Mar de Lírios
Apenas lembranças ruins...?
Assim que o sol apareceu, Caspian me beijou, abraçou e deixou a cabine antes que os outros começassem a acordar. Suspirei longa e preguiçosamente, espreguiçando-me, ignorando a pontinha de dor do ferimento. Levantei e fui trocar de roupa. Ao sair da cabine fui abordada pelos marinheiros que me desejavam bom dia.
-Onde está Eustáquio? - perguntei a um deles.
-Lá embaixo, Majestade, ainda não levantou.
-Obrigada. - falei, logo me dirigindo para a portinhola que levava a cozinha e a onde estavam as redes dos marinheiros. Encontrei Eustáquio. Ele estava deitado na sua rede, suando e respirando com dificuldade.
-O que você quer...? - questionou, fraco.
-Vim ver você. - disse, ignorando sue mal humor. - Está tudo bem?
-Claro, estou ótimo! Vê? - resmungou, rolando os olhos.
Suspirei.
-O que você está sentindo? - pus a mão em sua testa.
-Minha garganta está seca, estou enjoado, me sinto febril...
-Não está com febre. - conclui, ao sentir sua testa em temperatura ambiente. - Quer que eu pegue água para você?
Ele assentiu e eu fui até a cozinha, peguei uma caneca com água e levei até ele. Sustentei a parte de trás de sua cabeça com uma mão e com a outra pus a caneca em seus lábios, ajudando-o a beber. Com a caneca vazia, ele voltou a se deitar.
-Acho que devia subir e pegar um ar, o balanço da rede talvez piore seu mal estar. - orientei.
-É... Também acho. Me ajude a levantar, por favor. - pediu, estendendo-me a mão. Segurei-a e o ajudei a pôr de pé. Ele ia falar alguma coisa, assim que pôs os pés no chão, mas foi interrompido.
-UM BARCO SE APROXIMA! - gritou a voz do vigia do mastro. Todos os que estavam ali em baixo subiram para o convés. Eustáquio correu até a beira do navio para vomitar e eu fui na direção em que Caspian e Drinian estavam, próximo ao manche e ao dragão da proa. Caspian estava com a luneta direcionada a Oeste. Batia uma vento muito forte, daqueles que faziam barulho nos ouvidos, vindo da mesma direção do navio de velas negras e aspecto sujo fazendo-o se aproximar de nós com velocidade. Ouvi Caspian suspirar.
-Drinian. - ele passou a a luneta para ele. Drinian observou por um momento e abaixou o objeto.
-Não há a bandeira de Narnia no navio, Majestade. - disse ele. Meu coração apertou um pouco.
-Há pelo menos alguma bandeira a vista? - perguntei.
-Há... Uma da Calormânia.
Meu sangue gelou e eu fique zonza, sentindo que ia desfalecer. Pode parecer exagero, mas não consigo suportar a possibilidade de qualquer calormano estranho e suspeito próximo a mim. Era tudo trauma. Trauma de um episódio calormano em meio a uma das melhores épocas da minha vida. O calormano quase me matou e sua obsessão, insistência e agressividade me deixaram extremamente traumatizada. Segurei-me na beira do navio tentando disfarçar.
-Calormânia...? - foi o que consegui exprimir.
-Sim, Majestade... - respondeu Drinian.
-Pode me emprestar a luneta? - perguntei a ele. Drinian me passou o objeto e eu o direcionei no rumo do navio, pela imagem arredondada, levei um choque.
Aquele navio... Não... Não pode ser... Aquela bandeira... Aquela sereia com o tridente na mão na proa... E o nome na lateral... “Tarcaã”... Não era possível que aquele navio ainda existisse... Não depois de tantas décadas... Não podia... Aquele navio era o mesmo... O mesmo que o calormano usou para atacar o Esplendor Hialino quando eu tentava fugir de Tashbaan... Quando tentava fugir dele...
Com a respiração presa, entreguei a luneta a Drinian torcendo para que ele não percebesse minhas mãos tremulas, e saí dali tentando não demonstrar nenhuma alteração, seguindo para a minha cabine e fechando a porta. Mas Caspian parecia ter olho clínico para essas coisas pois o ouvi me seguir. Eu me apoiei na cômoda, sentindo o medo irromper de meu peito com lágrimas e respiração pesada...
Será que esse pesadelo nunca me deixaria em paz? Primeiro eu era perseguida pelo calormano em pessoa, depois pelos sonhos horríveis que as lembranças dele me causavam... E agora isso...
Quando vou me ver definitivamente livre de Rabadash...?!
Não ouvi quando ele entrou, só senti quando Caspian pôs a mão em meu ombro.
-Está tudo bem com você, Su? - perguntou ele, analisando-me confuso. - Há algo errado?
-Nada com que eu não esteja acostumada... - falei, o som quase não saindo.
-Do que está falando?
-Só... Lembranças ruins da Calormânia...
Ele pareceu entender do que eu falava.
-Ah, claro... Lembro das histórias...
-Eu lembro mais do que só das histórias... - falei. Caspian me puxou para um abraço.
-Não se preocupe, ele não fará mais nenhum mal a você... Ele está bem morto...
-Eu sei... Mas nem isso faz minhas lembranças serem apagadas, Caspian, e este navio... - parei, respirando fundo. - É idêntico ao que ele usou para atacar o navio que eu usava para fugir da Calormânia... Se não tivesse se passado tanto tempo, juraria que é o mesmo navio... - Caspian afagava meus cabelos.
-Mas, Su... Pelo que eu lembro, vocês não foram atacados quando fugiam... As histórias não relatam esse ataque fluvial.
-As histórias não relatam muita coisa, Caspian...
-Tipo o que...?! - ele pareceu preocupado.
-Não quero falar disso... - pedi e ele não fez mais nenhuma pergunta, mas eu sabia que voltaria a tocar no assunto.
-É melhor irmos para o convés... Estar a postos, caso eles queriam nos enfrentar. - falou e eu assenti, desfazendo o abraço suavemente. Peguei minha aljava com as flechas e pus nas costas. - Está mesmo bem?
Assenti e nós voltamos para lá, alguns marinheiros já se preparavam, o barco estava mais próximo do que eu imaginada. Ignorei todos aqueles sentimentos ruins e me mantive firme, segurando o arco em uma das mãos.
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