Fazia pouco mais de 48h que havia deixado meu pai na rodoviária e um pouco mais de 24h que havia ligado para ele só pra papear. Agora é ele quem discou e assim que vejo o nome dele piscando no celular de mamãe, coloco no viva-voz.

— O que minhas garotas estão aprontando nessa sexta-feira à noite? Alguma farra?

Bem arranjada no sofá, como se não tivesse passado a tarde toda imersa numa bela maratona para fugir dos meus fantasmas (da investigação e dos eminentes trovões), escolho entregar mamãe para curtir mais desse pequeno pedaço de sossego que posso me dar o luxo de ter:

— Pai, a mamãe tá apaixonada.

— Hmmmm... O que foi que o teu namorado fez?

De instantâneo, movo minha boca formulando um sorriso bobinho pela respostinha malandra dele. Poisé, senhor Otávio Camargo estava mesmo gostando do meu namorado. E quase posso protestar pela criatura que chamo de irmão e que papai não referenciou, QUASE. Falando nele, olho de soslaio para a porta, como se fosse chegar nesse segundo. Sem dar as caras, mordo o lábio receosa da tal conversa que prometeu ter comigo hoje. Está ficando um pouco tarde.

Volto ao presente quando papai nota o vácuo que ficou de sua pergunta e, antes que mamãe ressurja da cozinha, respondo-o eu mesma.

— Milena?

— Na verdade, ela está apaixonada pelo senhor. Ela entregou muita coisa fofa sua.

Mamãe retorna com xícaras de chá – pressinto que ela quer me preparar para a conversa de daqui a pouco, se o Murilo aparecer – e com toda a sua força de presença, ela vem cheia de risos, suspiros e malandrices também, porque gosta de atiçá-lo falando as coisas pela metade. Algo que também gosto de fazer, apesar de ter lhe entregado de cara.

— Estávamos vendo uma série e conversando sobre... a vida. Só isso.

— Sei. E onde que eu entro nessa história? Ou melhor, o que tua mãe andou falando de mim?

Por um momento, penso que trocas assim são semelhantes às minhas com o Vinícius. Se faria com ele? É só o que faço.

Isso e o interesse genuíno de meu pai me ameniza mais do que receber o chá de mamãe, mas sou muito grata pelos dois – ou três? Muito grata também pela harmonia entre meus pais e por serem duas criaturas incríveis na minha vida. Mesmo que hoje eles estejam distantes por força do destino (eu e minha queda), sei que cresci em um lar de muito respeito e amor. Tá, meus pais também são doidos e têm lá seus defeitos – muitos, inclusive – porém, com uma história bem boa de conhecer. Bem como a dos pais do Dawson Leery, nosso personagem não favorito e principal herói da série.

A segunda temporada de Dawson’s Creek trouxe um pouco da relação abalada do casal Leery após uma traição da mãe com um colega de trabalho. Trouxe também uns momentos bem constrangedores com MINHA mãe quando a senhora Leery tentava uma aproximação mais sexual com o senhor Leery. O personagem é um homaço da porra, isso é certo, mas ouvir ISSO de MINHA MÃE, eu fiquei um pouco... como posso dizer? Chocada?

Aproveitei o momento pra explicar o histórico desses personagens e seus conflitos. Agradeci aos céus quando mamãe focou na cabeleira esquisita da mãe do Dawson, que, de fato, podia ser o auge na época, mas envelheceu bem mal. Na verdade, a gente conversou sobre um trilhão de coisas que foram surgindo conforme as histórias passavam. E quem mais se destacou por essas histórias foi o meu pai e o Vinícius.

Em um dos episódios, apareceu a teoria do segundo beijo, que foi uma das coisas que peguei desde que assisti a série e levei pra vida. Muito se fala dos primeiros beijos com uma pessoa, da emoção, porém, como bem destaca a série, o melhor é o segundo beijo – na realidade, o segundo dia de beijo – pois é racional. Vem depois de todo o calor do momento e dá certeza às coisas. E o meu melhor segundo beijo foi com o Vinícius.

Sim, eu falei isso pra minha mãe. Eu. Euzinha. Eu que quase nunca falava dessas coisas com ela.

Foi bom para preencher um pouco da lacuna de dados sobre o namorado, pois até então ela só arrancava informações dele, e não exatamente detalhes, e senti que finalmente tava preenchendo aquela falta que ficou evidente na véspera de Natal, quando a Iara abriu o dossiê do Sávio e me lembrei de como mantive isso dela e de meu pai ao não responder suas inúmeras perguntas. Eu poderia dizer que hoje mamãe se aproveitou bastante, mas prefiro crer que ela só estava sendo a curiosa que é. E eu, por outro lado, estava deixando minhas barreiras cada vez mais baixarem e o assunto fluir como quando converso com uma amiga.

Acho que ela também sentiu isso, porque dividiu umas boas histórias dela com papai. Ela não soube dizer bem como foi o tal segundo beijo, mas o primeiro ela guarda sim. Guarda também os primeiros depois de suas reconciliações, dos mais doces aos mais danadinhos— palavras dela, o que me fez retrair diante dos detalhes. Mas ri um riso mais leve quando ela me deu um tapinha na perna e disse que era algo normal, bom e que não era pra se ter vergonha. Foi uma maneira também de ver um pouco mais da relação deles fora minha percepção de filha. Afinal, também brigam e também se reconciliam.

Quando vi, estava eu falando mais sobre os meus momentos com o Vinícius, de amores, brigas e reconciliações. Foi bem doido e estranho de começo, mas conforme ia contanto e rindo e descrevendo as doidices que a gente passou naquele período de começo de namoro, e também de algumas confusões de família, me senti bem mais leve e solta. Contei inclusive da vez que Djane me pegou na cama do Vinícius e que, diferente do casal adolescente da temporada (Dawson e Joey), não estávamos nos pegando ou algo do tipo. Pelo contrário, Vinícius me ajudou a atravessar uma crise difícil com trovões.

Testei um pouco do território ao trazer essa palavra – trovões – ao papo, porém, logo ela quis saber como foi exatamente que ele me ajudou.

— Não, mãe, não foi com sexo, meu Deus!

Sim, tive que exclamar isso!

Foi ali que começou nossos joguinhos de distração. Voltando um pouco mais, acho que foi no dia que nos encontramos, ainda lá no hospital, quando ele acordou do coma, e eu fiz uma série de perguntas aleatórias sobre geografia e o Vinícius resgatou isso quando eu tava em crise. A segunda crise por trovões presenciada por ele já foi na casa da minha família, no interior, junto do Murilo, e ali fomos adaptando as perguntas de conhecimentos de geografia para algo mais fácil e cultural. No caso, as músicas.

Não falei do presente do Murilo porque acabou que a série foi apenas nos levando. De tempos em tempos, eu pausava a cena e apenas comentávamos algo, sem se importar se ia render assunto ou não, só... íamos. Independente do assunto. E foi muito agradável.

Até quando ora e outra envolvia algo com sexo. O que era quase toda hora!

Comentei até mesmo do Murilo colocando regras na casa quando a presença do Vinícius despertou a atenção dele sobre relações mais íntimas. Mamãe deu essa razão a ele, e, como os pais do Dawson, era algo necessário a se fazer, mesmo que eu e o Vini já não fôssemos mais adolescentes. Limites existem por alguma razão.

Ainda mais com os tais dos meus shorts curtos, de acordo com ela (e com o Murilo).

O que não consegui falar foi sobre como já havia tentado ter uma intimidade com outro namorado e que foi no ensino médio, porque era realmente um tópico delicado. No entanto, foi interessante ver que ela também já tinha percebido como as séries norteamericanas sempre trazem um grande apelo quanto a perder a virgindade antes de ir para a faculdade. Tipo, tem inúmeros filmes nesse sentido de hipersexualizar adolescentes. Inevitavelmente, isso recaiu sobre o trabalho dela na escola e de como percebe alguns alunos mais “lascivos” que outros.

Mas uma coisa eu não pude prever e eu nem sei como consegui prosseguir com a conversa. Porque havia uma personagem perversa, lasciva e bem sacana que vez e outra perturbava a turma de amigos. E ela era parecida com quem, quem, quem?

— Essa personagem Jen parece que tá bêbada o tempo todo, já notou?

— Sim. Acho que os roteiristas focaram bastante em trazer a pior imagem dela nessa temporada, dada ao histórico antes de se mudar pra essa cidadezinha. Essa outra, a Abby, acaba instigando bastante esse seu lado mais... libidinoso. A Jen foi apresentada como garota problema, meio vadia e que muda de vida. Mas tem um longo caminho pra mudar. Se bem lembro, na outra cidade, Nova York, ela vivia de drogas, bebidas, baladas e sexo... E isso desde os 12 anos.

— DOZE ANOS? Deus meu!

— Ela também tem uma relação complicada com os pais e não sei dizer bem se foi razão para ela fugir e se envolver com essas coisas todas... Só sei que dá entender que ela se perdeu de inúmeras formas nesse período e aí, nessa cidade pacata, com essa avó religiosa e novas amizades, ela tem uma nova oportunidade de ajustar a vida. Não acontece de uma hora pra outra, mas acontece.

— Eu nem consigo processar como devia ser a vida dessa garota. E essa Abby... Só a levando pro mal caminho de volta. E agora observando melhor... essa Abby parece a Denise, não?

Sério, eu fiquei sem fala nessa hora. Porque ela tinha razão. Principalmente pelos esquemas e manipulações. A personagem já havia dado um gostinho disso na temporada anterior e eu lembro de algumas coisas vagas em outros contextos. A Denise era assim. Eu tive essa intuição com a Abby no período que tive que ficar de molho no final das aulas, mas me impressionou MAMÃE ter visto isso. Ter correlacionado isso.

— Apesar algumas vezes ela parecer tão doce, aquela garota aprontava umas coisas que me deixava na dúvida. Tipo, eu sei que não era pra ter deixado aquela história de namorico entre ela e seu irmão ir tão longe. Era só uma brincadeira boba, mas quando ela beijou o Murilo na boca, eu vi que tinha algo errado.

Fiquei apenas dedilhando o controle na minha mão sem realmente tirar do pause, só demonstrando minha atenção e barrando quaisquer reações mais.

— E depois teve uma confusão com sua tia que, sei lá, parecia que ela havia plantado uma discórdia de graça, sabe? Porque a proibi de ficar perto do Murilo com essas... essas coisas que não eram certas. Eles são primos diretos.

Mamãe puxava tanto de suas memórias que nem se tocou de mim, o que me foi até melhor.

— Acho que ela mudou comigo depois disso. Mas pensei que tivesse ficado apenas chateada. Ela era gentil e tudo mais, mas sabe quando você fica em dúvida se a pessoa tá sendo generosa de verdade? Fiquei com essa sensação. Mas meu receio verdadeiro era a relação dela com você.

— Comigo?

— Sim, de que ela fosse uma influência... como essa Abby. De procurar por homens mais velhos, de procurar por bebidas, e coisas não adequadas para sua idade. Mas acho que não foi bem assim, graças a Deus. Você se saiu muito bem. Teve um bom desenvolvimento.

Só assenti, tirei do pause e o estabanado personagem Jack me salvou. Porque aquela maldita não iria estragar meu momento com mamãe. Aqui ela não iria me ganhar.

Volto ao papo do momento quando mamãe gargalha por algo que me pai diz e dou um gole no chá de camomila para parecer ainda mais distraída.

— Viu só? Sua princesinha consentiu.

— Eu o quê, mãe?

— Ela tava dizendo que você não curtiu meu cabelo naquela foto do noivado e que você, minha princesa, disse que minha beleza exótica não era para todas. É verdade isso?

Encaro a senhora minha mãe que horas antes disse algo assim. Na verdade, falou que a beleza de meu pai não era de parar o trânsito da vida, porém, ele soube a conquistar. Ela achou que não passaria de um flerte e cá estamos com uma linhagem e tudo. Pra mim, no entanto, meu pai era lindo. É lindo.

E é lindo que eles mantêm esse pique de zoeira e flerte entre eles depois de tantos anos e odisseias.

— O senhor acreditaria numa blasfêmia dessas? Não posso me distrair um segundo. Tava aqui repensando a música da série e agora tenho que repensar em deserdar os dois por mancomunarem desse jeito.

Mamãe resolve a confusão de outro jeito: enrolando, claro. Aprendi com quem?

— Otávio, sua filha cantou em TODAS as entradas musicais. O que foi... quantos episódios mesmo, querida?

Eu também sei fazer drama, penso. Roubo o celular de volta, enquanto mamãe checa com o controle da televisão sua dúvida.

— Pai, ela me forçou. Fiz de boa nas duas primeiras, depois ela me obrigou.

— E tu lá faz algo porque tua mãe te obriga?

É um bom ponto.

— Sete episódios!

— Na verdade, vimos nove, mãe, porque foram os dois últimos da temporada anterior e mais sete da segunda temporada.

— Viu só, Otávio? Nove episódios gigantes! Melhor do que muita farra por aí.

— Eu mesmo queria.

— E você, o que está fazendo nessa última sexta-feira?

Com essa, me soa um alerta mental de escapulir o mais rápido possível do recinto para não ouvir mais do que seria saudável dessa ligação. Tá, posso dizer que queria dar privacidade aos dois, não? Mereciam.

Mal dou umas goladas no chá enquanto ouço a risada de papai e já me preparo para sair pulando, se for o caso. Pulando feliz, ao menos. Consigo dar umas passadas mais rapidinhas e chegar até a cozinha para deixar minha xícara. No mesmo pique, passo pela sala fazendo sinal de que iria ao banheiro, mas na verdade vou para o meu quarto. Puxo o celular do bolso do short assim que fecho a porta, para checar se tem alguma mensagem do paradeiro da criatura ou o porquê de estar alongando minha espera.

E nada. Nada além de variadas mensagens de diversas pessoas e, agora, grupos. Abro um quando vejo algo relacionado ao Murilo como última mensagem, de quase 1h atrás.

Os Milenares

21h58

Iara

[foto]

o Murilo já te deu flores, Mi?

Fico meio perdida com essa até abrir a foto que enviou junto e revelar a Iara numa mesa do que parecia ser um restaurante bem chique e iluminado com o Vinícius e o Filipe, um de cada lado seu, e um buquê de flores modesto em suas mãos. Pela pose, foi alguém do restaurante que tirou a fotografia. Mais uma pro mural, com certeza. Estonteante em sua expressão de felicidade máster, diria que ela está no mínimo “quicante”. Fico contente também porque agora o Vini tem alguém para apreciar de verdade suas flores.

22h54

Lins

Não, mas às vezes ele me dá dor de cabeça

*brincadeirinha, viu*

Não sou muito chegada a flores

Lembro inevitavelmente da peste me perguntando se eu gostava de flores há um ano porque soube que o Vinícius iria me presentear com elas. Ele não cortou o barato do amigo, mas imagino que matei algumas expectativas deles. Até parecia que não me conheciam. Bom, talvez nesse lado, não conheciam mesmo.

Volto à foto para ver a carinha do namorado e... parece um pouco distante. Está, claro, junto da irmã e do pai, mas não é bem a alegria que está estampada em seu rosto. Vejo algum desconforto. Filipe, por outro lado, apesar de ter a expressão cansada, mostra-se bem realizado. De qualquer maneira, eles estão juntos e em um contexto de descontração. Pode ser só uma impressão minha ou, sei lá, um close diferente, uma luz não legal que bateu de outro jeito no Vinícius.

Pra todo caso, dou uma checada nas mensagens e não há nada dele também, não desde de manhã cedo. Teriam os dois homens da minha vida se juntado pra sumir hoje? Não, não teriam. Até porque eu também me dei a liberdade de ficar off. É só a vida exigindo um pouco a mais deles, eu sei. E nem todo mundo tem um atestado para driblar.

Ouço o que parece ser o portão da garagem abrir e quase posso pular na minha cama de comemoração. Na verdade, desfaleço um pouco por essa espera acabar. Tipo, sim, Milena, finalmente a coisa chegou. Não sei mais o que poderia fazer. Muito provável que eu fosse parar no quarto dele pra que visse logo de cara que eu tava à sua espera.

Saio desse rumo à sala para ouvir sua fiel saudação que... não vem. Sei que o portão já foi fechado e que carro já está na garagem – até porque o motor, embora desligado, faz um barulhinho como estivesse esfriando depois de muitas explosões do combustível – e não há sinal do Murilo. Fico tal qual uma pateta no espaço que termina o corredor e começa a sala olhando as vias de entrada, esperando que apareça. E nada.

Vou ter que arrancar ele de lá ou o quê?

— Pode deixar essa xícara na pia, querida?

Mamãe ainda tá tão envolvida com papai que só pego sua xícara e tomo como pretexto pra ir na cozinha e rumar para a garagem. Mal chego lá e, pela luz fraca de um poste próximo, vejo a silhueta do Murilo, apenas da cintura pra baixo, pois estava averiguando algo no carro acho. Assim que ele se estica para ficar total de pé, percebo que está segurando o celular na orelha.

— Não, mas é isso que tô d... Sim, desse jeito. Verifica a numeração e me repassa. É, pode ser. Beleza. Precisa de alguma coisa?

Essa última pergunta é direcionada a mim, que me encontro observando-o atônita.

— S-sim.

— Deixa numa mensagem ou no imã da geladeira que eu vejo de manhã.

Murilo passa por mim com sua mochila, visivelmente cansado. Mas eu estava agoniada demais para esperar. Sigo-o pela entrada da cozinha.

— Mas Mu...!

— Amanhã, Lena. Tive que separar briga hoje, ser firme com os caras, responder gente maluca, mal comi e minha cabeça não tá nada boa. Prometo que... Oi, mãe.

Ele pausa apenas para dar um beijo na cabeça de mamãe e seguir caminho. Me sinto um pouco mal de estar o atazanando desse jeito, porém, não consigo evitar. Ao menos papai segura meu mano um pouquinho mais na sala.

— Diz tchau pro seu pai.

— Oi, pai, tchau, pai. Boa noite. Falo com o senhor amanhã.

— Boa noite, Murilo. Parece cansado.

— E tô. Foi um dia longo e cheio, mas produtivo. Até depois.

— Bom descanso, filho.

Papai fala algo mais, eu que não processo. Porque fico entre seguir a criatura e dar um tempo a ele. Termino por segui-lo pelo corredor até seu quarto. Encontro-o já tirando o tênis, sentado na lateral da cama, como esteve horas atrás.

— Mu.

— Lena.

— Trovões.

Isso o faz parar e se virar para mim, abraçando-me o dorso.

— Eu... Eu ouvi sua conversa com mamãe mais cedo e fiquei esperando você chegar.

Murilo suspira.

— Desculpa, mana, hoje foi mesmo o caos no trabalho. Podemos ver isso amanhã?

O corpo de meu mano se mostra pesado e fica penso como se ele mesmo não conseguisse lidar consigo. Deveria estar mesmo moído. E eu aqui, insistindo.

— Amanhã você vai trabalhar?

— Vou.

É a minha vez de suspirar. Murilo tenta me convencer mais uma vez.

— Vai passar rápido, juro.

Ele não me deixaria sem informação assim, né? Muitas vezes eu consegui atravessar as chuvonas com trovões por estar em locais que abafassem o som. Naquela vez que tive uma crise no hospital – que até o Diogo viu – foi vacilo meu porque eu saí do local. Na faculdade, aos poucos fui aprendendo quais eram os lugares “à prova de som”, por assim dizer. O mesmo na empresa.

Foi com esse pensamento que mandei mensagem pra Daniela de tarde, em alguma hora que mamãe foi ao banheiro durante nossa maratona, para perguntar se havia algum espaço recluso assim na pizzaria. Não precisei explicar que se tratava da minha fobia, e ela mesmo lembrou que tinha visto sobre as chuvas. Graças a Deus que o dono do estabelecimento apostou nos últimos meses em material para abafar o som no escritório de administração.

Ela garantiu que eu poderia ficar lá. Disse que poderia ficar comigo lá se preciso – até porque vai alternar algumas músicas com os vocalistas para não ficar muito extenuante.

Eu agradeci, claro. Disse que iria ver a situação com o Murilo, pegar mais detalhes, no entanto, vendo o estado exaurido dele, me compadeço da situação do irmão. Aceito seu pedido.

— T-tudo bem, eu acho.

Teria que...

Não completo meu pensamento, pois mal me viro para voltar pro meu quarto, Murilo me chama. Ao reaparecer em sua porta, ele faz uma cara de quem vai tentar aguentar o “próximo turno”.

— Posso pelo menos tomar um banho antes?

Em agradecimento, assinto. E completo:

— Preparo algo pra você comer? Ainda tem comida.

— Esquenta lá que eu já vou.

~;~

Com uma generosa paciência, me concentrei em preparar o jantar do meu irmão. Vez que mencionou não ter comido bem, faço uma bela pratada. Se comeria tudo, não importava, mas sairia de barriga cheia e quentinha. Era meu modo de devolver todo o seu cuidado comigo.

Mamãe permaneceu ao telefone com papai, dessa vez no quarto de hóspedes, o que significa que não eram exatamente conversas para eu ou o Murilo ouvir. Por mais bonita que seja a relação deles, de muito companheirismo, tem cenas que sigo preferindo não ver ou ouvir. Talvez as versões mais lights? Sim, porém, em outro momento.

Enquanto isso, assisto com mais uma dose de paciência o Murilo se alimentar e falar que nunca esteve tão satisfeito de ver de cenoura com repolho desfiados junto de um frango com batata frita. Ele não era muito fã de saladas, porém, não era também de dispensá-la. Eu sei também que ele estava tentando quebrar o gelo.

— Isso se chama fome, maninho.

Antes de uma nova garfada, a criatura “me conserta”.

— Na verdade, esfomeado.

Lembro-me desta manhã, que ele apareceu mais ou menos assim e esperava encontrar a comida na mesa. Agora, depois de meu discurso de férias, ele não esperava mais encontrar uma refeição completa, mas fiz questão de preparar. Mesmo se não aceitasse me falar dos planos sobre os trovões, teria vindo para a cozinha fazer algo por ele.

— A dor de cabeça melhorou?

— Tá melhorando. Era fome mesmo.

Murilo não fala do tamanho do prato que lhe fiz, só vai comendo o quanto pode, como foi ontem com o Vinícius também. Deito sobre meus braços à mesa me perguntando como esse outro está, se mando outra mensagem a ele. Mas aí vejo que meu mano tá pra finalizar seu jantar e enfim vai me orientar sobre as chuvas do fim de semana.

Diante do silêncio da casa, levanto para uma última coisa, ao que o Murilo só assiste de boca cheia e uma interrogação no rosto.

Bato no quarto de hóspedes antes de meter a cabeça ao espaço do quarto. Mamãe já estava de pijama, passando algum hidratante ao corpo, e ainda no telefone com papai. Ao perceber isso, me anuncio aos dois:

— Pai, posso roubar a mamãe agora?

— Pode sim, princesa.

Apesar de ter ouvido tanto essa palavra – princesa – nos últimos dias e em cenários nada agradáveis, na boca de papai soa apenas como um carinho que não ouso negar. Pelo contrário, queria abraçá-lo por isso.

— Aliás, tenho que ir também. Amanhã falo com vocês. Beijo nas duas. E no Murilo. Tchau.

— Tchau, querido.

— Tchau, pai.

Mamãe ajeita o celular na mesinha junto de seu hidratante, calça suas chinelas e logo vem em minha direção.

— Precisa de quê, filha?

— Da senhora. Simplesmente da senhora.

Com isso, pego ela pela mão e a guio até a cozinha, onde o Murilo já enxaguava seu prato e utensílios. Ele olha de relance eu chegando com mamãe. Nenhum dos dois fala nada, assim eu tomo a iniciativa.

— Quero que você participe, mãe.

Sei que ela sabe do que se trata, porém, quero deixar bem claro (aos dois) que a presença dela é bem-vinda.

— Quero que também ouça o que o Murilo tem a dizer sobre os trovões e como a gente pode se programar para o fim de semana.

Não solto a mão dela. Aliás, cruzo meus dedos aos seus firmando essa decisão.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Mamãe me beija o rosto e me abraça de lado. Me aninho nela porque vou precisar desse amor todo para poder me abrir cada vez mais a ela e também junto dela atravessar essa situação. Agora está permitido.

Enquanto enxuga e guarda suas louças, Murilo deixa escapar:

— Ela ouviu nossa conversa de mais cedo.

— Por que não me disse nada, Milena?

Me sento à mesa da cozinha e, como permanecia interligada a mamãe, ela também se senta e bem ao meu lado.

— Acho que só estava processando primeiro... que haveria trovões agora. Que vai pegar o período das festividades. Eu até perguntei pra Dani sobre ter algum espaço isolado na pizzaria. Tem a saleta da administração. Eu poderia ficar lá.

Murilo parece titubear um pouco, balançando o pano de pratos.

— Acho que é uma possibilidade... Mas fico preocupado de você se sentir um pouco sufocada lá. Por ter muita gente e muito barulho. Talvez se sentir presa. Pensei em você ir comigo para o jantar com a Lia e de lá vermos a situação, se daria ou não para ir para a pizzaria.

Mamãe se manifesta com essa:

— Mas se vocês dois vão estar fora, eu também iria nesse jantar. Quer dizer, se você permitisse, filha.

— Permito sim. Mas acha mesmo que dá pra eu ir nesse jantar, Mu?

— Acha que poderia ir no show de virada da banda?

Fico sem resposta. Mamãe então lança mais uma pergunta na roda:

— Tem como a gente saber a hora?

— Não tão por exato, mas o problema mesmo é que também envolve a localização. Sabe aquelas situações em que a previsão fala que vai chover e aí não chove? Na verdade, chove, só que em outros pontos da cidade. Não dá pra ser preciso nesse nível ainda. Fora que tem lugar que nem chove, mas tem trovoadas.

Essa é explicação que mais ou menos tem nos guiado nos últimos anos. Mesmo com todos os seus estudos e envolvimento na área, o fenômeno das chuvas e trovões é algo muito independente para se interferir, controlar ou mesmo antever. A ciência já conseguiu avançar bastante em tecer previsões e preparos sobre o tempo e o clima, mas nesse nível, de atender a minha fobia, ainda não. Me sinto um pouco fora do ar com isso.

— Então é isso? Vou ter que ficar em casa?

— Se é o que você quer, nós ficamos.

Sei que Murilo está procurando uma solução mais viável pra mim, mas o viável não é exatamente o que eu tinha em mente. Quer dizer, meus planos outra e outra vez interrompidos. Por essa droga de fobia que carrego em mim. Apenas cansada dela.

Quando me solto de mamãe para me enrolar em mim mesma, como um pequeno casulo, e me desviar dos olhares dos dois, mamãe não deixa de ficar perto. Inclusive, preenche o vácuo de respostas.

— Diz alguma coisa, filha. Diz o que está pensando.

— Eu... Eu só queria passar a virada com as famílias. Com a Dani e a banda. Sem crises ou...

Murilo já tendo finalizado com as louças, senta de frente para mim, penoso.

— Eu sei que sim, mana. Eu não queria ter que te tirar isso.

— Bem, não é você quem está tirando.

— Sinto muito.

Inevitavelmente, meus olhos se enchem, mas engulo o choro. Sinto o carinho de mamãe aos meus cabelos e costas e tento manter algum equilíbrio entre o que há dentro de mim e fora de mim. Assim que fungo, o braço de Murilo atravessa a mesa para alcançar a mão minha que segura as pernas dobradas ao alto.

— Só quero que tenha uma passagem de ano mais tranquila, sem crises... Ou ao menos não tão intensas e em lugares que você se sinta bem e confortável. E não é como se você não fosse ver mais ninguém... ou a banda. Teremos outras oportunidades.

— Eu sei. Eu só queria... Não ser assim.

— Algumas coisas não estão no nosso controle de ter ou ser... Mas podemos mudar essa relação. Apenas não lutar contra.

— Tá dizendo que eu t...?

— Não tô dizendo isso, mana. Tô dizendo que há maneiras melhores de se ajudar. De buscar ajuda. Para que situações como essa não sejam mais... tão dolorosas.

— Terapia.

Falo com a cabeça no vão entre minhas pernas e mesmo que minha voz tenha saído abafada, sei que eles me ouviram. E me ouviram num estado chorosa.

— Isso. O que não quer dizer que seja para amanhã ou depois. Apenas para pensar com mais afinco... sobre essas situações. Sobre como ter experiências melhores. Que é possível. Considerar que... Apenas considerar essa possibilidade, ok? Enquanto isso, vamos fazer o que dá fazer pra você ter um final de ano mais sossegado. Amanhã e depois e... e a virada.

Para não me estender nisso, volto para a questão da grande noite que é a passagem de ano novo. Sei que soo birrenta e irracional, mas nesse instante não me importo.

— Eu não quero atrapalhar ninguém.

— Não vai nos atrapalhar.

— Vou sim. Mamãe mesmo disse ainda pouco que iria pro jantar na casa da Lis se eu fosse. Isso quer dizer que o Vini também iria. Nesse ritmo, todos iriam para lá e aí vai dar trabalho pra Lis, vai dar prejuízo na pizzaria, porque eu já fiz a reserva e é pra um grupo grande, e tudo vai...

— Não é curioso que você está pensando em todo mundo e todo mundo só está pensando em você? No seu bem-estar?

Mamãe me pega com essa.

— Estamos lidando com o incerto aqui, não é?

Assinto para ela, sem muita vontade.

— Não precisamos tomar uma decisão agora. Vamos ver primeiro como serão as coisas no fim de semana.

— É, mas para onde eu tiver que ir, não quero que seja uma surpresa ou que atrapalhe a organização da pessoa. Não poderia aparecer na casa da Lis do nada com mais... cinco pessoas. Ou bagunçar o sh...

Murilo me interrompe:

— Ainda podemos ficar em casa e não interromper nada. Podemos ver um filme. Ou uma série. Compro pizza e sorvete. E fones grandes de ouvido – como nunca pensei nisso?

Ele divaga um pouco ao final para então se voltar para mim.

— Não vai ser nada triste, se é o que tá pensando. A gente vai se divertir, zoar, até mesmo cantar se você quiser. E tem tempo pra ver as famílias. E a Lia super me libera. Assim como vamos respeitar os ouvidos sensíveis dessa pequena para os fogos de artifício, vamos respeitar seu tempo e espaço, onde quer que seja. Tudo bem?

Assinto, passando a costa da mão aos olhos marejados. Mamãe aproveita para puxar mais de sua cadeira para perto e deitar sua cabeça ao meu ombro, para manter mais de seu carinho em mim.

Murilo, por outro lado, continua.

— Sobre a chuva e as trovoadas de amanhã... Vão ser apenas no fim da noite. Mas pode ser que comecem um pouco mais cedo, por volta das 8 ou 10 da noite. O domingo é uma certeza de que vai ser chuvoso e a segunda também.

— Então também vou perder o almoço de domingo?

— Talvez sim, talvez não. Vai depender de como vai estar o tempo pela manhã. Mas no caso, teria que ficar num dos quartos da casa do seu Júlio. Ou no escritório dele. Todo mundo vai entender, Lena.

— É, filha. Você pode ficar um tempo fora e depois voltar como se nada tivesse acontecido. Se assim preferir. Prometo que vou dar seu espaço e respeitar seu momento sem ficar toda preocupada. Apenas confiante de que você vai passar por isso e bem. Com os tais joguinhos e tudo mais. O autorama do Vinícius ainda está lá, não está?

Não me parece um plano tão ruim.

Termino concordando com eles, sabendo que não há muito a se fazer quanto a isso e que as opções são pra me ajudar, mesmo que eu me sinta impotente e confusa a respeito delas.

— Vou pensar sobre isso. Sobre tudo isso. Então já tá liberado pra ir dormir, Mu.

Me mexo para poder me levantar e me retirar. O tom penoso de meu irmão, no entanto, faz uma nova tentativa de... tentar.

— Juro que gostaria de poder fazer algo mais, mana.

— Eu sei. Mas não depende de você.

Talvez dependa de fato de mim.

~;~

— Posso ficar um tempinho aqui?

Voltava eu do banheiro após escovar os dentes para deitar quando encontro mamãe sentada na ponta de minha cama.

— Sem problemas.

Ajusto ventilador para nosso lado, depois o travesseiro e o lençol para já deitar. Mamãe me acompanha e fico hesitante de ouvir o que vai dizer sobre essa situação toda. Eu sei que eu permiti isso a ela e que é um passo e tanto, porém, tô tão consternada pelo banho de água fria (e trovejada) da vez que tenho certo receio de ser maldosa, raivosa ou coisa pior.

— Não se preocupe, filhota, não vou falar nada sobre nossa conversa com teu irmão. Na verdade, quero falar outra coisa.

Sentada no meio da cama, isso me chama atenção. Mamãe fica de frente pra mim.

— É só que... gostaria de te agradecer. Agradecer por me lembrar de quem eu sou.

— Acho que não tô entendendo.

— Você estava certa... Sobre eu não mais aproveitar meu tempo. Quando Djane me ligou hoje, por exemplo, para darmos um passeio amanhã de tarde, sabe a primeira coisa que pensei? Que vou sentir falta de uma amiga assim quando eu voltar. Que vou sentir falta de passear assim. Mas a falta de uma amiga vai ser um tantão maior.

— Awn, mãe.

— Triste, né? Acabei pensando também sobre como não me lembro da última vez que fiz algo apenas para mim. É sempre ou a escola, a loja, a casa, seus avós, seu pai, meus filhos, mesmo com vocês tão longe. E eu não lembro a última vez que vi um filme completo, completinho. Ou que fui ao cinema. Ou que saí pra jantar que não fosse uma das grandes datas comemorativas. Não lembro de ter de fato uma amiga, porque acabei me distanciando até mesmo das amizades. Hoje, aliás, você foi mais do que minha filha. Foi minha amiga.

— Fui?

Ela passa uma mecha minha por trás de minha orelha direita e me acarinha a testa.

— Com certeza, querida! Pode ter sido apenas alguns episódios, mas me apeguei tanto aos personagens e suas histórias que poderia cuidar de todos se fosse possível. Menos do Dawson, claro. Ele é bem chatinho mesmo. Mas o que falo é que me envolvi e também pudemos conversar simplesmente, falar sobre a vida. Pude ser ouvida. E passar horas apenas de bobeira assistindo uma série na televisão me fez um bem danado. Algo que eu não fazia há muito tempo mesmo.

— Fico feliz pela senhora. De ter tido esse momento de descanso pessoal e... iluminação, acho.

Embora fosse a hora de dormir, a conversa me faz sentar mais ereta no colchão.

— Acho que foi bem isso mesmo, um descanso pessoal. Hoje fui a Helena. Não a mãe terna, a nora organizada, a esposa, atendente ou gestora. Só Helena, expressando seus pensamentos – mesmo que falando sobre tudo e todos. Conversei com seu pai sobre isso também. E descobri que você, mocinha, operou um milagre.

Ela aponta o dedo indicador para mim, enquanto o gira como se fosse fazer uma mágica.

— Eu?!

— Quem agora está cuidando da casa é seu pai. Das roupas e peças de cama, mesa E banho. Achei um pouco estranho ele ter falado isso no outro dia, pensei até que era brincadeira, mas seu avô me confirmou. Está mais atento à dispensa e às compras da casa. Parece até que tem lavado a louça e guardado tudo. Consegue imaginar?

Eu tento e no que tento, penso que esteja fazendo de uma maneira desastrosa e engraçada, porém, é um começo. Ninguém acerta da primeira vez mesmo. E há dias e dias. Fico contente por ele ter me ouvido.

— E ele me disse que isso não vai acabar quando eu voltar. Que, na verdade, quer contribuir mais e se desculpou por não ter feito nada disso em anos. E que isso veio de uma conversa sua com ele. Até mesmo brincou que “se o Vinícius faz, ele também é capaz”.

Fico boquiaberta de tão inesperado que tudo isso é. Mamãe sorri diante da minha reação e se aproxima mais no colchão, de modo que ficamos quase grudadas. Recebo mais de seus mimos em meus braços e mãos. Ela estava mesmo tentando levantar minha moral.

— Você fez mudanças acontecerem, querida. E eu sei que não só comigo ou com seu pai ou com seu irmão. Sei que muitas das mudanças naquela casa— na verdade, nas duas famílias e casas – foi por algo que você fez. Que não hesitou em ajudar. Mesmo que fosse só para acompanhar ou ouvir. Você faz isso com as pessoas. Você simplesmente faz.

Rio um riso curto apenas para mim, querendo fugir dessa parte e de seu olhar, e ao mesmo tempo me forçando a estar presente, porque prometi a mim mesma não mais desviar assim, de qualquer crédito, atenção ou elogio.

— Eu amo isso em você, sabia?

— Acho que sim.

— Sabe sim e digo quantas vezes for preciso. Mas me faz perguntar também por que não faz tanto para si mesma. Não quero tocar nesse ponto, se isso você prometeu pensar a respeito e não quero apressar nada. Só não deixo de pensar que já estive, de certa forma, nesse lugar. Fiz muito por todo mundo e esqueci de mim. Até uma pessoinha linda me lembrar. Não quero abusar da abertura que tu me deste, Milena, mas se eu também puder ser essa pessoinha linda pra te lembrar de fazer as coisas por si e para si, vou ser. Gostaria de ser. Posso ser?

Recebo seu carinho em palavras, gestos e toque com os olhos marejados outra vez. Marejam mais quando mamãe me pega pelo queixo para ficarmos face a face.

— Você pode tudo, querida. E pode pedir ajuda também. Pode descobrir muito mais sobre si mesma. Pode ter de volta seu shampoo de chiclete se isso faz parte da tua individualidade e pode deixar o de leite condensado comigo, que é da minha individualidade. Consigo ver isso agora. Consigo ver cada vez mais o quanto é uma mulher completa. Só tem de olhar mais para si mesma.

Abraço ela com tudo, fungando e marejando, e deixando meu rosto ser molhado em sua presença.

— Obri-igada, mãe.

Ela se solta de mim para me dar mais um beijo na testa neste dia. Termina por passar a mão em minhas bochechas para colher as lágrimas que me escapuliram.

— E muito obrigada você por ser essa pessoa maravilhosa, querida. Sei que contribuí para isso, mas foi você quem fez as escolhas finais. E sei que sempre seguiu um bom coração. Mesmo que fosse pra aprontar com seu irmão.

Como não enternecer depois dessa, como?

— Te amo, mãe.

— Te amo, querida.