tentamos outra vez e fomos os dois obrigados a recuar um passo. Nossos olhares se encontraram e o mesmo medo nos atingiu. Tentamos de novo e outra vez fomos repelidos. Corri os olhos no espaço a nossa frente, não havia nada visível que pudesse estar fazendo barreira. Susana recuou mais um passo.

—Caspian! – chamou. Olhei-a em alerta pelo tom de voz e senti o pavor latejar em meu peito.

Susana olhava a própria mão que se desfazia e era levada pelo vento, como se fosse feita de papel. Ela me olhou em pânico e tentei avançar mais uma vez, sendo repelido.

—Susana! – chamei, mas ela nada disse. O medo em seus olhos a paralisou. Assim como sua mão, seu braço e pernas desfaziam-se como papel picado, sendo levado pelo vento. Lutei para alcançá-la e nada pude fazer, como nos piores pesadelos. Então, de trás de mim veio um rugido.

Foi como um piscar de olhos lento. E eu estava de volta a cabine do Peregrino. A tempestade caía lá fora inabalável, o balanço do barco ainda era vertiginoso. Eu estava sentado na cama. Precisei de meio segundo para assimilar a mudança e notar o peso de outra pessoa ao meu lado. Com o coração aos pulos, virei-me para Susana conseguindo tocá-la nos ombros, finalmente.

Ela ainda encarava a própria mão, intacta e perfeita. Ergueu os olhos para mim. Senti meu coração vacilar ao ver o medo e a apreensão estampados ali sob o marejar em suas orbes. Sem dizer uma palavra, apenas a puxei para perto de mim tentando confortá-la e, de alguma forma, tentando me certificar de que aquela chama de esperança ainda estava ali. De que era real.


"And there're voices that want to be heard
So much to mention but you can't find the words
The scent of magic, the beauty that's been
When love was wilder than the wind"
— "Listen to your heart", Roxette.