Mar de Lírios

Mar de Verdades Claras


“Confusion that never stops

Closing walls and ticking clocks

Gonna

Come back and take you home

I could not stop, that you now know”

— Clocks, Coldplay.

A aura azul que emanava da luz que se aproximava de nós tornou-se branca e fria. Ao mesmo tempo, uma sirene ensurdecedora berrou preenchendo todo o ar a nossa volta, parecia o grito de um trem.

O som do mar ressoava longe e o vento soprou mais forte, fazendo a porta da pequena sacada bater contra as prateleiras logo atrás dela. Mesmo com o barulho, despertei suavemente, sentindo o corpo relaxado gradativamente recebendo os sinais de que havia acordado. Respirei fundo, abrindo os olhos. A luz suave que entrava na cabine indicava que havia amanhecido há menos de uma hora e lançava uma aura de paz e leveza no toque suave com a madeira do chão e móveis da cabine. Pisquei algumas vezes e levei alguns segundos para me mover, sentindo o peso do braço de Caspian sobre mim, impedindo-me. Ele não se moveu, ainda inerte. O calor aconchegante de seu corpo me convenceu a permanecer como estava e aguardar um pouco mais.

Havia sido assim desde a festa. No dia seguinte zarpamos da Ilha do Dragão, adiando a lua de mel em prol da missão que nos levava até ali. Caspian prometeu que me daria uma semana inteira em uma viagem por Nárnia depois que voltássemos e oficializássemos nossa união, mesmo sabendo que não havia nenhuma oposição minha sobre o adiamento. Estava perfeito como estava. A rotina mudara para nós na vida no navio agora que Caspian, naturalmente, voltou a ocupar a cabine principal. Acordar toda manhã com Caspian ao meu lado era semelhante à própria vinda a Nárnia: incrível, e se tornaria a melhor coisa que poderia me acontecer.

Na manhã, o conforto do seu abraço fazia-me esquecer dos sonhos misteriosos que rondavam minha mente, cheios de significados ocultos que eu não conseguia decifrar. Quanto mais eu pensava a respeito, mais estranhos ficavam, embora fossem nítidos e fizessem todo o sentido enquanto estavam na minha mente. Quando acordava, esse sentido sumia completamente. Apesar deste detalhe, tudo corria bem. Deixamos a ilha com bastante mantimentos, a Estrela Azul brilhava desde que aparecera, mesmo de dia, nos guiando para nosso próximo destino, e – um ponto muito importante – nenhuma tempestade nos engoliu até então.

Aquele dia estava belo, e tudo indicava que seria bom como os últimos quatro. Respirei fundo novamente, movendo-me até estar de frente para Caspian, a fim de acordá-lo. Afastei o cabelo que lhe cobria o rosto tranquilo. A este mero toque vi seus olhos se moverem sob as pálpebras para então abrirem lentamente. Um sorriso suave deu sinais no canto de seus lábios quando meus dedos chegaram até a barba por fazer.

—Bom dia – a voz rouca soou baixa.

—Bom dia – respondi. Caspian abriu um olho para espiar em volta, logo voltando a fechá-lo.

—Perdi a hora outra vez, não foi?

—Um pouco, apenas.

Ele sorriu de lado.

—Não amenize, sabe que a culpa é sua.

Encarei-o horrorizada.

—Minha?!

Caspian abriu os dois olhos desta vez, encarando os meus.

—Sim, por me fazer ficar acordado até tarde.

Eu ri, corando e empurrando-o pelo ombro. Ele aproveitou para me segurar e puxar-me para si. Senti sua mão subir para minha nuca enquanto me beijava, arrepiando-me. Por fim, nos levantamos para mais um dia. Uma pequena e simples rotina já era perceptível entre nós e isso era extremamente reconfortante. Levantávamos cedo e após o dejejum nos envolvíamos em qualquer atividade referente ao funcionamento do navio.

Desde o concerto do navio, me incluir nas tarefas diárias era bem mais confortável e fluido, tanto para mim quanto para os marinheiros. Era muito bom. Normalmente ficava ocupada até a hora do almoço, o que deixava minhas tardes livres para jogar xadrez com Ripchip. Entretanto, naquele dia, enquanto atava o cinto ao corpo, notei algo diferente.

—Estamos parados? – perguntei a Caspian. Ele parou de calçar a bota e olhou em volta, terminou de calçá-la e foi até a janela.

—Parece que sim.

Deixamos a cabine e logo confirmamos. Lá fora, havia pouco movimento no convés, as velas cor de púrpura estavam içadas, mas murchas. Não havia vento. Drinian veio em nossa direção assim que nos viu, o tom de preocupação era visível em seus olhos.

—Majestades, bom dia.

Respondemos o cumprimento e Caspian logo emendou:

—Há quanto tempo estamos parados?

—Desde pouco antes do amanhecer, Majestade. O vento simplesmente parou.

Caspian franziu os lábios, o olhar preocupado indo até as velas rapidamente, e então para o horizonte de onde a Estrela Azul reluzia.

—Devo ordenar que comecemos a remar?

—Ainda não. Vamos esperar algumas horas.

Algumas horas viraram o dia inteiro. O vento não voltou e a preocupação passava pelos olhares de todos que cruzavam o convés e lançavam seus olhos para as velas paradas. Rip e eu tivemos mais tempo livre e pudemos jogar duas partidas no nosso cantinho de sempre, sendo observados por Eustáquio que voava incansavelmente e usava a cabeça de dragão no castelo da proa para repousar por breves minutos de vez em quando.

Ele era quem mais me preocupava. Seu tamanho o impedia de vir a bordo, naturalmente, assim como não poderíamos deixá-lo na Ilha do Dragão, então restava a ele permanecer no céu a maior parte do tempo. Sem dúvidas, logo ele ficaria bastante cansado e este era um motivo para chegarmos à terra logo. Ou pelo menos ir mais rápido.

Pela tarde, Drinian propôs que ele se adiantasse e voasse uma distância mais a frente para termos noção de quão longe estávamos da Ilha de Ramandu. Por mais que eu quisesse muito me oferecer para ir com Eustáquio, sabia que meu conhecimento quase nulo sobre navegação não seria de utilidade, então me contentei em ficar a bordo. O capitão subiu em suas costas e os dois voaram adiante. Ripchip fez questão de ir junto, então precisei me ocupar com outra coisa.

Sem ter muito o que fazer, achei o momento excelente para trabalhar nos mapas. Caspian já havia conversado comigo sobre essa missão e eu não poderia me identificar melhor: pouco depois que os três partiram, juntei-me a Tarvos e Rince na cabine usada para reuniões, a fim de trabalhar nos registros.

Tarvos era excelente com as técnicas de cartografia, mas lhe faltavam habilidades com a pena para registrar as informações. Assim, Rince e eu seguíamos suas instruções transpondo-as no mapa tarde afora. No espaço em branco surgiram as ondas do mar revoltoso que enfrentamos e a Ilha do Dragão. Ele teve bastante tempo lá, então haviam muitas informações riquíssimas sobre ela, que levariam algum tempo para terminar.

Drinian, Eustáquio e Ripchip retornaram algumas horas depois de partirem, Caspian me informou quando nos encontramos na cabine antes de dormir. Quando terminamos com o mapa já era noite e quase todos haviam comido e se recolhido. Segui para a cabine e, conforme Caspian contara enquanto comíamos juntos, os três conseguiram ver a silhueta da ilha sobre a qual a Estrela Azul pairava. Com sorte, a uns três dias de distância em tempo bom.

No dia seguinte, os ventos não voltaram. Logo após o café da manhã, a primeira escala de homens desceu para os remos. De cara, o navio pareceu não se mexer ao impulso do coro.

Remém! Remém!

Então, lentamente, o navio avançou pelo mar. Apenas Rince ficou comigo na cabine de reuniões para trabalhar no mapa, uma vez que Tarvos estava lá em baixo. Sem a orientação dele, nos limitamos às cópias que devíamos fazer. Todo aquele dia se passou e no crepúsculo o navio parou novamente, e Caspian e Drinian me encontraram na cabine assim que Rince saiu.

—É preocupante, senhor – dizia o capitão. — Tudo se complica com a ausência de vento. O gasto de energia nos remos é muito alto, além da exaustão logo teremos mais fome, o que afeta nossa estoque.

Caspian concordou com a cabeça, pensativo.

—Permita que todos descansem esta noite, conseguimos um bom avanço hoje, vamos tomar as providências para não o perder.

—Quanto tempo acha que levaremos para chegar neste rítmo? - perguntei a Drinian.

—Eu temo, Majestade, que alguma coisa não quer que cheguemos a esta ilha.

Drinian assentiu em despedida e então ele foi descansar. O navio estava silencioso, e logo voltamos à nossa cabine. Dormi assim que minha cabeça encontrou o travesseiro.

O cômodo da casa em que estava olhando a aliança em meu dedo, começou a se desfazer. A própria aliança mudara de cor, do dourado reluzente para o preto ônix. Aquela eu conhecia, era a que Caspian colocou em meu dedo. Mas, meus pés não calçavam mais os saltos e sim as botas. O assoalho da casa deu lugar ao chão de pedra quase escondido sob a relva alta, ruínas se espalhavam a minha volta. Era um cenário de conto de fadas, diferente de tudo o que vira em Nárnia. Tudo era banhado em tons de azul, como se a noite iluminasse o lugar. Do céu, uma das estrelas chegava mais perto, descendo e descendo até que sua forma luminosa me ofuscava e não consegui ver mais nada além. Então, a luz cálida e azulada da estrela se tornava branca, sem mágica, fria e criel. Havia se tornado o farol de um trem que eu não podia ver, mas que ouvia sua velocidade vindo em minha direção e sua buzina, alta, urgente, me afligindo. Quando estava perto demais, a luz subitamente apagou.

Despertei num susto, erguendo-me da cama e sentindo o alívio de ter acordado. Durou um segundo apenas, pois as preocupações e apreensões que esses sonhos plantavam em mim permaneciam o tempo todo. Sentei na beira da cama, pondo-me de pé um pouco depois. Caspian permaneceu dormindo e agradeci por isso. Descalça, caminhei pela cabine deixando que a frieza do chão me distraísse. Tomei um pouco da água que mantínhamos ali e caminhei até a parte de trás, onde as portas permitiam passagem para a sacada.

A noite trazia uma brisa fria, o sopro melodioso e o mar eram os únicos sons. O céu tinha algumas nuvens, que não impediam as estrelas de aparecerem, deslumbrantes como sempre. Abracei meu próprio corpo, respirando devagar. Embora olhar o céu me acalmasse, as luzes piscantes provocavam as lembranças daqueles sonhos recorrentes. Por mais que suas mensagens estivessem diante de mim, eu não conseguia lê-las. Isso me afligia, pois estavam nitidamente envolvidas com as visões do feitiço. Todas elas.

Não havia contado todas a Caspian naquele dia. Eu as deixara na sala de espera de minha mente, aguardando por uma resposta que não vinha. Também não pretendia escondê-las para sempre. Eu só... não entendia. E isso era frustrante demais. O trem estava entre elas. O mesmo do sonho. Eu sabia disso pela sensação de angústia que me despertava, de desespero. Na visão, no entanto, um rugido havia apagado a luz do trem. Aquele lugar em que a estrela aparecia, eu também o vi naquele dia. Não fazia ideia de onde ficava ou porque eu estava nele. Mas era belíssimo, parecia encantado.

Na visão, Aslam aparecia ali naquele lugar e ficava me olhando fixamente por algum tempo, até que olhava para trás, indicando para que eu também o fizesse. Estranhei a seriedade solene em sua expressão e me aproximei, olhando para onde ele olhava. No terreno gramado, haviam cinco lápides. Ainda posso sentir meu coração acelerado como estava naquele dia. Ao me aproximar, vi os nomes de meus irmãos nas três primeiras. Foi o suficiente para desabar. Sequer consegui ver de quem eram as outras duas.

Todas essas lembranças voltavam depois de cada pesadelo. Trabalhar no mapa, rabiscando linha após linha, conseguia capturar minha atenção o suficiente para me dar algumas horas de paz. Em noites nas quais o sono me fugia por um momento, observar o céu e o mar me ajudava a ordenar os pensamentos. Após algum tempo, decidi voltar para a cama e tentar descansar mais uma vez.

No dia seguinte, os ventos permaneciam ausentes e os homens voltaram a remar.

—Vamos ter turnos durante a noite – explicou-me Caspian. – Perderemos muito tempo se ficarmos tantas horas parados. Isso vai exigir mais de todos, mas tenho fé que será por pouco tempo... – ele parou. Seu silêncio me fez olhá-lo. Caspian me observava com as sobrancelhas levemente unidas. – Seus olhos estão cansados.

—Ah, sim, devem estar. Não dormi muito bem nas últimas noites.

—Ainda são os pesadelos?

Assenti duas vezes. Caspian franziu os lábios, em compreensão. Noite, após noite desde que nos casamos, os pesadelos se faziam presentes. Caspian não me deixava saber claramente, mas haviam sinais de que ele estava ciente desde quando eu não dormia bem e, logicamente, temia as causas. Ele se aproximou.

—Quer conversar sobre isso?

—Mais tarde. Temos muito o que fazer.

Ele concordou, e beijou-me demoradamente. Essa carícia tomou para si toda a atenção, acentuando a necessidade de estarmos perto, como um imã, e me fazendo notar as nuances de preocupação. Segurei seu rosto em minhas mãos, sentindo a textura da barba, o toque quente de sua pele. Os beijos de Caspian possuíam uma essência inebriante que me hipnotizava, me seduzia sutil e obviamente, e fazia meu coração saltar. Com um estalo suave, interrompemos o beijo e ele se despediu, seguindo para o convés e, logo então, para o fundo do navio, estava na escala dos remos. Segui logo depois para continuar trabalhando no mapa.

[...]

Alguns dias se passaram. O vento não voltara e, de forma bastante atípica, o aperto em meu peito não cessava mais depois de acordar, fazendo-me companhia por boa parte do dia. Sequer uma brisa soprou contra mim quando atravessei o convés até a cozinha e no caminho de lá até a sala de reuniões.

Remém! Remém!

Os sonhos estavam mais frequentes e sufocantes nas últimas noites. Sentia como se um cerco se fechasse sobre mim e não compreender o que era esse cerco piorava tudo. Meus pedidos silenciosos à Aslam ainda não haviam sido respondidos e, por mais que Caspian sempre deixe bem clara sua preocupação, eu ainda não conseguia contar tudo a ele.

Naquela tarde certamente terminaria a segunda cópia do mapa, então trabalharia na versão original, para ilustrá-la conforme o pedido de Tarvos. “Está precisando de vida!”, dissera ele, rindo, apontando para o papel. Estava concentrada demais para perceber quando tudo ficou em silêncio. Só notei quando um burburinho vindo do lado de fora preencheu o vazio deixado pelo coro de remadores quando eu finalizava o contorno da Ilha do Dragão.

—O que está havendo? - indagou Rince, erguendo-se e indo em direção a porta, ao passo que também me levantei, levando com cuidado o mapa para a outra mesa a fim de secar a tinta.

O som de asas rugiu mais perto junto com a voz de Ripchip. Rince e eu trocamos um olhar confuso e o som de – o que eu posso chegar mais perto de chamar de – um resmungo descontente de dragão me fez olhar para o teto como se pudesse vê-lo voando sobre nossas cabeças. Bastou um segundo para que Rince e eu avançássemos para a porta, mas, de forma súbita, um solavanco do navio nos lançou sem dó par o fundo da sala.

As paredes e o teto giraram quando fui ao chão com um baque surdo. Por sorte consegui proteger a cabeça, mas meu ombro não teve a mesma sorte. Rince foi jogado contra a mesa entre nós, fazendo com que várias coisas caíssem dela, incluindo os tinteiros. O Peregrino inteiro arquejou na quebra abrupta da inércia.

—Está bem, majestade? Acho que batemos em alguma coisa! - Rince se desvencilhou da mesa rapidamente. Coloquei-me de joelhos o mais rápido que pude, aceitando a mão que ele me estendeu.

—Sim, e você?

—Bem.

Na metade da palavra já estávamos a caminho da porta. Ele a abriu rapidamente, revelando o aglomerado de marinheiros no convés, com olhos fixos para a proa, urrando de alegria. Lá, com a cauda enrolada na boca e na cabeça do dragão de madeira, Eustáquio batia as asas ferozmente, fazendo o navio deslizar pela água outra vez.

—Ótima ideia, Eustáquio! - gritaram alguns. Eu só conseguia sorrir diante daquele claro sinal de mudança.

Ripchip bradava palavras de ânimo e pouco a pouco os homens que estavam no convés voltavam às suas funções e os que estava remando puderam descansar. Senti a tinta fria na camisa grudar em meu corpo, então retornei para a cabine a fim de me limpar. O espelho revelou os respingos em meu rosto e a grande mancha de tinta preta na camisa clara. Com a paciência e o orgulho por Eustáquio, fui até o jarro de água em frente ao espelho sem me importar com a dor no ombro e me concentrei na quase impossível missão de limpar toda a tinta sem me borrar ainda mais.

Ao terminar, segui para a sacada nos fundos da cabine a fim de me livrar da água manchada e deixar o pano secando ao sol. A força poderosa de Eustáquio fazia o Peregrino deixar novamente aquele rastro reconfortante de ondulações e espuma no mar. Daquela direção, se aproximou da superfície um núcleo brilhante e logo a sereia emergiu. Seu coração emanava um brilho suave que refletia em toda sua forma transparente, ela ergueu a mão e acenou para mim. Sorri e acenei de volta, mas assim que obteve minha atenção, seus gestos se intensificaram, em alarme.

A altura e a distância tornavam um pouco difícil compreender o que fazia, por isso debrucei-me ainda mais para tentar entendê-la. Uma típica sensação fria escorreu por meu corpo. A sereia estendia a mão em direção ao navio, como se tentasse detê-lo. Em seu rosto, a expressão de agonia não passou despercebida, mas logo ela parou. Com um último olhar em meus olhos, e vendo que não podia fazer mais nada, submergiu outra vez, deixando o silêncio se sobressair.

[...]

Naquele mesmo dia, mais tarde, sobressaltei-me no meio do sono. O mesmo sonho, ainda mais sufocante, mais desesperador. Desta vez, além do trem e das lápides, havia uma moça. Ela surgiu antes do trem, e era linda. Seus cabelos dourados alcançavam sua cintura, o rosto perfeito emanava uma doçura tão pungente quanto o brilho que irradiava dela. Tinha certeza de que nunca a vira, embora tivesse a sensação de que me era familiar.

A angústia causada pelo trem e pelos túmulos subia pelo peito e garganta, sufocando e fazendo-me recorrer à brisa da noite junto à janela. Concentrei minha atenção na respiração, cuja calmaria imposta pressionou ainda mais meu peito espremido. Sem saber o que fazer, senti lágrimas descerem por meu rosto. Cobri a boca com a mão como se pudesse contê-las e busquei o céu estrelado como uma distração.

—Aslam, por favor...

Houve um segundo de silêncio em que consegui respirar profundamente.

—Susana?

O som rouco, porém atento, da voz de Caspian me fez varrer as lágrimas com as pontas dos dedos antes de virar para ele.

—Sim?

—Estava chorando - afirmou, jogando o lençol para o lado e levando os pés ao chão, pronto para levantar, o que fez devagar. Passou as mãos no rosto e cabelos antes de me lançar um olhar significativo. Troquei o peso do corpo, sabendo o que viria a seguir e sentindo a urgência de finalmente falar a respeito, mesmo sem saber exatamente como.

Apesar de termos tão pouco tempo juntos, dividindo nossos dias, já conseguíamos nos compreender em silêncio, por meio de sinais e traços aprendidos há muito tempo, enquanto ainda enfrentávamos os telmarinos. Aquele trejeito que Caspian expressava com as sobrancelhas demonstrava sua preocupação. Seu olhar intenso, sereno e seguro, deixava claro que não haveriam mais desculpas capazes de fazê-lo adiar o assunto. Portanto, aquela conversa seria bem distinta das que costumávamos ter antes de dormir.

—Outro daqueles sonhos – concluiu. Sua voz rouca estava calma e precisa. Em resposta, apenas assenti.

Caspian caminhou em minha direção com a luz da lua iluminando o dorso descoberto. Depois de recostar-se do lado oposto da janela, ainda se passaram mais alguns segundos da análise minuciosa de seu olhar sobre mim. Lambi os lábios antes de começar.

—Depois que lemos o feitiço e vimos todas aquelas coisas dentro do espelho, eu cheguei à areia e encontrei Aslam.

Caspian assentiu, compreendendo. Ele também encontrara Aslam na areia.

—Nós... conversamos por um bom tempo, mas além disso... ele me mostrou mais coisas que, tanto naquele momento como agora, não fazem sentido, mas têm me atormentado todas as noites desde a Ilha do Dragão... desde que nos casamos.

Caspian mantinha os olhos muito atentos, ouvindo minuciosamente.

—Preciso que saiba que nunca quis esconder nada de você, Caspian, eu só não consigo expressar coisas que não entendo.

—Agora você consegue?

—Eu preciso tentar.

Ele assentiu calmamente. Engoli, organizando as palavras.

—Aslam disse que haviam mais de uma razão para que eu estivesse aqui e você era uma delas. Eu também, no fim das contas. Como... Como uma resposta para o tempo juntos que tanto desejávamos ter tido. Mas, ainda assim, há algo maior do que nós, algo que eu desconheço... Algo que eu temo também ser o motivo de eu ir embora.

A inquietação que atravessou o rosto de Caspian apertou-me o peito.

—Su, por favor...

—Escute – dei o passo que faltava para alcançá-lo e segurei seu rosto entre minhas mãos. - Nem por um momento duvide do quanto eu lutaria para ficar ao seu lado e passar toda a minha vida com você. Eu o amo, Caspian.

—Mas? - uma nuance de mágoa.

—Não há um “mas”, nunca haverá. Não da minha parte.

Pisquei, sentindo a ardência de lágrimas inconvenientes. Então continuei:

—Aslam disse que existem coisas que fogem ao nosso controle. Depois de todos esses sonhos, acho que tem a ver comigo e com minha família.

Suas sobrancelhas se uniram.

—Por que acha isso?

—Em meus sonhos, eu revejo tudo o que vimos e o que Aslam me mostrou... Vejo túmulos - minha voz baixou involuntariamente. Era difícil dizer em voz alta. - Túmulos deles.

Aos poucos, contei a Caspian tudo o que me foi revelado e sonhado, todas as minhas suspeitas, tudo o que me afligia. Desde as visões no espelho, a conversa com Aslam, os pesadelos e todos os detalhes que me davam. O trem, as luzes, a moça. Tudo. Ao mesmo tempo que meus ombros se aliviavam, meu peito se apertava vendo os milhares de sentimentos que perpassavam os olhos de Caspian. Quando terminei, com o rosto molhado de lágrimas, ele me puxou para seus braços. Aconcheguei meu rosto contra seu peito quente, apertando os olhos com força, desejando, bradando dentro de mim por algo que a razão tinha certeza de que estava traçado entre e diante de nós. Se é que isso faz sentido.

Caspian me abraçou forte, apoiando o queixo sobre minha cabeça e, por longos minutos, amparando todo meu ser. Reconheci, finalmente, o medo que havia em mim. Medo das consequências de revelar o que pensava saber, medo de que se realizassem e jogassem para longe todas as esperanças que restavam. Pela primeira vez tinha medo de estar certa.

—Não devia ter carregado esse fardo sozinha por todo esse tempo – sua mão deslizou por meus cabelos. - Tenho certeza de que Aslam cuida de seus irmãos.

Apertei os olhos, assentindo e enfiando o rosto contra seu peito outra vez, fechando meus braços ainda mais em volta dele. Concordava com ele, Aslam não havia nos deixado, nunca. Ouvi Caspian suspirar antes de romper o silêncio novamente.

—Na Ilha do Dragão, quando eu pedi sua mão, eu escolhi usar nosso tempo aqui da forma que queria ter feito há três anos, não importa por quanto tempo. Mas independente de qualquer coisa, escolhi lutar pela vida que eu quero. Por que sempre temos escolha.

—Quando aceitei seu pedido, eu optei pela mesma escolha que você, Caspian. Não voltaria atrás nem se minha vida dependesse disso. - ergui meu rosto para olhá-lo. - Mas temos que considerar o que foge ao nosso controle e nos preparar para o que quer que seja isso.

Uma apreensão profunda passou pelos olhos de Caspian.

—É isso que pode mandá-la de volta, não é?

—Pode ser, pode não ser. É tudo muito confuso ainda.

Seus olhos percorreram a cabine em volta, mas sua atenção estava em seus pensamentos. Caspian entrelaçou seus dedos aos meus, mantendo-me perto de si.

—Seja o que for – sussurrou – enfrentaremos como cada batalha até aqui. Eu estava no escuro, mas o que você contou me deu ainda mais certeza do caminho que devemos seguir. - beijou os nós de meus dedos. - Não importa por quanto tempo, jamais recuarei.

Um sorriso simples surgiu em meu rosto.

—Sei que não.

Caspian tocou meu rosto antes de se inclinar um pouco mais e dar início a um beijo tão terno, tão caloroso, que varreu para longe a aflição que me acometia segundos antes. Completou aquele alívio tão bem-vindo. Suas mãos repousaram em minhas costas quando voltou a falar.

—Mais uma coisa – aguardei que continuasse – acredite em mim, não faço ideia de quem é essa moça que você viu.

Deixei um riso suave escapar.

—Tenho certeza de que não é nada importante.

O olhar de Caspian ficou um tom mais leve ao me ver sorrir e jamais poderei explicar a sensação cálida que cresceu em meu peito. Desta vez, eu o beijei. Seu toque em minhas costas lançou arrepios por minha pele. Lacei seu pescoço com meus braços e não nos afastamos pelo resto da noite. Mesmo depois de voltarmos para a cama.

[...]

Eustáquio foi incansável.

Um brado de comemoração inundou o navio quando avistamos a silhueta da ilha, nas primeiras horas do dia.

O dorso da ilha repousava sobre o mar com grandes precipícios despontando em vários locais da costa. Algumas gaivotas eram vistas voando sobre as partes mais altas e fios em forma de cachoeiras despencavam do alto do precipício, lançando-se ao mar. Por trás de nós, o sol estava se pondo em tons de laranja e roxo e o som ofegante de Eustáquio era o único ruído que se sobrepunha até mesmo ao mar. O silêncio ali nos recebeu bem diferente do da Ilha do Dragão, trazia a mensagem de paz, descanso e tranquilidade. No litoral, a areia da praia estreita era lisa, não revelando qualquer indício de moradores.

Desembarcamos sem alarmes, ao som de poucas gaivotas. Eustáquio repousou na praia com extremo alívio, desabando ali mesmo. A primeira missão foi encontrar água para ele. Em um trabalho conjunto, todos se revezaram e ajudaram meu primo a saciar a sede, com muita gratidão. Ele já não era mais o garoto que todos evitavam ou sobre quem reclamavam. Aquele Eustáquio que chegou jamais teria feito o que o Eustáquio dragão fizera e eu sentia um orgulho imenso, além do desejo de que meus irmãos e tios pudessem vê-lo assim também.

Ficou decidido que ele permaneceria na praia para descansar e, deixando o Peregrino para trás, nos esgueiramos ilha a dentro. A noite caiu logo, acentuando a aura azulada que dominava o bosque. Nuvens esparsas de vagalumes pairavam ao redor e o céu estrelado parecia ainda mais incrível ali. Estruturas de pedra em ruínas despontaram esparsas em meio ao bosque. Pareciam ser muito antigas e eu não conseguia imaginar o que as havia destruído, além da ação maçante do tempo.

Conforme adentrávamos mais o bosque, as ruínas se tornavam mais presentes, como se marcassem um caminho. Barulhos esparsos e rápidos eram ouvidos aqui e ali, provavelmente oriundos de pequenos animais que sequer podíamos ver. O luar azulado zunia, como aquela vibração sensível de magia, porém mais suave e sutil, facilmente despercebida. Um conjunto incrivelmente familiar. Não demorou para os pedaços desconexos de pedra começarem a tomar formas mais coerentes.

Com a luminosidade da noite, pudemos perceber que estávamos no que já foi uma construção suntuosa. Mais exatamente sob o arco que dava para um salão rodeado de árvores densas e cheias de raízes aparentes. No centro, uma longa mesa se estendia até perder-se nas raízes altas e cipós. A vibração sutil causou um leve zunido em meu ouvido, mas nem de longe era a coisa mais estranha. Sobre a mesa haviam diversos pratos e travessas cheias de comida apetitosa, acompanhados de todo aparato de jantar, incluindo castiçais apagados. O cheiro delicioso de comida nos atingiu como um golpe, arrancado suspiros, gemidos e roncos.

Quando olhei em volta, notei na expressão de cada um a ânsia por aquela comida. Caspian até lambeu os lábios discretamente ao meu lado. Nos aproximamos devagar e a visão daquelas delícias, depois de vários dias de comida racionada, fez vários estômagos roncarem, incluindo o meu. A mesa comprida se perdia em meio a um amontoado de raízes e árvores imensas. Caspian, que levava uma tocha, foi adiante se aproximando daquela extremidade. Drinian e eu o seguimos de perto.

A luz das chamas revelou os três indivíduos sentados ali, causando um susto. Eles pareciam bem idosos, ou bem antigos. Estavam estáticos, sentados à cabeceira. As mãos repousavam sobre a mesa em direção ao serviço de jantar intocado e empoeirado. Longas barbas e cabelos brancos emolduravam rostos de olhos vítreos inexpressivos.

—Sentaram-se à mesa – sussurrei.

—Não toquem em nada! – reforçou Drinian.

Minha atenção, porém, estava presa naqueles homens. Pareciam congelados, mas não como as vítimas da Feiticeira Branca ficavam antigamente. Eram claramente de carne e osso, porém estáticos como cera, com brilho nos olhos. As raízes e cipós os mantinham quase ocultos da paisagem, presos à mesa. Ao baixar os olhos, percebi quão perto havia me aproximando deles e pude notar o anel na mão direita.

Caspian me observava, por isso notou meu olhar instantaneamente. Aproximou-se com a tocha.

—Olhe.

—Lorde Revellian – comentou, partindo logo a procura do outro anel. Sua voz preencheu todo o silêncio com certa solenidade – Lorde Mavramorn. Lorde Argos.

Um silêncio pesaroso pousou nos marinheiros. Porém para quem olhava mais de perto, como nós, embora estivessem estáticos, não pareciam mortos. Com cautela, afastei os cabelos longos e cinzentos do rosto de Lorde Argos. Ele inspirou suavemente, sobressaltando-me.

—Está respirando!

Caspian tornou-se imediatamente para os outros:

—É a comida!

Quando me movi, as raízes arrastaram algo de metal sobre a superfície de madeira. Afastei com as mãos para ver o que era.

—Espera! – exclamei no choque do reconhecimento, indicando o objeto escondido nas raízes, sobre a mesa. – É a Faca de Pedra. Esta é a Mesa de Aslam!

Pude ver a luz da compreensão perpassando seu olhar.

—As espadas deles!

O pensamento seguinte foi automático: Caspian desembainhou a espada que trazia e a colocou sobre a mesa, não muito longe dos lordes. Logo entregou a tocha para Drinian e se aproximou de Lorde Mavramorn. Recuei um passo, encarando o emaranhado de raízes na altura de minhas pernas. Afastei-as com as mãos até conseguir puxar a espada de Lorde Argos. O incômodo dos pequenos arranhões nos dedos foi completamente ignorado.

As outras espadas foram passadas para nós e o tilintar do metal foi o principal ruído ouvido naqueles segundos em que as lâminas eram organizadas sobre a mesa, numa ampla forma de estrela.

—Agora temos seis.

Por um momento, nada aconteceu. Até que a noite pareceu ficar mais azulada. Aquele brilho, porém, logo mostrou origem nas espadas e intensificou-se gradualmente. A luz azul emanava da mesa para o céu, levando-nos a erguer os olhos. As estrelas foram ofuscadas por aquele brilho incandescente. Lentamente, Caspian puxou a espada, deixando-a a postos e fiz o mesmo com o arco. Ninguém parecia respirar, a magia girava a nossa volta, não mais como vibração, mas como uma onda.

O reconhecimento adormeceu meu corpo, e não havia mais força para puxar a corda. A cena que se repetia diante de meus olhos eu já havia vivido. A mesma que via desde a Ilha do Dragão. Tudo ficou em silêncio a minha volta. A esfera de luz azul descia lentamente ao solo.

A aura azul que emanava da luz que se aproximava de nós tornou-se branca e fria. Ao mesmo tempo, uma sirene ensurdecedora berrou preenchendo todo o ar a nossa volta, parecia o grito de um trem.

Com aflição, esperei que em algum momento se transformasse no farol de um trem, quase podia ouvi-lo. Porém, isso não aconteceu. A esfera se expandiu, intensificando sua luz que, quando alcançou o pico, regrediu, revelando a forma humana. A moça de feição gentil ergueu o olhar para nós. Com o movimento, agitou levemente os longos cabelos loiros.

Meu coração disparou quando uma criança chegou até ele, segurando sua mão. Não era possível ver seu rosto. O reflexo de Caspian ajoelhou-se sorrindo e carinhosamente colocou sua coroa na cabeça do pequeno, apesar de ser bem maior.

Loiros como os de um garotinho que não era meu.

A magia vibrou no ar. Meu coração parou.

—Viajantes de Nárnia, bem vindos!

O ar fugiu de meu corpo, como se eu estivesse me afogando. O trem não apareceu, sequer ouvi seu som, mas o impacto contra meu peito trouxe a mesma sensação.

Todos fizeram uma reverência diante da figura de gentileza imponente. Não consegui me mover. Ela pareceu não notar.

—Levantem-se. Não estão com fome?

—Quem é você? - perguntou Caspian, avançando alguns passos em direção a ela. Um rápido vislumbre foi suficiente para ver a luz azul refletida em seus olhos, não como um transe, mas era evidente que todos estavam encantados pela estrela, a magia era pungente. Ela o olhou.

—Eu sou Lilliandil, filha de Ramandú. Sou a guia de vocês.

Os homens sorriram, alguns mais abobalhados do que outros. Só então se aproximaram mais, devagar. Permaneci estática, ainda segurando o arco sem sequer senti-lo.

—Você é uma estrela... é... é... - Caspian deu mais passos do que o necessário, não encontrando palavras para descrever o deslumbre. Mais uma onda de dor bateu contra minha frágil barreira erguida contra a tempestade que me afogaria e esmagaria brutalmente assim que os muros caíssem, em um mar de verdades claras.

“Se você veio a este mundo outra vez foi porque você precisava, assim como Caspian.”

Algo sutil, escondido em algum lugar que não me dei o trabalho de localizar, fez Lilliandil hesitar. Ela se virou para mim e disse, apreensiva:

—Se for um problema pra você, posso mudar de forma.

Vi Caspian trocar o peso do corpo, movendo a cabeça levemente, como se quisesse clarear a visão. Da mesma forma que notei os olhares levemente desconfortáveis a minha volta. Estavam alheios demais para notar qualquer coisa mais profunda. Ainda assim, não neguei a gentileza dela.

—Fique da forma que lhe for mais confortável.

Para meu orgulho, nada foi expresso em minha voz além da calma e da diplomacia. Lilliandil sorriu suavemente, grata, e logo continuou:

—Por favor – dirigiu-se a todos – a comida é para vocês! - com um gesto de mãos, os candelabros se acenderam. - Tem bastante a todos que são bem vindos à mesa de Aslam. Sempre. Sirvam-se.

—Espere – Ripchip saltou – O que houve com eles?

—Esses pobres homens estavam quase loucos quando chegaram ao litoral. - explicou com pesar. - Estavam ameaçando serem violentos entre si. Violência é proibida na Mesa de Aslam.

—Ainda vão acordar?

—Quando tudo se acertar. - garantiu. - Rápido, o tempo é curto!

Então ela se afastou. Todos, famintos, cercaram a mesa.

Vi Caspian piscar algumas vezes e balançar a cabeça, como vários outros marinheiros. Seus olhos percorreram o local, buscando, com um brilho de urgência. Aproveitando os últimos momentos daquela barreira em pé, recolhi o embrulho no estômago e desapareci pelo bosque, sem que ninguém percebesse, sem conseguir respirar. Antes que ele notasse.

As árvores e as ruínas passavam por mim como um borrão. O primeiro soluço que escapou ecoou alto pelo bosque. Cobri a boca com a mão, como se pudesse conter a onda que me implodiria. Apertei o passo, tropeçando, mas seguindo, sem parar, sequer ouvindo ruídos a minha volta, somente o pulsar em meus ouvidos. Como as cortinas que se abrem para a luz do sol entrar, assim tudo clareou diante de meus olhos. Em vez do sol, no entanto, foi pela luz de uma estrela.

“Quando eu fui a Nárnia retornei com o fruto que curou minha mãe, desse fruto veio a árvore que forneceu madeira para o guarda-roupa que levou você e seus irmãos a Nárnia. Sempre sonhei em retornar, mas depois de tanto tempo, comecei a pensar que ele não me permitiu para que eu pudesse guardar a passagem para vocês. Guardar o meio que levaria salvação para Nárnia. – Pedro olhou-o e ele retribuiu. – Aslam é sábio e justo. Sempre há uma razão para ir, e também para voltar.”

Como eu podia ter sido tão cega?

Desde o dia que resolvemos usar aquele feitiço a verdade vinha sendo mostrada e todos os sinais, ignorados. Solucei com raiva. Cega. Cega e estúpida!

Minha intuição havia soado o alarme o tempo todo e eu escolhi não acreditar, pela primeira vez na vida, pois pela primeira vez havia algo melhor do que a razão. Algo melhor do que estar certa. Deixar meu mundo, minha família, para viver aqui depois de ter esse desejo negado mais vezes do que podia suportar. Como poderia ser possível?

“Pedro não teria como saber que vim para Nárnia sem que eu tenha voltado para a Inglaterra.”

“O destino que os primeiros reis tiveram não é o nosso.”

Aslam havia mostrado, me dito tudo aquilo que eu não queria entender. O garoto no espelho, que não era meu. Pedro lendo minha carta, a casa em meu mundo, a aliança, os túmulos, tudo apontando para depois. Depois do Peregrino. Se havia um depois , era porque não havia um futuro aqui.

“Se quiser, posso ensinar o que aprendi com as estrelas – sussurrou – quando estivermos em casa.”

Minhas mãos tremiam, meu peito ardia.

Porque? Por que me trazer para Nárnia apenas para voltar sozinha? Porque me deixar acreditar que havia uma vida ao lado de Caspian quando não haveria? Não fazia sentido!

“Algo muito grave deve ter acontecido para que ele mudasse de ideia.”

“Talvez não seja para entender agora. – ponderou o Professor, após um breve silêncio. – Talvez Caspian e Nárnia precisassem dela de uma forma que você, Lúcia e Edmundo não poderiam ajudar.

Senti o grito se formar no fundo da garganta. Todos aqueles meses colidindo e apagando o sonho que não haveria. O desespero, a dor, a derrota e a angústia encaminhavam a súplica para fora até o ponto em que foi impossível contê-la,

—ASLAM! - bradei, soluçando, meu rosto quente pelas lágrimas me fazia febril.

“Eu estou sempre com vocês, Susana. Conheço seus anseios e suas aflições. Sei também o quanto pode ser doloroso quando as questões inacabadas incomodam os corações. Algumas delas precisam ser saciadas.”

Precisava me livrar daquela angústia, precisava respirar. Precisava parar de pensar. Precisava de um escape, um socorro, qualquer coisa que me levasse para longe daquela dor.

Então, diferente de nós dois, o Caspian e a Susana no espelho soltaram as mãos.

O bosque terminou e o chão se abriu a minha frente em um precipício engolido pela noite.

Não consegui parar a tempo.