Mar de Lírios

Eu Vejo Sua Tormenta


“I don’t care

go on and tear me apart

I don’t care if you do

Cause in a sky, cause in a sky full of stars

I think I saw you”

—A Sky Full of Stars, Coldplay

Então, diferente de nós dois, o Caspian e a Susana no espelho soltaram as mãos.

O bosque terminou e o chão se abriu a minha frente em um precipício engolido pela noite.

Não consegui parar a tempo.

Um abismo se abriu em meu interior. Tão grande quanto o em que eu mergulhei. Cortei o ar pelo que pareceu um segundo eterno, porém que não passou disso: um segundo. Bati contra algo rígido e rolei sem controle, sentindo da textura da terra à superfície escamosa sob a palma da mão. Só parei quando me choquei contra algo vertical. Arquejei, arfando, gemendo de dor. Pouco a pouco fui sentindo com mais clareza a camada de escamas fortes. Abrindo os olhos, pude notar que eram avermelhadas mesmo no escuro da noite e que se moviam cadenciadamente como um organismo só.

O som das asas batendo chegou ao mesmo tempo que ergui o rosto. Contra o céu infinitamente estrelado estava o rosto de Eustáquio, olhando-me assustado. Como que para me responder, ele olhou para baixo. Contive o tremor em meu corpo e o forcei a se mover, apoiando-me em seu peito e nas patas que me amparavam. Ele pareceu apertar mais o laço de seus dedos e garras ao meu redor com firme delicadeza, como se temesse que eu escorregasse por entre seus dedos. De todo modo, permitiu que eu olhasse.

O mar batia tranquilo contra o penhasco lá embaixo. Muito lá embaixo. Olhei para Eustáquio sentindo-me mais desolada do que nunca e os arranhões no rosto arderam quando foram lavados com as lágrimas. Eustáquio me olhou aflito e só consegui apoiar a testa contra seu peito e fechar os olhos com força. Quando as asas bateram mais forte nos lançando para cima, o som saiu de mim como um gemido inteligível e logo se perdeu no vazio do céu a nossa volta. Eustáquio envolveu-me mais em seu abraço e apenas continuou voando até que eu parei de soluçar e o choro silenciou deixando apenas o rastro quente em meu rosto. Ainda assim, ele ainda continuou voando por mais um tempo.

Em algum momento, com um movimento gentil, ele me colocou em suas costas e voou de volta para a ilha lá embaixo. Eustáquio pousou na praia e me colocou no chão com cuidado. Abaixou a cabeça até minha altura e acariciei seu focinho.

—Obrigada – sussurrei, não ignorando o questionamento silencioso em seus olhos. - Não foi de propósito, eu não vi para onde estava indo.

Um gemido de alívio soou de sua garganta, seguido de outro ainda curioso.

—Nem sempre eu gosto de ser tão racional como todos dizem. – contei – Eu queria ser como Lúcia e ver esperança no mais medonho sofrimento. Ou acreditar que há um motivo que justifique o não mais doloroso que já recebi.

Fechei os olhos para aliviar a ardência. Eustáquio ouviu em silêncio e algo em seu olhar mostrava que ele não sabia o que acontecera, mas entendia. Naquele momento, sua forma de dragão se tornou óbvia demais para mim. Sorri de lado, fracamente. – Parece que Aslam tem planos para nós que ainda não quer nos contar.

O som distante de risadas chegou até nós trazido pelo vento. Podia ser incoerente, mas lá era o último lugar em que eu gostaria de estar. Eustáquio se aconchegou na areia e tomei a liberdade de acompanhá-lo, apoiando-me contra ele. Apenas ficamos quietos observando o mar e o céu, e por um momento de silêncio triste, minha mente se cansou do desespero. Meu primo logo começou a ressonar e desejei que sua tranquilidade me alcançasse, em vão.

Uma eternidade havia se passado desde que eu me afastara dos outros, tinha certeza, mas ainda nenhum sinal do amanhecer era notável. Só queria ir embora dali e deixar aquela ilha e as estrelas para trás. Chegou o momento em que ficar deitada com a mente correndo em volta se tornara insuportável, porém eu sequer tinha forças para me levantar. O silêncio imperava absoluto. Contei até três e pus-me de pé. Deixei Eustáquio dormindo e retomei minha caminhada pela ilha, sem a força que me repelia para longe mais cedo. Ainda assim, não queria ir para junto dos outros.

Avistei um vulto pequeno correndo em minha direção e parei, reconhecendo a pena vermelha na luz da noite.

—Ah! Encontrei-lhe, Alteza! Já estava ficando preocupado. – ele parou próximo a mim. Quando pôde me ver com atenção, recuou um passo discreto. – O que houve, minha senhora? Está machucada?

Toquei os arranhões adormecidos no rosto automaticamente, sentindo o ardor me lembrar a existência deles.

—Não foi nada. – tranquilizei – Eu estava com Eustáquio.

Rip apenas assentiu, pensativo, e seu silencio despertou um alarme em minha mente. Ele se perdeu no próprio pensamento e raras vezes o vi assim.

—Está tudo bem? – foi minha vez de perguntar.

—Oh, eu? Sim, estou, mas não sei se vossa Alteza... bem... – pigarreou – O senhor Ramandú veio nos recepcionar, achei que deveria avisá-la.

-Ramandú?

—Sim, a estrela senhor desta ilha e pai da senhorita Lilliandil.

—Ah - ergui as sobrancelhas – Obrigada por me avisar, Rip. Vamos até lá.

Covarde. Esse era um adjetivo que facilmente se aplicaria a mim. Se é que se agarrar àquele modo diplomático de regente e usá-lo como armadura pudesse ser tomado por covardia. Para mim, naquele momento de inconformismo, raiva interna e falta de esperança, não o era. Outra parte, presa lá no fundo e que deseja resolver as coisas de uma vez por todas, entendia que sim. Não importava. Enquanto caminhava com Rip até onde os outros estavam, enviei todos os sentimentos contritos para aquele sótão no fundo do meu ser, violentamente. Depreendi tanta concentração para executar esta tarefa que não estranhei o silêncio contínuo de Ripchip.

—Majestade?

Girei a cabeça de imediato em direção ao som, o cabelo solto sendo lançado por sobre o ombro.

—Desculpe, não quis assustá-la. – os olhos de Rip pareciam ainda mais brilhantes a noite e diferente de todos os outros, não estava um pouco nublado como os dos outros.

—Está tudo bem, Rip. Só estava com o pensamento longe.

—Oh, todos certamente estão – disse ele, em tom mais descontraído – Parece até que estão enfeitiçados.

Deixei um riso sentido escapar com a respiração.

—Eu diria encantados, mas tudo nesta ilha parece estar, não é mesmo?

Ele hesitou um pouco com o comentário.

—Posso lhe fazer companhia se quiser.

—Rip, eu adoraria.

A pena vermelha tremeluziu quando ele sorriu satisfeito.

—Estive na praia mais cedo – contou, saltando sobre uma raiz – levei um pouco de comida para Eustáquio.

—Por Aslam, Rip! Muito obrigada! Esqueci completamente. Coitado, devia estar morrendo de fome.

—Ainda deve estar – interveio – Ele gastou muita energia nos trazendo até aqui e, bem, não consigo carregar comida suficiente para um dragão, veja bem.

Ri de leve.

—É verdade. Se ele estivesse acordado, poderíamos levar mais comida.

—Oh, lhe asseguro que ele tanto precisa descansar quanto precisa de comida. Vamos deixá-lo dormir um pouco.

Assenti concordando e um silêncio se instalou enquanto nossos olhares foram atraídos pelo caminho. Uma brisa escapou por entre as árvores suavemente, acariciando algumas folhas e arbustos o que fez uma onda de vagalumes se agitarem e marcarem presença por todo o caminho, pairando no azul da noite à nossa volta.

—Majestade, porventura já viu a terra que desponta no horizonte?

—Há outra ilha mais adiante?

—Sim, em direção a leste. É possível vê-la de alguns pontos desta aqui. – seu tom de voz era tranquilo, porém sério. – Já vi muitas coisas terríveis em minha vida, mas aquela ilha, de longe, é a segunda pior.

—Qual seria a primeira? – olhei-o curiosa.

—Certamente os telmarinos antes do rei Caspian.

—Ah, sim! Sou obrigada a concordar.

—A senhora precisa ver, alteza! – afirmou, agora com seu tão característico tom de heroica animação. – Nárnia está sendo restaurada ao seu esplendor de outrora! Será maravilhoso quando voltarmos...!

Quando seus olhos pararam em mim, soube que havia falhado na tentativa de ocultar qualquer reação causada pelo aperto no peito. Lentamente a expressão de Rip se tornou preocupada e apreensiva, estampando uma dúvida que ele não conseguia expressar. Rip voltou alguns passos até onde eu havia parado. Cinco vagalumes pairavam em volta dele.

—Ir para casa com vocês é o que eu mais quero – a voz embargada me irritou e com um gesto firme limpei a lágrima teimosa que escapou.

—Majestade, mas... o que está dizendo?

—Será como das outras vezes, Rip – respondi calmamente. – Não fui trazida para ficar. Tudo o que houve aqui hoje me mostrou isso.

—Se me permite, alteza – ele modificou a postura, colocando-se solene. – Deve ter percebido quanta magia há neste lugar. Tudo parece agir para enfeitiçar os homens que chegam ao litoral. O que houve mais cedo, estou certo de que...

—Eu sei, Rip – interrompi com um sussurro – Eu sei. No entanto, o que aconteceu hoje apenas me deu mais certeza do que estou lhe dizendo.

—Mas por que...?

—Também gostaria de saber. Se Lúcia estivesse aqui, acredito que diria que Aslam nos dirá no momento certo.

Seus olhos piscaram e ele empertigou-se com gentileza.

—Enfrentamos grandes perigos nesta jornada – ponderou ele – certamente amanhã enfrentaremos o maior de todos até agora. A senhora foi trazida sempre que Nárnia passa por alguma dificuldade. Talvez essa seja a razão.

—Acho que não. Lúcia e Edmundo não estavam proibidos de voltar, Pedro e eu sim, no entanto...

—Alteza, permite que lhe faça uma pergunta... pessoal?

Assenti para ele e Rip hesitou por alguns segundos, segurando as próprias mãos.

—Eu lhe disse uma vez que o Rei Caspian mudou após a sua partida e que, quando a senhora se juntou a nós, todos pudemos ver o quanto fez bem a ele. Posso lhe assegurar, com a minha palavra, que nunca vi tanta beleza em um par quanto vejo em seus olhos, em seus rostos, quando estão juntos. – ele pausou, dando um pigarro. – A senhora não estaria, porventura, deixando que o efeito da magia desta ilha afete seu julgamento?

Demorei a responder, ouvindo suas palavras outra vez em minha mente. Ele continuou:

—Todos fomos expostos a ela embora nossas reações possam ser diferentes, porque, bem... – olhou o próprio corpo e indicou a mim numa explicação nítida: não éramos homens.

Queria dizer-lhe que, embora tenha me machucado, não era essa magia que me doía mais e quis guardar isso para mim. Minhas forças, no entanto, se esvaíram, e não consegui conter qualquer coisa.

Parei e me ajoelhei para conseguir olhá-lo de perto, diretamente nos olhos brilhantes.

—Talvez você tenha razão. Eu não duvido do que diz.

—Todavia...

—Rip, se... Se, por qualquer razão, eu não conseguir acompanhá-los de volta para casa, posso contar com você para apoiar Caspian?

O bravo Ripchip recuou diante do pedido. Seus olhos se agitaram e suas mãos gesticularam ainda mais.

—O que está tentando me dizer, Majestade?

—Se isso acontecer, você saberá que a magia desta ilha não influenciou meu julgamento. Nós dois saberemos. Preciso saber que Caspian continuará cercado de apoio caso eu não esteja mais aqui.

—O que está tentando me dizer, Majestade?

Balancei a cabeça, pondo-me de pé.

—Esqueça, Rip. Minha pergunta foi tola. Você jamais nos desamparou. Além disso, não posso lhe explicar algo que Aslam ainda não o fez.

Comecei a andar o suficiente para limpar a lágrima que parecia estar tatuada em meu rosto. A sensação azeda de ter me mantido presa ao meu próprio desespero se espalhou por meu corpo e segui ainda assim. Rip não precisava deste tormento agora. Ele não insistiu e me acompanhou em silêncio pelo resto do caminho.

A estrela não estava a vista quando retornamos até a mesa, à noite, no entanto, permanecia azul. Todos pareciam felizes e alimentados, esperançosos eu diria. Vê-los assim era muito bom. Os três dorminhocos permaneciam como estavam e, como se fosse intencional – ou automático -, o olhar de Caspian recaiu sobre mim assim que entrei em seu campo de visão. Ele se levantou imediatamente vindo até mim. Rip pediu licença para tentar reclamar para si qualquer framboesa que tivesse sobrado.

Havia em sua expressão algo que misturava preocupação, constrangimento e uma dose de culpa. Quando parou a minha frente ainda demorei alguns segundos aflitos para falar.

—Fiquei preocupado quando não a encontrei.

—Estava com Eustáquio - respondi com um leve maneio de ombro.

Seu olhar atento disparou o alarme. Caspian tocou meu queixo com delicadeza.

—O que houve?

—Eu caí - não era mentira, mas também não precisava de detalhes. Caspian me olhou desconfiado.

—Você não jantou, deve estar com fome.

—Estou bem – essa sim era uma mentira. Caspian não estava convencido, porém olhou para baixo sem questionar.

—Esse lugar tem uma magia diferente. É confusa, ainda não sei se isso é bom.

—Lilliandil disse que violência não é permitida aqui. Creio que se referia a qualquer tipo.

—Su – falou mais baixo, seu olhar estava contrito, algo o incomodava – Fale comigo. Mais cedo, sei que...

Uma luz prateada inundou o lugar ao mesmo tempo que a azul, e uma voz cheia de vitalidade e envelhecida pela sabedoria foi ouvida por todos ali. A magia vibrou à nossa volta.

—Viajantes de Nárnia! Como é bom vê-los!

Os marinheiros se levantaram. Uma figura alta, esbelta e de aparência tão antiga e etérea quanto o céu da madrugada nos olhava com um sorriso gentil. Seus cabelos e barba branquíssimos chegavam até seus pés descalços. Dele irradiava uma luz suave e pura, prateada. Ele lançou um breve olhar em direção a mesa.

—Fico feliz que estejam satisfeitos.

Os homens se curvaram em agradecimento. Ele então passou seus olhos sobre nós e caminhou em nossa direção acompanhado pela Estrela Azul.

Assenti para ela uma vez que seu olhar estava concentrado em mim. Eles nos deram as costas e começaram a caminhar conosco em seu encalço. Com um breve olhar de Caspian, Rip e Drinian nos acompanharam. Lilliandil seguiu na dianteira pelo bosque em meio as ruínas, sua imagem oscilava sempre que virava em uma curva ou ultrapassava uma raiz exposta, com a cauda do vestido deixando um rastro de luz e uma fina poeira prateada. Até que, dentre o bosque e ruínas indistintas, surgiu uma sacada de pedra bem à beira de um precipício. As raízes cresciam por cima da pedra, mas não nos impediam de perceber o quanto aquele lugar deveria ter sido deslumbrante outrora.

Ramandú desacelerou um pouco, deixando Caspian passar e estendendo a mão para me ajudar a subir dois degraus desnecessários. Agradeci sua gentileza sem deixar de notar que, de fato, não havia necessidade. Fiquei afastada da beirada onde Lilliandil estava, seu pai se aproximou dela e olhou com lamento para o mar adiante.

No horizonte, o mar se estendia calmo e arroxeado, quase dominante não fosse uma massa escura, indistinta e amedrontadora envolta em névoa.

—O mago Coriakin lhes falou da Ilha Negra.

—Falou – respondeu Caspian, se aproximando da beirada. Rip saltou sobre o parapeito, observando. Mantive-me onde estava, longe da beira.

—Em breve o mau será irreversível.

—Coriankin disse que para quebrar o feitiço devemos pousar as sete espadas na Mesa de Aslam. - completou Caspian.

—Ele disse a verdade – respondeu Ramandú.

—Nós só achamos seis. Sabe onde a sétima está? – perguntei.

—Lá dentro – ele apontou a ilha sombria adiante.

—Vão precisar de muita coragem! – acrescentou Lilliandil.

—Porém – contrapôs Ramandú – Coragem não será suficiente se confiarem apenas em suas espadas. Se assim o fizerem, devo alertá-los de que falharão.

—O que quer dizer, senhor? – perguntou Caspian.

—Para derrotar o nevoeiro, devem reunir as sete espadas. No entanto, para despertar os que dormem, vocês terão que navegar até o fim do mundo e regressar para esta ilha, deixando um de vocês para trás. Aquele que ficar, jamais poderá retornar.

No silêncio, o mar rugiu contra as pedras lá embaixo.

Caspian trocou um olhar comigo, e depois olhou para a ilha no horizonte.

—Não existe outro jeito? – perguntou Drinian.

—Infelizmente não. Este é o sacrifício exigido. – respondeu Lillianidil.

—Algumas regras existem há muito, muito tempo, desde antes de eu ser uma estrela. Mas não devemos perder mais tempo. O sol vai nascer em algumas horas, devem decidir se estão dispostos a continuar e nada melhor que um bom descanso antes.

Ripchip se empertigou, porém Ramandú não lhe deu tempo, erguendo a mão.

—A propósito, devo lembrá-los de que não há desonra em escolher o contrário.

Ripchip fez uma careta.

—Agradeço sua bondade, senhor – disse Caspian – todavia, posso garantir que nenhum de nós se sentiria honrado ao voltar em segurança para casa deixando tantos outros para trás. Esta é uma missão na qual não podemos falhar.

—Não há o que discutir! – concordou Rip, animado - Libertar a todos é o coração da nossa jornada!

—Também penso o mesmo, Rip – concordei. Drinian assentiu. Lilliandil sorriu e sua expressão transpareceu bondade e gratidão ao olhar para todos nós. Ramandú pareceu bastante satisfeito com a resposta.

—Pois muito bem! Vamos o sol está para nascer!

Ramandú começou a caminhar de volta para o salão da Mesa, porém estacou ao passar por mim.

—Minha querida – ele se aproximou – Está machucada.

Seu olhar em nenhum momento desviou de meus olhos para o ferimento em meu rosto. Foi a forma como falou que deixou claro que não se referia às feridas aparentes. Aquela súbita empatia pareceu desnudar toda minha falsa armadura e me incomodou.

—Se quiser – continuou ele – pode partilhar o sono daqueles à mesa até que tudo passe.

—Agradeço sua oferta, mas prefiro seguir adiante.

Ramandú sorriu de leve e pegou minha mão direita, erguendo-a até poder beijar o dorso. Dirigiu-me ainda outro olhar gentil e enigmático, como se soubesse mais do que falava. Então seguiu chamando a todos novamente.

—Não vamos mais perder tempo! – dizia – Precisam de repouso e são bem-vindos à minha casa!

A estrela tomou o caminho de volta até a mesa do banquete. Lá, como uma boa anfitriã, Lilliandil providenciou cobertores e travesseiros para todos. Andava de um lado a outro até que todos estivessem acomodados e confortáveis. Aquela expressão gentil e o olhar bondoso jamais deixavam seu rosto e nem de longe pareciam falsos ou dissimulados, pelo contrário. Tratava a todos com igualdade, com prontidão, sempre com postura e modos impecáveis. Ela falava em nome do pai e geria tudo e todos com maestria. Era doloroso, mas seria mentira negar: ela daria uma ótima rainha.

Por um momento, sufoquei. Busquei amparo atrás da árvore na qual me apoiava, protegendo-me de qualquer olhar. Meu peito era comprimido e precisava de ar, mas a pressão não me deixava respirar. Era impossível. Quando o coração desacelerou um pouco, saí do esconderijo. Todos já se acomodavam no salão, alguns até dormiam enquanto outros conversavam ou transitavam desviando de seus companheiros. Não muito longe, Caspian recebia das mãos da estrela as suas cobertas, estendeu uma delas sobre o chão e Lilliandil sorriu ao dizer-lhe algo. Caspian se ergueu e sorriu de volta, respondendo. Notei que ela segurava outra coberta enquanto conversavam e aproveitei a desculpa para caminhar até eles tomando cuidado para não pisar em ninguém e vestindo aquela máscara de covardia outra vez.

—Fica do outro lado da ilha – dizia Lilliandil.

—Espero poder passar mais tempo aqui quando voltarmos, para conhecer este lugar – Caspian respondeu, gentil. A estrela sorriu de novo.

—Que lugar é esse? – perguntei, o sorriso gentil de Lilliandil se voltou para mim sem qualquer nuance de alteração, mostrando sinceridade.

—Falava ao Rei Caspian sobre a enseada do outro lado da ilha. É belíssima, tenho certeza de que irão gostar.

—Certamente. Tudo nesta ilha é encantador.

Ela sorriu em gratidão à resposta e me estendeu a coberta que segurava.

—Pegue, Majestade, preparei este lugar para que descanse – indicou o espaço no chão onde um leito já estava pronto, a poucos centímetros de onde o de Caspian estava.

—Obrigada.

Ela assentiu e se afastou, desejando um bom descanso. Só então olhei para Caspian. A névoa que havia em seu olhar já não era tão pungente, tornara-se apenas uma neblina suave. Por outro lado, seus olhos agora transmitiam preocupação também.

—Mais cedo – disse ele, baixo – você não me convenceu.

—Eu disse a verdade, eu caí.

—Me refiro a parte em que disse estar bem.

Suspirei sem nem mesmo perceber.

—Muitas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo – sussurrei segurando sua mão – Aqui não é o melhor lugar para falar.

Ele assentiu, segurando minha mão de volta. Um olhar nos conectou, daqueles que dizem mais do que qualquer palavra e, num entendimento mútuo, soltamos as mãos. Retirei a aljava das costas pousando-a ao lado de onde dormiria.

—Seu cabelo está lindo – Caspian tocou as pontas, fazendo seus dedos roçarem a base de minhas costas. Olhei-o, a luz lançava sombras em seu rosto, mas revelava a clareza do brilho em seus olhos. Sorri, olhando-o mais uma vez, com atenção, registrando aquela imagem em minha mente. Caspian retribuiu o gesto e nos acomodamos para dormir.

Logo as vozes foram cessando e os sons do bosque nos empurrando para o sono. Os sonhos me acolheram de boa vontade com mais repetições de imagens que agora eu entendia e que, apesar de ainda me machucarem, me permitiram descansar. Em algum momento, o colapso desses sonhos me fez despertar. Havia esfriado e, dessa vez, não sentia o aperto no peito me sufocar como antes. Eu tinha atendido, afinal. Ou acreditava que sim. Depois de sufocar, eu estava agora em tristeza. Uma que já não era tão estranha.

Ao redor todos ressonavam na quietude, os vagalumes pairavam a nossa volta na madrugada alta. Caspian dormia a minha direita com tranquilidade, transmitindo uma paz que me fez sorrir. Levantei com cuidado e não me preocupei em apanhar a aljava antes de sair dali. Sem acordar ninguém, consegui percorrer o labirinto de marinheiros exaustos. O sono e o cansaço me deram uma trégua, então caminhei para a praia, queria dar uma olhadinha em Eustáquio.

A noite continuava bem iluminada, no entanto, em determinado ponto do caminho, estava ainda mais claro. Parei ao avistar a luz prateada e a azul emanando de um ponto não muito distante em meio ao bosque e ruínas. Suas vozes chegaram até mim quase no mesmo segundo.

—Ora, papai – falou a Estrela Azul. Não soube dizer se como gracejo ou reprimenda.

—“Ora” digo eu, minha filha! – replicou o pai, com paciência. – Veja bem, seria um futuro muito promissor.

—Eu não o conheço.

—E que mal há nisso?

Lilliandil suspirou.

—É certo que passarão uma temporada conosco quando voltarem. Os ventos demorarão semanas para virarem e permitir que retornem à Nárnia. Aposto um banquete que ficarão conosco até depois do ano novo.

Lilliandil pareceu inquieta, mas não contradisse ou questionou o pai. Ramandú tocou seu rosto, fazendo-a olhá-lo.

—Há um futuro brilhante para você, minha querida. Os céus já contaram sua história no seu nascimento. Nárnia sempre esteve em seu destino e hoje eu pude ver de que maneira. Vai me dizer que não lhe agrada?

—Desde sempre o ouço falar sobre isso e é claro que desejo um futuro desses para mim. Mas papai, não é bem assim...

Ele a interrompeu:

—Dê tempo ao tempo, minha cara. Tudo se acerta.

Foi o suficiente para mim. Segui o caminho, dessa vez de volta para perto dos outros. Passei direto para aquela sacada afastada, podendo finalmente ver a Ilha Negra outra vez. O céu começava um lento clarear naquela direção. Respirei fundo uma, duas, três vezes sentindo uma chama enfurecida crescer em meu peito. Apoiei as mãos na beira da sacada inalando a brisa. A vontade de correr, me lançar ao mar e levar todos de volta para casa rugiu dentro de mim, logo ficando presa a impossibilidade de sua ação.

Eu sabia que não eram maus. Aslam não os teria dado a guarda de sua mesa se o fossem. Mas a falta de respeito, as especulações, as insinuações, essas sim foram responsáveis pela primeira fagulha. Ciúmes? Sim. Eram ciúmes que escorriam dentro de mim como lava saindo do vulcão, queimando e consumindo tudo o que viam pela frente. Por um lado é clara a irracionalidade daquilo e tratei de respirar, embora quisesse me render às chamas.

—Vamos, Susana – murmurei ao perceber que não parava de balançar o corpo. Ainda apoiada na mureta, curvei o tronco alongando as costas em uma tentativa de diminuir a tensão. Inspirei mais algumas vezes.

Era insuportável permanecer ali. A saída mais próxima era o Peregrino e ele seria meu próximo destino.

—Majestade? – a voz parecia surpresa em me ver ali. Lilliandil olhava-me apreensiva e hesitante quando meus olhos encontraram os seus. – Está tudo bem?

—Na medida do possível.

—Parece aborrecida...

—Porque seu pai deseja casá-la com o Rei de Nárnia?

Lilliandil empalideceu.

—Oh, minha nossa...! Você ouviu...?!

—Eu estava de passagem.

—Peço perdão pelo que quer que tenha entendido. – ela segurou as próprias mãos e recuperou a postura, falando calmamente: - Meu pai e eu não tivemos a intenção de ofendê-la.

Ergui as sobrancelhas.

—Não tiveram?

Ela se moveu, aprumando a postura com mais veemência.

—Certamente não.

—Seu pai foi muito claro.

—Não o culpe por isso – pediu. – Ele desconhece os sentimentos entre vocês, Alteza. Há muitos anos vive aqui, isolado. Como poderia saber?

—Mas você sabe – constatei, começando a compreender. Lilliandil se desfez da postura defensiva e suspirou.

—Eu passo a maior parte do tempo no céu, eu os guiei até aqui... Pude observar muitas coisas.

—E mesmo assim deixou sua magia encantar a todos.

—Não é de propósito, acredite! É algo inerente à minha essência. Minha magia consegue ser atrativa aos sentimentos de todos os homens. Preciso de muito treino e tempo para dominar completamente.

—Você não respondeu minha pergunta.

A estrela suspirou.

—No dia em que nasci, meu pai viu nas estrelas que Nárnia estaria no meu futuro. Até hoje eu não havia tido contato com nada nem ninguém que proporcionasse qualquer conexão entre mim e o seu reino. Em um lugar tão isolado quanto este ou estando tão distante quanto no céu é improvável que outro encontro destes aconteça novamente. Então você pode entender de onde vem as expectativas dele.

—E as suas?

Lilliandil se aproximou, mantendo o olhar fixo nos meus. Havia sinceridade em seu olhar, uma que eu reconhecia facilmente pois já vira inúmeras vezes no olhar de Lúcia. De alguma forma, a calma foi se aproximando.

—Por muito tempo compartilhei as expectativas de meu pai. Quando recebi a missão de guiá-los até aqui, achei que a hora havia chegado enfim. Eu os encontrei na velha Ilha do Dragão e em todo o trajeto até aqui pude observá-los. Vi que se há um rei de Nárnia com o coração cheio de amor incondicional por mim, esse rei não é Caspian X. O que ele sente por você, Majestade, nem minha magia conseguiu contornar. Então, sobre o que ouviu hoje, peço que desconsidere.

Liliandil concluiu com um sorriso gentil. Um tremor suave em meu queixo foi imediatamente reprimido e o esforço empregado para isso me permitiu apenas assentir para ela uma única vez. A estrela fez uma reverência e se retirou. Tornei-me em direção a Ilha Negra outra vez sentindo o ar preso em meu peito. Meu coração foi apunhalado pelo que a razão estampou no fundo de minha mente: Lilliandil daria uma excelente rainha, se assim o fosse.

[...]

O sono não era mais uma opção. Agachei até sentar-me no chão, apoiando as costas contra a mureta. Fiquei ali até perto do amanhecer. Quando a noite começou a fixar arroxeada, o som terno da voz de Caspian despertou-me do breu no qual eu estava.

—O que está fazendo aqui? – disse ele após chamar meu nome e ao mesmo tempo que estendia a mão para mim. Ao sentir meu toque, ele se sobressaltou – Por Aslam, está congelando!

—Estou bem – afirmei com calma. Caspian me abraçou, seu calor aconchegante quase me fez adormecer – Estou bem, meu bravo rei chegou para me salvar do frio. – repeti contra seu peito.

Caspian bufou, agitando alguns fios de meu cabelo e me desafiou com um levantar de sobrancelhas.

—Em algum momento acha que me convenceu disso ou está apenas repetindo para si mesma?

Suspirei antes de sussurrar:

—Um pouco dos dois. Não quero que seja atormentado como eu estou sendo.

Caspian se afastou para me olhar nos olhos, segurando meus ombros.

Eu vejo sua tormenta. Não há como ficar em paz assim.

Vi claramente sua intenção, mas ali ainda não era o melhor lugar. Havia muitas pessoas, com ouvidos atentos. Caspian viu isto em meu rosto, analítico:

—Você está se isolando.

Neguei com a cabeça.

—Essa não é minha intenção – ou era? Já não sabia mais. Covarde.

Caspian acomodou uma mecha de meu cabelo atrás de minha orelha.

—Então deixe que eu fique perto. Me deixe saber o que aflige você. Não permita que o que você viu nos consuma.

Olhei-o por um segundo. Pisquei.

—Você viu tantas coisas quanto eu... Caspian, você... Você não acredita, não é? No que viu.

—Sei o que vi e acredito que nada é definitivo. Temos escolhas, mas conversamos sobre isso depois – disse com doçura e aguardou. Concordei com a cabeça. – Devemos partir logo após o nascer do sol. Vamos?

—Certo.

—Ei – ele tocou meu rosto novamente antes de entregar em beijo quente, calmo e demorado. Seu braço envolveu minha cintura, mantendo-me contra si e seu calor. Todo aquele aperto no peito foi se dissipando. Um som suave marcou o fim do beijo e Caspian falou outra vez, com a ponta do nariz ainda tocando a minha: - Tudo vai se acertar. Eu amo você, Susana Pevensie.

Sorri.

—E eu amo você, Caspian.

Caminhamos de volta para onde os outros estavam. Logo o sol nasceria. O breve acampamento começou a ser desmontado antes mesmo do primeiro raio de sol. Sobre a mesa ainda estava a louça com os restos de comida da noite anterior e os três dorminhocos continuavam em seu sono profundo. Passei a aljava por sobre a cabeça, acomodando-a em meus ombros e o cinto à cintura. Foi nesse momento que Ramandú passou por nós, vindo da direção oposta e caminhando até a parte mais a Leste dali, por onde o sol começava a despontar seus raios dourados, afastando a noite para longe.

A túnica prata, assim como os cabelos longos e barba branca que lhe chegavam aos pés, começaram a reluzir na luz do sol. Um som novo começou a se espalhar pelo ar, baixo a princípio, mas que foi crescendo conforme o sol aparecia. Todos ficaram em silêncio, completamente imóveis. Lilliandil chegou ao lado do pai logo em seguida. Juntos, os dois ergueram os braços em direção ao sol e intensificaram o canto. Aquela melodia vibrava suave pelo ar como a magia, envolvia nossos ouvidos em um encanto que qualquer língua jamais conseguiria descrever. O sol nascia ofuscante, intensificando a música, esticando seus raios para cima, para a terra e para os mares. Tudo estava branco, o mar era pura prata, as nuvens sumiram. O céu oriental alcançou tons de vermelho e, erguendo-se com a majestade de um astro magnânimo, o sol surgiu imponente no mar. Seus raios se esticaram sobre a terra, acariciando nossas peles e iluminando a mesa, os dorminhocos, a Faca de Pedra.

Ninguém ali estava preparado para o que vimos. O sol estava tão grande, parecia tão perto, que cruzar algumas milhas ou simplesmente esticar o braço parecia ser suficiente para tocá-lo. De fato, era o ponto mais ao Leste do que qualquer outra pessoa jamais esteve. Era o princípio do Fim do Mundo.

Então, uma forma indistinta saiu do centro do sol vindo em nossa direção. A canção continuava, agora, porém, diversas outras vozes entoavam a mesma melodia. Não demorou muito para que os donos das vozes aparecessem, enchendo o ar com seu som: eram pássaros. Aves grandes de penas brancas em tal quantidade que era impossível mensurar com os olhos. Passaram por nós como o vento e pousaram por todo lado, deixando a paisagem branca como suas penas. Um deles, entretanto, voou até Ramandú deixando em sua mão o que trazia no bico. Sendo o que quer que fosse, brilhava como um pedaço do próprio sol.

De repente, houve silêncio.

Os pássaros se agitaram em volta da mesa como um pequeno tornado. Em poucos segundos se afastaram não deixando para trás qualquer vestígio do banquete da noite anterior. Então, levantaram voo de volta ao céu, retomando o caminho em direção ao sol. Sem a música, só se ouvia o farfalhar das milhares de asas. Logo era como se nunca houvessem passado por ali. Nem uma pena ficou para trás.

Ramandú se virou para nós com um sorriso jovial, aproximando-se.

—Bom dia, meus caros amigos! Como passaram a noite?

Caspian levou alguns segundos para responder.

—Bem, senhor.

—Ótimo! É muito bom saber disso! Lilliandil ficou preocupada com a temperatura, teve medo que sentissem frio.

Ela, por sua vez, sorriu um pouco encabulada.

—De forma alguma – respondi. – O fogo estava ideal.

Os olhos de Ramandú saltaram para mim, brilhantes e injetados de saúde.

—Minha senhora, a beleza e o frescor de um bom descanso que vejo em seu rosto confirmam o que diz e me deixam extremamente alegre.

Um sorriso singelo meu iniciou alguns segundos se silêncio sob o olhar da estrela.

—Em nome de todos – Caspian falou – Quero agradecer por sua hospitalidade. Devemos partir ainda hoje.

Ramandú assentiu um pouco pesaroso encaminhando um discreto olhar para a filha.

—Eu compreendo. Não vieram até aqui à toa. No entanto, permita-me insistir para que venham nos visitar no caminho de volta. Há muita coisa para se ver nesta ilha e será um bom descanso antes da jornada até Nárnia. Lilliandil e eu teremos o maior prazer em recebê-los novamente e será uma honra apresentar meu primogênito a vocês, altezas. Ele se juntará a nós em poucos dias. – virou-se para mim novamente – Vossa Majestade deve ser lembrar dele e ele da senhora. Meu filho era a estrela mais brilhante do céu depois da queda da Feiticeira Branca. Ele será uma excelente companhia.

—Certamente será uma honra conhecê-lo. – interrompeu Caspian com um pigarro discreto. Ramandú concordou com um aceno único de cabeça.

—Lilliandil preparou mantimentos para vossa jornada. Querida, poderia mostrar ao Rei Caspian onde estão?

—É claro, meu pai – ela fez uma rápida reverência a ele. – Com sua licença.

Sinalizou discretamente para Caspian e tratou logo de obedecê-lo. Caspian, sem opções, a acompanhou e nós vimos os dois se afastarem. Drinian atendeu o chamado de seu rei e logo se juntou a eles. Ramandú suspirou ao meu lado. Ao longe, Lilliandil parecia feliz indicando e sorrindo, Caspian retribuía com gentileza e atenção, como era de sua natureza.

—Ela é meu orgulho – confessou. Dei-lhe um sorriso amarelo que ele não percebeu. – Já teve algo assim, Majestade? Ora, é claro que sim.

—A quê se refere?

—Algo que lhe é precioso, tão precioso que se torna sua fonte de vida, de coragem e esperança. Algo pelo qual ou por quem você morreria para proteger.

Ouvindo suas palavras, meu olhar recaiu sobre o que tinha diante de nós, cada marinheiro seja telmarino, fauno, anão, minotauro; cada narniano que se dedicava pelos companheiros e se preparava para mais um perigo sem nem mesmo hesitar. Podia ver neles suas famílias, seus amigos, seus sonhos e seus méritos. Podia ver seu rei e toda a força, perseverança e responsabilidade que possuía. Caspian notou meu olhar enquanto Lilliandil explicava algo, e sorriu para mim. Senti um sorriso comichar no canto de meus lábios. Uma série de lembranças passou por meus olhos, as dificuldades, as lutas, as batalhas, a bravura, as perdas. Quis como nunca que meus irmãos pudessem vê-lo agora, ver o rei que havia se tornado e saber que fizemos a coisa certa. Que Nárnia e nosso povo estavam mais seguros do nunca. Olhei para Ramandú e sorri.

—Certamente.

Ramandú sorriu educado, acenou com a cabeça e se afastou desejando uma boa viagem.

Em pouco tempo estávamos na praia com os mantimentos e todos os marinheiros embarcados com exceção de Rince, que nos aguardava no bote, e Eustáquio e Rip, que estavam na praia.

—Agradecemos sua hospitalidade – Caspian se inclinou e eu o imitei.

Ramandú consentiu enquanto a filha sorria. Já era dia e ainda assim era possível ver a aura brilhante e mágica em volta deles. O vento suave que vinha do mar agitava graciosamente seus cabelos e roupas.

—Terão sempre um lugar para repousar em minha ilha. – garantiu o pai. – E mantenho de pé o convite para nos visitar antes de retornarem a Nárnia, alteza. Quem sabe não visitamos seu reino? Lilliandil sempre sonhou em conhecer Nárnia.

A Lilliandil em questão corou, mas manteve a postura.

—Seria uma honra recebê-los – Caspian garantiu. – Sintam-se à vontade para juntarem-se a nós.

Pude vê-los no navio durante todo o longo caminho de volta com Lilliandil e suas gentilezas e encantos de estrela, Ramandú provavelmente mandaria a filha só, dadas as suas intenções. Se Caspian podia ver isso e ainda assim incentivava, ele havia se tornado o mais belo modelo de diplomacia. Por um lado, me orgulhava, por outro, algo no fundo de minha mente se preparou para o turbilhão de agonia que aquelas insinuações poderiam causar, porém, para minha surpresa, não passou de uma brisa suave. Respirei com certo alívio.

—Desejo-lhes que sua jornada ao fim do mundo seja breve, que Aslam os guie e fortaleça para que possam ter sucesso. E sabedoria, para pagar o preço necessário. Vão, e derrotem o mal para salvar o seu povo.

As estrelas se afastaram, seu brilho aumentou como vento e logo suas formas mudaram, incandescentes, e subiram de volta ao céu deixando vestígios de poeira brilhante no ar. O cheiro inebriante da magia suavizou e busquei o rosto de Caspian. Ele baixou seu olhar do céu para mim e notei que seus olhos estavam claros outra vez, a neblina suave havia sumido definitivamente, deixando lugar para a preocupação especialmente dirigida a mim. Pus as mãos na cintura.

—“Sintam-se à vontade para se juntarem à nós”? – repeti, alterando a voz para imitá-lo e erguendo as sobrancelhas. Ele pareceu confuso.

—O que foi?

Balancei a cabeça, rolei os olhos e mordi o lábio para não rir, seguindo para o bote. No mesmo segundo o ouvi a poucos passos de mim.

—Ei, espere aí, o que houve? Susana!

Rince estendeu a mão e eu entrei no bote. Caspian nos alcançou um segundo depois e a expressão inquisidora e levemente confusa o acompanhou por todo o tempo que remou com Rince até o Peregrino.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.