Mar de Lírios

O Conto do Menino Dragão.


"And love is a funny thing

It's making my blood flow with energy

And it's like an awakened dream

Is what I've been wishing for, is happening

And it's right on time" - Love Someone, Jason Mraz.

—Pronta para descer?

—Você não? - ergui as sobrancelhas para Caspian, desafiando-o. Ele sorriu de lado e se aproximou um passo, o sorriso de canto provocando uma curva em sua face. Estreitei os olhos para ele ao ouvir suas palavras.

—Primeiro as damas.

Encenei bater em seu braço tentando esconder o sorriso e Caspian não fez o menor esforço para disfarçar o dele. Começamos a descer com cuidado pelas pedras escuras e precisei lançar mão de todo meu conhecimento sobre escaladas, que era nulo. Parei de contar quantas vezes pedi ajuda a Aslam para não despencar até o chão depois da quinta vez. Felizmente, nenhuma das pedras que se soltaram e rolaram contra as rochas foi grande o suficiente para nos derrubar. Quando o chão finalmente estava ao alcance, saltei das rochas para a relva verde, limpando uma mão na outra, ignorando os pequenos cortes na palma e nos dedos.

Estávamos em uma pequena fenda entre as rochas queimadas, a relva alta alcançava meus joelhos e haviam rochas presas ao chão que provavelmente despencaram ali havia muito tempo. Umas pequenas, outras maiores, todas fazendo-nos ziguezaguear pelo caminho, as vezes com as costas coladas aos paredões de pedra. A fenda alargava-se à medida que avançávamos, tornando-se no vale que havíamos visto lá de cima. Caspian seguia à minha frente e mantive-me bem às suas costas. Percebi a luz do dia nos ofuscar quando alcançamos o vale propriamente, no entanto, Caspian parou. Pisquei para me acostumar à luz, saindo de trás dele e parando ao seu lado.

Diante de nós o vale estreito se revelou profundo como realmente parecia. A relva o cobria totalmente e como presumi, rochas foram salpicadas sobre ela, parando apenas ao esbarrar na superfície espelhada do que parecia ser um lago. Certamente era algo a ser admirado caso a visão que nos recebeu não fosse apavorante, para dizer o mínimo.

—Isso é…?! - ofeguei.

—Sim… - Caspian respondeu num sussurro.

Deveria ser por volta das três horas da tarde e o sol iluminava o dorso escamoso e cinzento do imenso dragão à beira do lago. Meus ouvidos não capturavam qualquer outro som, e mal me dei conta de que prendia a respiração. Ao contrário do esperado, o animal não pareceu dar-se conta de nossa presença. Na verdade, prestando atenção, ele sequer parecia se mover.

—Ele parece estar dormindo - comentei.

—Não é seguro nos aproximarmos - disse Caspian. - Dragões não costumam viver próximos uns dos outros, mas há a possibilidade de existirem outros nessa ilha.

—Só posso voltar se tivermos certeza que Eustáquio não está aqui - lembrei, olhando em volta. Nenhum sinal. Suspirei, puxando o arco e uma flecha da aljava. Caspian observou-me e quando viu-me mirar a flecha na direção do dragão, assentiu.

—Certo. Se ele estiver vivo, corremos de volta para as rochas. Ele não passará por lá.

Assenti de volta. Fechei um dos olhos e observei o alvo. Acertar o dragão não era uma opção, no fim das contas. A flecha não seria suficiente para matá-lo, tampouco feri-lo, mas poderia lhe chamar a atenção, causar alguma reação que fosse. Se ele não estivesse dormindo, mas morto, poderíamos nos aproximar com segurança. Não havia qualquer movimento de respiração em seu corpo quando mirei no espaço ao seu lado e disparei. As penas vermelhas desenharam uma arco no ar antes da ponta cravar-se no chão ao lado do dragão. Nada. Baixei o arco e apanhei outra flecha, deixando-a a posto. Troquei um olhar com Caspian e ele assentiu. Então avançamos devagar.

O silêncio era dominante, sequer a brisa fazia qualquer ruído. Ouso dizer que nem nossos passos estavam emitindo som. Mantive a mira para qualquer desventura, mas a reação que tememos nunca aconteceu. O dragão estava inerte, não respirava. Seus olhos abertos estavam opacos, avermelhados e demonstravam tanta tristeza que não saberei explicar como aqueles traços de dragão podiam expressar-se tão humanamente. Devolvi o arco e flecha para a aljava enquanto Caspian aproximou-se do dragão.

—Vamos dar uma olhada por aqui - ele disse.

Percorremos todo o vale. Não havia um único sinal de Eustáquio, o lago imperturbável assim permanecia, refletindo o céu. Depois de muito procurar, Caspian e eu concordamos que Eustáquio não havia passado por ali. Uma parte de mim sentiu-se aliviada, outra mais atormentada por não ter nenhum sinal dele. Tomamos o mesmo caminho de volta para avançarmos com a busca, caminhando lado a lado e deixando o dragão morto para trás. Não pude evitar olhá-lo uma última vez, por cima do ombro, quando já estávamos a bons metros dele.

—Algum problema? - Caspian perguntou, curioso. Neguei com a cabeça, voltando a olhar para frente.

—Estava apenas pensando o que poderia tê-lo matado. - respondi.

—Não faz muito tempo desde a morte, havia sangue saindo de sua boca, mas nenhum rastro de presa ou ataque. - ponderou. - Ele poderia estar doente.

—Você reparou nos olhos? Pareciam tão tristes… - parei abruptamente, no momento que meus olhos alcançaram a última rocha pela qual passamos antes de avistarmos o dragão, mais exatamente para o reflexo prateado que oscilou na luz.

Estava escondido pela relva, bem na base da rocha, e não estranhei ter passado despercebido por nós na chegada, pois havia ficado às nossas costas. Corri até lá e senti meu coração falhar uma batida ao reconhecer o objeto. Agachei e apanhei o caderno pequeno de couro com cantoneiras prateadas gastas na capa. Segurei-o firmemente nas mãos, sentindo o ar falhar, as batidas retumbando no peito. Vi Eustáquio com aquele caderno incontáveis vezes no navio, mas ainda assim o abri para confirmar e lá estavam seus relatos. Folheando as páginas identifiquei os nomes de Edmundo e Lúcia uma pá de vezes, sequer me atendo a qualquer outra informação que não a de que Eustáquio estivera ali. Ergui o olhar para Caspian.

—Su… - ele começou, mas levei o olhar para o vale, como se ele pudesse aparecer a qualquer momento. Caspian esticou as mãos e segurou meus ombros calmamente, trazendo minha atenção de volta para seus olhos. - Ele deve ter visto o dragão e ido embora apavorado, posso imaginá-lo fazendo isso perfeitamente. - tocou meu rosto, eliminando alguma gota d’água que surgiu por ali sem meu conhecimento. - Além disso, não há qualquer sinal de que ele tenha passado deste ponto.

Umedeci os lábios e assenti rápido, lutando para manter minha mente focada naquelas informações e bem longe do dragão e do sangue que escorria de sua boca. Caspian não pareceu muito convencido de que eu havia de fato concordado com suas palavras, mas apenas levou os lábios à minha testa pela segunda vez naquele dia e indicou para que continuássemos. Sequei rapidamente a água que começava a pinicar os cantos de meus olhos e seguimos adiante.

Escalar para subir foi bem mais fácil que a descida. Retornamos para o acampamento pelo mesmo caminho, afinal Eustáquio poderia ter voltado, caso contrário, mais pessoas seriam designadas para procurá-lo. A angústia ameaçava me sufocar a cada momento que passava, mesmo controlando a respiração em busca de alguma calma. Não demonstrei aquele sentimento o máximo que pude, pois serviria apenas para atrapalhar e trazer mais preocupações, criando um ciclo sem fim. Faltava pouco para o pôr-do-sol quando regressamos ao acampamento.

—Estavam marcadas? - perguntou Drinian, para confirmar. Estávamos na tenda de Caspian, minutos após nosso retorno, já sob a luz dourada do fim do dia.

—Sim, todas. - respondeu Caspian. - São marcas antigas, estavam escondidas pelo musgo, mas certamente marcavam um caminho.

—Um caminho para onde, senhor? - perguntou Ripchip.

—Aí é que está. Pudemos ver somente dois caminhos saídos do principal, um levava ao que parecia uma caverna, mas não chegamos a descer. O outro levava ao vale onde encontramos o dragão.

—Não encontramos qualquer sinal de habitantes humanos até agora. - lembrou Ripchip.

—Talvez não tenha sido um habitante, mas um viajante. - pontuei. Rip e Drinian piscaram com a possibilidade.

—Sim…! - Rip expressou.

—Será que foram mortos pelo dragão? - perguntou Drinian.

—É possível. - afirmou Caspian, antes de Rip se pronunciar novamente.

—Mas e quanto ao garoto, Majestades?

—Encontramos seu diário no vale do dragão - respondi. - Mas nenhum sinal de que ele tenha adentrado o vale ou saído de lá.

—Certamente não foi ele quem matou o dragão.- pensou Drinian, tive que concordar com a cabeça. - Pode tê-lo visto e saído de lá assustado.

—Foi o que pensamos - Caspian assentiu, de braços cruzados. - Mas o que me intriga é que o dragão não parecia estar morto há muito tempo.

—Seria uma piada de mau gosto a criatura ter morrido logo após devorar Eustáquio. - Ripchip maneou, recebendo um olhar de todos nós. Pigarreou. - Eu não acredito em piadas do destino. O que quero dizer é que, se o dragão morreu há pouco tempo, a possibilidade de Eustáquio tê-lo encontrado já morto também existe. E Vossas Majestades hão de concordar que um dragão morto assustaria o menino tanto quanto um vivo. - ele nos olhou e mais uma vez tive que concordar, assentindo como Caspian. - Pois bem, Eustáquio deve ter saído correndo dali e ido para qualquer lugar longe daquele vale.

—E, se para cima não havia saída e ele não retornou ao acampamento, - emendou Drinian. - O outro caminho que mencionaram pode ter sido o escolhido e ele se embrenhou ainda mais mata adentro.

Olhei para Caspian, lembrando de quando quase descemos por aquele lado oposto ao vale para procurar por Eustáquio. Caspian retribuiu meu olhar, franziu os lábios e suspirou, voltando a falar.

—Só poderemos continuar as buscas com a luz do dia - disse- Drinian, precisaremos de mais homens procurando, se os fidalgos estiveram nessa ilha vamos encontrar algum vestígio.

—Sim, Majestade - Drinian fez uma leve reverência.

—Vamos descansar e continuar nos primeiros raios de sol.

Com essa última frase de Caspian, Rip e Drinian saíram após dirigirem uma reverência a nós. O cheiro de carne assada começava a se espalhar pelo ar, convidando para o jantar. O escurecer caía acelerado e o interior da tenda ficava cada vez mais indistinguível quando Caspian aproximou-se de mim.

—Você está bem?

—Só estarei quando o encontrar - respondi, com calma na voz, olhando-o nos olhos.

—Vamos voltar à caverna pela manhã e não descansaremos até que ele esteja a salvo - Caspian garantiu.

Seu tom de voz estava brando - transmitindo paz novamente - no entanto, a menção da caverna não passou despercebida. Busquei seu olhar e vi certo tom parecido com culpa no brilho que a noite destacava em suas íris. Inclinei um pouco a cabeça em um breve dar de ombros.

—Podemos voltar lá para descartar qualquer dúvida, mas como você disse, não havia sinal de passos ou passagem de alguém por ali - vi o olhar dele suavizar. Minha voz falhou quando continuei: - Temo que Eustáquio não tenha saído do vale.

Caspian empertigou-se como se fosse protestar, mas nada disse, simplesmente envolveu-me com seus braços, puxando-me para si. O conforto de esconder meu rosto contra seu peito quase forçou meus medos para fora, mas mantive-os por dentro. Não valia a pena sofrer com antecedência. Não era como na Inglaterra, onde poderia me dar ao luxo de extravasar meus medos e angústias, não. Não poderia ceder tão fácil. Em uma viagem pelo mundo, nos aventurando de ilha em ilha sem previsão de quando - ou se - voltaríamos, depois de todas as desventuras, quando o ânimo, ou mesmo a fé da tripulação falhava, tanto a minha quanto a de Caspian não poderia falhar. Se nos deixássemos abalar ou abater, toda aquela missão e, ouso dizer, aquelas vidas, estariam em sérios perigos. Fazia parte de governar. Esta era a única missão que não podia falhar, mesmo se chegássemos ao fim do mundo e de lá retornássemos a Nárnia sem os fidalgos.

Só nos separamos quando alguém veio nos avisar do jantar. Passei as mãos no rosto como que para despertar e mandar embora todos aqueles pensamentos, então seguimos juntos para perto dos outros. Drinian nos avisou sobre os homens que nos acompanhariam no dia seguinte em expedição pela ilha enquanto fazíamos nossa refeição junto aos demais, sob o céu estrelado parcialmente exposto pelos pinheiros. O dia havia sido exaustivo e, embora alguns tenham tentado trazer alguma animação com cantorias e histórias, não demorou para que nos recolhêssemos.

Caspian

Felizmente, o clima da noite era agradável, e o calor do fogo do lado de fora era suficiente. Minha tenda era grande apenas o necessário para ter onde dormir, um baú de roupas, uma pequena mesa com mapas e tinta e nada mais. Susana estava na tenda ao lado, um pequeno conforto e privacidade para a única mulher da tripulação. Costume padrão, e apesar de ter um palpite de que ela apreciava aquela privacidade, duvidava de que teria problemas em ficar junto aos outros caso fosse preciso.

Deitar foi a ação mais fácil daquele dia, dormir não. O sono havia fugido mesmo com o cansaço do dia reivindicando-o. O silêncio era total, sequer o som de um pássaro era ouvido pelo tempo que permaneci encarando o teto da tenda. Não menti ou exagerei quando disse também estar preocupado com Eustáquio e apesar de Susana se manter firme, sua aflição era evidente, ao menos para mim. Isso me angustiava mais que o próprio sumiço. Já deveria ter aprendido que adversidades são a única garantia em empreitadas como essa a bordo do Peregrino, o que viesse de bom, era de fato lucro. No entanto, quando a família e amigos estão envolvidos, é muito mais difícil manter a firmeza.

Susana é família para mim, como seus irmãos o são. De uma forma diferente, claro. Era a única - dentre todas as moças que um dia conheci - que despertava em mim vontades irracionais como a que surgiu no silêncio daquela noite: cortar aquele caminho que separava nossas tendas apenas para vê-la e, com sorte, roubar-lhe um beijo. Mas não o faria e o sumiço de Eustáquio era apenas um dos motivos. Queria que Susana ficasse ao meu lado, jamais escondi isso e mesmo se tivesse tentado manter sigilo, teria sido impossível. Sermos separados outra vez não estava nos meus planos e havia uma saída para isso, tinha que haver. Uma saída que eu buscava todas as noites antes de dormir desde aquela noite de tempestade.

Desci a mão que repousava sobre o abdômen até a caixa pequena que havia deixado junto a espada, bem ao lado de onde tentava dormir. Acomodei o outro braço atrás da cabeça, observando a caixa entre os dedos antes de abri-la, encontrando os dois elos guardados ali. Aquela ideia surgiu em minha mente a partir do momento que Coriakin me presenteara com os anéis. Desde então os mantive no bolso, sempre ao alcance, esperando pelo momento certo.

Era um desejo que emergiu silencioso no dia que vi Susana pela primeira vez. Ao cair da noite daquele mesmo dia - na tumba, três anos atrás - seus olhos não saíam de minha mente e eu sabia que estava destinado a amá-la, sendo correspondido ou não. Aquele sonho pareceu para sempre distante quando a vi atravessar o portal com os irmãos. No entanto, uma coisa que tive certeza depois de tudo aquilo: Aslam jamais foi indiferente aos seus. E, quando a vi no mar, tive certeza que a nova chance que tanto desejei havia chegado.

Pelo menos, até a noite em que lemos o feitiço.

Sabia que haviam mais coisas a serem contadas. Da mesma forma que vi diversas imagens, Susana também o tinha e por alguma razão não me contara tudo naquele momento. Quando esses pensamentos reviram no fundo de minha mente e acabam voltando à tona, eu os tenho mandado de volta. Uma parte de mim não entende as razões que a fizeram decidir por omitir alguma informação, mesmo que por algum tempo. Isso despertava uma ponta de desconfiança contra a qual eu travava lutas ferrenhas, pois a outra parte - a maior delas - tinha certeza de que havia uma razão perfeitamente natural e só cabia a mim aguardar a oportunidade certa. Porém, tenho certa vergonha em admitir que a parte da dúvida em minha mente havia me impedido de ir até Susana algumas vezes. Talvez por medo do que ela ainda tinha a dizer. Medo de perder aquele sonho mais uma vez. Fechei a caixa com os anéis e a deixei sobre o leito. Precisava dormir.

Longe, houve um ruído que não soube identificar, parecia irrelevante. Torci para que fosse. Então, soou mais perto, me deixando um pouco confuso pois não conseguia definir o que era ou de onde vinha. Um farfalhar alto, poderia ser. Soou ainda mais alto, fazendo-me levantar e calçar as botas. Devia ser madrugada, o único som familiar que chegava até mim era o crepitar da fogueira do lado de fora, que estava sendo ofuscado pelo dito farfalhar em intervalos regulares. Alto, grave, como se um par de asas enormes se movessem pelo céu acima de nós.

Guardei a caixa no bolso e peguei a espada. Foi quando ressoou outra vez e aproximei-me da entrada da tenda, olhando para o céu. Minhas veias pareciam ter sido tomadas por gelo no momento que vi a silhueta imensa do dragão voando acima do acampamento. Ninguém havia acordado, Susana era quem estava mais perto de mim, então aproveitei quando a fera olhou em outra direção e cortei a distância entre nossas tendas na calada da noite por um motivo completamente diferente do que havia cogitado. A situação deu-me liberdade para adentrar sua tenda sem aviso ou protocolos e, para minha surpresa, ela estava calçando a segunda bota, lançando-me um olhar atento.

—Você também ouviu? - perguntou.

—É o dragão - respondi num sussurro rouco, fazendo-a olhar-me espantada. - Está voando acima de nós. Precisamos vigiar para onde ele vai.

Susana assentiu, pondo-se de pé e apanhando sua aljava. Nos aproximamos da entrada da tenda, muito próximos para olhar pela pequena brecha que abri ao afastar o tecido. Os cabelos meio bagunçados dela deslizaram por seu ombro e eu podia sentir seu calor contra o clima da noite. Lá em cima, o dragão bateu asas novamente, tomando minha atenção. O animal traçava um voo incerto, quase em círculos, sobre o acampamento.

—Não pensei que fosse possível existirem mais de um dragão nesta ilha - sussurrei. - São muito territoriais.

—O que encontramos no vale pode ter sido morto por este, não? - ela comentou, baixo.

—Pouco provável. - ponderei em igual tom. - Se fosse assim teríamos encontrado um vale coberto de sangue.

Susana assentiu, voltando seu olhar para o céu. O dragão enfim parecia ter achado um rumo.

—Está indo para a praia.

—Vou alertar Drinian - avisei, antes de sair da tenda a caminho do capitão.

Susana manteve-se do lado de fora da tenda, com os olhos atentos no céu estrelado. Chamei Drinian com o máximo de cuidado para não causar um pequeno alvoroço, informei-o da situação e o incubi de alertar os outros para nos encontrarem na praia, Susana e eu seguiríamos na frente para avaliar a situação. Drinian assentiu e eu avancei para a praia logo após sinalizar para Susana me acompanhar. Cruzamos a distância do acampamento ao limite do bosque rapidamente, passando e nos escondendo pelas rochas quando alcançamos uma vista privilegiada da praia. A fera de fato estava ali sobre a areia, longe de nós. Sua pele era avermelhada e a cara um pouco menos marcada e agressiva do que a do outro. E, mais intrigante ainda, ele olhava para o mar, para o céu, para a areia, parecia esperar. Logo demonstrou ter ouvido alguma coisa e no momento seguinte Drinian e os outros nos alcançaram no maior silêncio possível. Olhei rápido para o dragão, sabia que ele tinha ouvido, mas não se mexeu, pelo contrário.

—Consegue vê-lo? - Susana perguntou baixo ao capitão junto a nós dois.

—Sim - Drinian não tirou os olhos da fera. - O que faremos, Majestades?

—Dragões não costumam ser animais falantes, costumam? - indaguei por curiosidade.

—Não, senhor - respondeu o capitão - Muito menos pacíficos.

—Este está estranho - comentou Susana. - Parece estar esperando algo.

—Seria outro dragão? - ponderou Drinian.

—Senhor - Ripchip saltou na pedra ao nosso lado, de espada em punho. - Eu me ofereço para enfrentar essa fera!

—Você não vai a lugar algum, Rip - determinei. Ele lançou-me um olhar decepcionado.

—Mas, Majestade… - Se fosse outra pessoa, qualquer outra, especialmente criança, diria que Ripchip tinha os olhos marejados de frustração por ter sua diversão negada, mas aquilo não estava em discussão.

—Se você insistir, eu mesmo vou amarrá-lo - ergui as sobrancelhas para ele. A pena vermelha em sua cabeça balançou quando ele embainhou a espada a contra gosto.

Guardei o fantasma de riso que queria se formar em meu rosto e Drinian prosseguiu.

—Não podemos encurralar um alvo que pode voar, nossas espadas e flechas não são suficientes contra aquela pele.

—Talvez não qualquer espada - Susana pontuou, indicando a espada de Pedro em minha bainha.

—E talvez não qualquer flecha - concordei, trocando um olhar com ela. Susana assentiu.

O dragão urrou e tudo à nossa volta pareceu tremer, fazendo-nos contrair instintivamente.

—Posso derrubá-lo e você pode atacá-lo com a espada - ela disse, quando o som cessou. Assenti duas vezes.

—É uma lástima matar uma criatura tão formidável… - Ripchip comentou consigo mesmo.

—Também acho, Rip, mas estaremos em sérios perigos com um dragão à solta. - respondi.

—Vamos adiante para distraí-lo - Drinian completou, aguardando uma autorização minha.

Assim que a dei, ele sinalizou para os homens e todos marcharam para a praia em uma formação compacta contra o dragão. Susana preparou o arco, aproximando-se das últimas árvores, deixando o caminho livre para que eu corresse quando chegasse a hora. Desembainhei a Rhindon e observei, aguardando. O dragão avistou Drinian e os outros no momento que pisaram na areia e agora sua atenção estava neles, que se aproximavam cautelosos. Diferente do esperado, o dragão vermelho movia os olhos sobre aqueles na areia, como se buscasse algo entre eles. Emitiu um barulho a princípio baixo, que repetiu mais alto à medida que olhava cada um e não encontrava o que quer que fosse. Vendo que ninguém iria recuar, ele começou a se agitar, pondo-se de pé e emitindo ruídos cada vez mais altos.

—Arqueiros! - gritou Drinian quando estavam a cerca de quinze metros de distância do dragão.

Ao ouvir o som, o animal empertigou-se, urrando e olhando os homens como se esperasse algum tipo de resposta. Susana ajeitou a mira e os urros tornaram-se mais ameaçadores, suas asas abriam-se como se ele pretendesse levantar voo. Tomei a deixa e avancei sem chamar a atenção, na mesma direção que os marinheiros tomaram, deixando Susana para trás ainda nas árvores. O dragão ergueu-se, expandindo ainda mais as asas com um urro, seus olhos inquietos avistaram-me no momento que Drinian gritou:

—Agora!

As flechas cortaram o ar e, como esperado, chocaram-se contra a pele do dragão sem causar nenhum dano, apenas atiçaram-no para voar. Foi nesse momento que Susana saiu das árvores e rochas para a areia, e sua flecha voou sobre mim em direção a cabeça do dragão. Porém, o improvável aconteceu e a flecha não o atingiu. Olhei rápido para Susana que parecia assustada. O dragão ergueu-se ainda mais, urrou e lançou-se ao céu com um impulso das asas e patas, causando o ribombar que ouvira mais cedo, dessa vez muito mais alto. Senti o vento que causou contra meu rosto nos poucos segundos que se passaram entre seu impulso para o céu e o rasante sobre minha cabeça, longe demais do meu alcance, indo direto ao encontro de Susana.

—Susana! - chamei, tentando despertá-la do que quer que a prendia estática.

Ela recuou, e tentou correr para a floresta, mas não houve tempo. O dragão mergulhou para a areia num pouso abrupto, desequilibrado, que me atingiu como um soco no estômago mesmo sem tocar em mim. Derrubou Susana metros para longe, fazendo-a rolar pela praia, jogando areia para o alto. Quando a poeira baixou, vi o dragão sobre suas quatro patas, encarando Susana, deitada na areia entre suas patas dianteiras. A sensação do soco afundou-se, parecendo querer cortar-me ao meio, impotente diante daquela cena.

—Majestade! - ouvi as vozes de alguns, atrás de mim, com passos sobre a areia em minha direção.

Sem tirar os olhos de Susana, vi quando ela estendeu a mão para que parássemos. Ela estava viva, mas não podia dizer por quanto tempo e, com um peso enorme sobre mim, também ergui a mão para que os marinheiros parassem. Não importa o que acontecesse, não havia nada que pudéssemos fazer.

Porém, “nada” foi o que aconteceu.

Vimos o dragão afastar-se um pouco e Susana se levantou. Permiti que um pouco de ar entrasse em meus pulmões devagar. Ela e o dragão continuaram a se encarar, Susana sussurrou para ele algo que não pude ouvir e em resposta, o dragão mexeu a cabeça. Sem entender nada, testei me aproximar passo por passo. O dragão não reagiu, ainda olhando para Susana, mas, quando virou a cabeça enorme em minha direção, pude vislumbrar os olhos azuis e assustados. Meus ombros arriaram, finalmente compreendendo o que havia acontecido.

—Pela Juba do Leão…!

Notei Drinian se aproximando e parei, tornando-me para ele.

—O que está havendo, Majestade?

—Tranquilize os homens, capitão - falei. - Parece que Eustáquio encontrou o caminho de volta.

Os olhos dele arregalaram-se brevemente antes de encarar o dragão outra vez. Ainda surpreso, Drinian assentiu e retornou até os outros enquanto continuei meu caminho até Susana.

Susana

O leve roçar de alguma parte do dragão contra meu ombro foi bruto o suficiente para derrubar-me. Quando parei de rolar pela areia, virando-me de peito para cima, encontrei a cabeçorra avermelhada do dragão acima de mim. Sabia que havia chegado ao fim e somente Aslam poderia intervir contra uma morte tão brutal. Não saberei descrever o choque que se apoderou de meu corpo naqueles poucos segundos. No entanto, o dragão nada fez além de me encarar. Ergui a cabeça levemente ao reparar que ele não se movia, deparando-me com enormes olhos azuis. O dragão me encarava com um brilho de medo e agonia, como se estivesse desesperado. Seria a situação mais estranha de toda minha vida, se os pontos não começassem a fazer sentido em minha mente.

Ouvi os passos sobre a areia, e sem pensar direito, apenas ergui a mão para que não se aproximassem. Eles pararam e o silêncio reinou na praia. Aqueles olhos eram extremamente familiares, e comecei a entender que Eustáquio realmente não havia saído do vale do dragão, pelo menos não até aquele momento. Soltei o ar que prendia e ouvi um ruído baixo vindo do dragão, quase como um choro entalado na garganta.

—Eustáquio? - arrisquei.

Não saberia dizer o que me apavorava mais: saber que Eustáquio havia virado um dragão ou saber que aquele dragão não era Eustáquio. Em resposta, ele balançou a cabeça numa afirmação desengonçada. Respirei fundo, levantando devagar, ele se afastou, mas gemeu de dor, fazendo-me notar o bracelete dourado preso em uma das patas. Certamente era pequeno demais e o aperto estava causando um inchaço notável ali.

—Consegue me entender? - continuei. Outra vez ele acenou. Obriguei-me a respirar mais fundo. - O que houve com você?

Então uma série de rugidos e gemidos impossíveis de entender foi derramada sobre mim. Podia sentir a agonia e o desespero que ele expressava tentando me contar o que lhe havia sucedido, mas não saía palavra alguma. Sinalizei para que ele parasse, o que custou alguns segundos até que ele se acalmasse.

—Eustáquio, Eustáquio! - ele finalmente parou e me olhou, quase ofegante. - Você pode me entender, mas não pode falar.

Ele bufou e a fumaça saiu por suas narinas. O pânico finalmente deixou meu corpo, causando um relaxamento que somado a peculiaridade da situação, me fez rir. Eustáquio olhou-me intrigado. Mordi o lábio para conter o riso e o deixei saber o que se passava:

—Tia Alberta não vai gostar disso.

Ele resmungou, ultrajado numa tentativa de rolar os olhos. No movimento, ele olhou para onde Caspian e os outros estavam, alguns metros longe, observando a cena sem saber se sentiam espanto ou descrença. Caspian, que estava mais perto de nós, caminhou pela areia até nos alcançar com Ripchip em seu encalço. Lançou-me um olhar com uma pergunta silenciosa e eu assenti, então ele se dirigiu a Eustáquio, com um leve sorriso:

—Parece que finalmente te encontramos - meu primo olhou de Caspian para mim um pouco surpreso.

—Então você foi seduzido pelo tesouro de um dragão, rapazinho - Rip cruzou os braços. Eustáquio bufou para ele.

—Todo mundo sabe que o tesouro de um dragão é encantado - comentou Caspian, recebendo um olhar não muito melhor de Eustáquio. - Todo mundo em Nárnia.

Eustáquio rolou os olhos, soltando outro grunhido baixo que chegou aos meus ouvidos como suas reclamações afiadas. Sorri de lado. Dragão ou não, o alívio de tê-lo encontrado com vida era suficiente. Foi então que o olhar de Caspian recaiu sobre o bracelete.

—O que é isso?

—Está preso na pata - expliquei enquanto Caspian se aproximava para observar. Ele ergueu os olhos para Eustáquio:

—Você encontrou esse bracelete no vale do dragão?

Eustáquio assentiu novamente com uma série de rugidos e grunhidos, como se tentasse contar, mas ao recordar-se de que era em vão, parou emburrado. Caspian observava a jóia com cuidado e atenção. Aproximei-me dele.

—Está tudo bem?

—É o brasão de Lorde Octasiano.

—Sinto muito, Milorde - lamentou Rip.

Caspian lambeu os lábios, ainda olhando o bracelete. Estava apertado demais na pata, aquilo certamente estava doendo muito. Cheguei mais perto e Eustáquio deixou-me tentar tirar, mas poderia machucá-lo ainda mais. Havia uma tentativa, e busquei no cinto o elixir de Lúcia.

—Acha que ele podia ser o outro dragão? - perguntei para Caspian enquanto apanhava o elixir. Ele ponderou.

—É possível.

—Eustáquio - chamei - lhe darei uma gota do elixir, para ajudar com sua p… seu braço.

Um brilho novo passou por seus olhos ao reconhecer o vidro, um brilho de esperança. Tinha minhas dúvidas de que o elixir poderia desfazer o encanto como ele devia estar pensando, mas poderia ajudar com a dor. Eustáquio baixou mais a cabeça e abriu a boca cheia de dentes enormes, estendendo-me um pouco a língua. A gota do elixir misturou-se ao vermelho da língua e Eustáquio prontamente ingeriu. No entanto, nada aconteceu, seu ferimento não sarou e aquela sem dúvida era a terceira coisa mais estranha da noite. Pelo menos, ele se moveu melhor, como que para testar, demonstrando sentir menos dor.

—Parece que faz parte do encanto. - disse. - Sinto muito.

Eustáquio olhou-me e piscou, entendi que agradecia. O burburinho aumentou e os homens nos cercaram aos poucos, expressando comentários dos mais impressionados aos mais pessimistas e até mesmo deslumbrados com o que se passara, mas havia sempre aqueles que expressavam o alívio por Eustáquio estar de volta e até questionavam onde ele ficaria. Ripchip fazia parte dos dois últimos grupos, seus olhos chegavam a brilhar. Contudo, ainda eram altas horas da noite e todos continuavam cansados, então pouco a pouco cada um foi voltando para o acampamento até restarem somente nós quatro ali.

—Eu posso fazer companhia, se quiser - disse para Eustáquio, tocando a pele áspera de seu rosto. Era inviável para ele dormir no acampamento, não caberia, sendo melhor e mais seguro que Eustáquio dormisse na praia a poucos metros de nós. Porém ele não parecia confortável com a ideia.

—Se me permite, Majestade - Rip adiantou-se, gentilmente. - Eu posso ficar aqui com ele, sempre gostei de dormir sob as estrelas e posso vê-las melhor daqui. Além disso, será mais confortável para mim do que para a senhora.

Sorri de leve para ele, em seguida olhei para Eustáquio.

—Tudo bem? Estarei a poucos metros - em resposta ele grunhiu o que pareceu ser uma afirmação e a fumaça oscilou para fora de suas narinas. Acariciei o mesmo lugar, olhando-o nos olhos e lhe garantindo: - Daremos um jeito. Boa noite, Eustáquio.

Nos despedimos e Rip logo emendou em uma conversa unilateral com meu primo. Pude ouvi-los até adentrar de novo pelo bosque.

—Posso lhe mostrar as estrelas, se quiser. Mas se preferir, posso lhe contar histórias! Ora, quem diria, meu jovem. Que coisa mais extraordinária foi acontecer com você! Essa história certamente será ouvida em Nárnia por muitos e muitos anos: O Conto do Menino Dragão…!

[...]

O dia seguinte começou um pouco mais tarde, naturalmente compreensível. O trabalho foi retomado logo após o café da manhã e, antes de ir para o conserto das velas, fui até a praia para ver Eustáquio. Meu primo transformado em dragão foi um susto, somado ao pânico de não saber como resolver e alívio por tê-lo de volta, resultou em algum tempo sem conseguir dormir. Depois de uma rápida conversa com Caspian no caminho de volta, chegamos à conclusão de que o dragão morto no vale só poderia ser Lorde Octasiano, que caíra no encanto assim como Eustáquio. Infelizmente, não chegamos a tempo de tentar ajudá-lo.

Isso me preocupou de certa forma. Se Lorde Octasiano passou tanto tempo aqui e mesmo assim não conseguiu desfazer o encanto, como poderíamos ajudar Eustáquio? Ou pior, seria ao menos possível quebrar esse encanto? Revirei por um bom tempo de um lado para outro sem conseguir dormir devido a isso, até que outra coisa que também me intrigou voltou à minha mente.

"Confie neste arco. Ele quase nunca vai errar."

Lembro de ter estacado em choque sobre a areia, diante do dragão desconhecido, sem conseguir entender como a flecha não atingiu o alvo. A mira estava certa, o dragão não se mexeu, a flecha simplesmente foi na direção errada. Na hora não entendi, mas ainda na noite anterior, fez sentido. Eustáquio só poderia estar protegido de nossa investida, e isso só me faz pensar que há algum propósito maior em tudo isso. Encontrei com Ripchip no caminho, já bem perto da areia.

—Majestade! Muito bom dia!

—Bom dia, Rip! Como foi a noite?

—Ah, ficamos olhando as estrelas até tarde - disse em tom ameno, pensando um pouco e dirigindo um rápido olhar para trás - Está sendo difícil para ele, Alteza.

—Imagino que sim - concordei, também olhando para a praia. - Ele já acordou?

—Sim, acabou de sair voando. Pelo som que vinha da sua barriga, eu diria que estava com fome!

Ri de leve. Nós dois retornamos ao acampamento, logo nos integrando aos trabalhos. Um grupo já retornava do rio com roupas lavadas, outro cortava madeira para o conserto dos barris e me juntei ao grupo das velas. No dia anterior, os homens que trabalhavam comigo ficaram um pouco constrangidos - tímidos - em minha presença, mas minhas tentativas de quebrar o gelo pareciam ter funcionado pois a conversa fluía mais fácil naquela manhã. Com a proximidade da hora do almoço, Caspian se aproximou de onde estávamos.

—Parece que está na nossa vez de ir à caça - estendeu-me a aljava, com um ar de sorriso.

Tornei-me para meus companheiros e gentilmente avisei que voltaria assim que terminássemos. Eles assentiram e aceitei a aljava que Caspian me oferecia, pondo-me de pé. Com os cabelos presos e em posse de sua espada, Caspian seguiu na frente para a floresta. Achamos um rastro recente e o seguimos em silêncio, mas o perdemos. Só o que se ouvia era o som da brisa e nossos passos na terra e relva. Diferente de antes, o clima estava fresco, agradável e as cores pareciam muito mais intensas.

—Aqui - Caspian indicou marcas de cascos, após um tempo de caminhada, olhando naquela direção em seguida.

Aguardamos por alguns segundos e logo a cabra despercebida apareceu, de costas para nós, pastando em paz. Caspian apenas olhou-me em silêncio e eu puxei a flecha com cuidado, posicionando-me e fechando um dos olhos. Apenas parte de sua lateral era visível por trás da árvore, então aguardei um pouco mais. Não houve barulho enquanto eu a observava pela mira, porém, subitamente, a cabra deu um leve berro e correu, sumindo no bosque. O som de seus passos não foram para longe, então a seguimos. Não tinha como ela ter nos percebido, só poderia ter sido atiçada por outra coisa. Caspian parecia pensar o mesmo, pois avançou com maior cautela.

Nós a avistamos em outra direção antes que acelerasse mais uma vez, se aproximando da encosta de uma das montanhas. Ela andou ligeira até entrar em uma caverna que havia ali, quase camuflada. A sensação de já ter visto aquele lugar fez-me relaxar a corda do arco. Olhei em volta buscando qualquer coisa familiar. Foi quando encontrei o caminho que subia à direita.

—É aquela caverna? - perguntei.

—Sim - Caspian respondeu, voltando o olhar da subida para mim, parecendo tão intrigado como eu. Olhamos para dentro da caverna. - O que você acha?

—Já estamos bem aqui, não? - dei de ombros levemente, com um leve sorriso. - Além do mais, parte do nosso almoço está lá dentro.

Caspian sorriu para mim, sacando a lanterna de Edmundo presa em seu cinto num claro convite. Eu ri.

—Você gostou mesmo dela, não é?

—É uma maravilha! - confessou, acendendo.

Caspian foi adiante, iluminando o caminho estreito e cheio de rochas irregulares que atrapalham a descida para o interior da montanha, como um túnel que estava interditado por algum desabamento. Vez por outra, ouvimos o eco de berros casuais da cabra, vindos de algum lugar lá embaixo. Descemos por vários metros até chegarmos a uma espécie de galeria. Apesar de estar abaixo do chão, rachaduras e brechas na montanha permitiam que um pouco de luz entrasse naquela parte da caverna. O teto era alto e repleto de rochas pontudas, o chão irregular estendia-se até um lago cristalino cujas margens eram adornadas por mais rochas. A cabra estava por ali, buscando algo no chão.

Parecia um lugar normal. O silêncio dali, no entanto, não era igual ao resto da ilha. Havia uma vibração quase imperceptível no ar, daquelas muito peculiares que tornam-se familiares para quem já experimentou aventuras em Nárnia antes. Logo a adrenalina no estômago se fez presente, aguçando os sentidos em alerta de que havia algo diferente ali, que nos compelia e envolvia. Meus olhos por fim chegaram ao lago, fui aproximando-me devagar.

—Tem magia aqui - Caspian sussurrou, olhando em volta. Ao chegar na margem do lago, inclinei-me cautelosamente para a frente, a fim de espiar a água. Cristalina, revelava o dourado vívido no fundo, em forma de homem. Os instintos gritaram de novo.

—Sim… - sussurrei, voltando-me para Caspian - É o lago.