Se não fosse o artigo da disciplina de Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável que vinha trabalhando – e tirando leite de pedra – há semanas, eu nem pisaria na faculdade. Eu ainda estava tão agastada que nem o Murilo queria que eu fosse pra aula. Mas precisava entregar isso em mãos, exigência da professora. Ela não aceitaria se eu tivesse enviado pelo Sávio, por exemplo.

Então o plano é que o Murilo me deixasse na aula e eu teria que aguentar só dois horários. Era o tempo que meu mano iria no trabalho para resolver uns pepinos. Eu não ficaria mais do que isso também porque não queria topar com Max ou Djane.

Murilo me buscou na empresa e de lá fomos para o Center, para matar tempo. Meu mano vinha insistindo esses últimos dias para que eu reforçasse minha alimentação, que eu aparentava estar bem mal. Ele disse isso de um modo tão cuidadoso que até me surpreendi. Mas não havia muita energia em mim para corresponder. Como o Vini no dia anterior, ele estava me dando espaço e respeitando silêncios. Eu estava usando todas as forças para cumprir só o mínimo do mínimo mesmo.

Isso tudo, de alguma maneira, me aliviou bastante. Me sinto mais solta, mais livre.

Como tem um supermercado lá, aproveitamos para fazer algumas compras. Fiz de tudo para que isso demorasse o tempo para que a aula começasse e as pessoas já estivessem em sala quando eu entrasse – e, claro, tempo o suficiente para que a professora me deixasse passar. Quanto menos interação pra mim, melhor.

Estava contando minutos para ir embora quando recebo uma mensagem do Murilo dizendo que ia ver o chefe e ele tentaria ao máximo não demorar. Preferiu me avisar. Me senti um pouco presa à situação, porém, era o que tinha para o momento. Esperar.

Assim que a professora Amália libera a turma, tenho o ímpeto de correr dali. Mas como tinha que esperar meu mano, vou à passos de lesma pelo corredor, tentando não ficar autoconsciente das coisas novamente. As memórias vinham e agora eu as bloqueava de tal maneira para não sentir mais do que estava sentindo.

Enquanto as pessoas seguiam rumo pela rampa, para ir à cantina, eu sigo pelas escadas, para alcançar as catracas e esperar Murilo na portaria. No último degrau, que lembro de ir na secretaria, alguém me chama.

— Ah. Oi, Sávio.

— Você já vai embora?

— É, vou sim. Vou ficar na portaria e esperar pelo meu irmão. Até tenho que ir na secretaria, mas acho que resolvo na segunda. Eu... Não tô me muito legal hoje.

Acho que falo mais do que nos últimos dois dias desde o ocorrido e isso também me surpreende. Talvez pela não sobrecarga e qualquer obrigação. O território com o Sávio é neutro. Pelo menos até então. Eu poderia lhe dar qualquer desculpa também.

— Ah. A Iara falou algo sobre isso.

As notícias correm, claro.

— Só posso agradecer que amanhã é sábado e... esquecer da vida.

Sávio percebe que eu falo de uma maneira bem cansada e acho que é isso que o faz permanecer.

— Então... O Murilo vem te buscar?

— É. Acho que ele vai demorar um pouquinho, mas não tem problema. Eu espero.

— Eu posso te levar, se for o caso.

— E perder aula? Melhor não.

Se é pra ser irresponsável, que eu seja a única, mas o Sávio acha que dá pra jogar uma historinha pra mim.

— Eu já tava saindo mesmo.

— Sem levar nada? Sei.

Posso estar lenta, mas não estou tão idiota assim.

— Tá, você me pegou. É que... bem, você parece que... Parece que precisa de um amigo. E quando eu precisei, você esteve por mim. E te vendo assim, independente do que seja, não consigo não fazer nada.

Seus amigos são os melhores quando se trata de você.

— É, você me pegou. Obrigada, Sávio.

Digo, sem muita vontade, porém, realmente agradecida e afetada por essa atenção.

— Isso seria um “sim”?

Suspiro, cansada e desanimada.

— Isso é “talvez esteja pensando no caso”.

Porque não sei se aguentaria mais uma dose de hiper vigilância pra cima de mim, com meu mano catando pistas. Não que Sávio também não esteja disposto a fazer isso, mas ele não sabe de nada e sua abordagem é mais leve, de modo que eu poderia mesmo passar qualquer história para ele.

Chega outra mensagem do Murilo, desta vez avisando e se desculpando pelo atraso. Respondo com “consegui uma carona”. Ele envia logo em seguida uma dizendo “Ótimo! Me avisa quando chegar em casa”.

Guardo o celular na mochila e me entrego, ao passo que Sávio se anima:

— Então... você está de moto?

— Tô de carro. Meu tio roubou minha moto.

Rio um pouco, porque ele fala de um jeito engraçado.

Acho que é uma boa coisa reagir. Acho.

— Te espero na portaria da frente ou de trás?

— Me espera aqui mesmo. Volto em dois segundos.

~;~

Alter Bridge – Down To My Last

No minuto que Sávio liga o carro, um som relativamente alto domina o espaço e ele se apressa para baixar o volume. A música era algo bem a cara dele, chegado para o hard rock e metal. Mas me surpreendo mais pelas alturas.

— Quem é você e o você que fez com meu amigo?

No mesmo segundo que digo “meu amigo”, as palavras soam esquisitas e meu pensamento dá um looping de insegurança, me perguntando se eu estaria ok e assegurada ao lado de Sávio. Quer dizer, ele não faria nada, faria? Ele não tentaria invadir meus pensamentos, iria? Não, não iria – me respondo.

— Como assim?

Esclareço a ele a questão, respirando e mais descontraída, para que não perceba o quanto estou perturbada das ideias. Se bem que estamos aqui porque ele percebeu que eu preciso de algum apoio.

— Nada espalhafatoso... você.

Capturo um sorrisinho seu enquanto puxa o cinto de segurança e acordo pra vida pra puxar o meu também. Mas enquanto Sávio manobra o carro, ele ainda finge que não é com ele. A música ainda continuava ali, em um tom bem baixinho. Eu não saberia dizer que banda era, mas só o trecho que ouvi ativou algo dentro de mim. Algo que eu parecia precisar. Precisar de mais daquilo.

Por isso aperto no botão de voltar ao início e mexo no volume, não tão alto, mas também nada silencioso. Sei lá, deu apenas vontade de ouvir algo assim. Sávio troca um olhar comigo, surpreso. Explico:

— Acho que ouvir uma coisa diferente vá me ajudar a dispersar mais. Se não for incômodo.

— De modo algum. Gosto bastante dessa.

Confesso que não prestava atenção na letra, só na batida e seu ritmo progressivo. Queria poder saber cantá-la. Me parecia libertadora. Algum drama para ser vomitado.

Ficamos parados em uma fila para atravessar a avenida. De algum modo, não quero mais silêncios, quero preencher o silêncio. Quer dizer, o tempo.

Busco na mente um tópico aleatório e válido para puxar.

— E aquela camisa do Bruno?

Atento ao trânsito parado, Sávio se mantém olhando para a avenida.

— Não é essa banda.

— Falo da camisa chamativa.

— Ah! Vai indo bem, acho, dentro do guarda-roupa.

Mais uma vez ele ri um pequeno riso, quieto e gracioso, à sua maneira. Gosto de como ele fica relaxado perto de mim. Gosto também de como hoje consigo ficar relaxada e estar relaxada perto dele. Será que daqui pra frente me perguntarei sempre se posso me confiar assim, relaxada, perto de outras pessoas?

— E, acredite ou não, eu gostei.

— Acho que precisamos sair da nossa zona de conforto de vez em quando, né?

— Sim. Precisamos.

Nessa hora veio um solo de guitarra e eu aumentei o volume bruscamente. Ele me fazia sentir tudo e nada ao mesmo tempo e de alguma forma eu queria morar nele. Fecho até os olhos para sentir com mais intensidade, me deixando levar. Parecia a batida perfeita para a confusão que sentia bombear por dentro. Na meia luz da avenida, no carro fechado e ar-con ligado, eu queria ouvir aquilo em repeat. Balanço a cabeça seguindo a parte final.

Ao retomar o refrão, ouço um trecho que fala “I’m blind” e é isto, estou cega pra qualquer coisa mais neste momento. Esse som parece evidenciar o quanto presa estou me sentindo e o quanto quero bradar as coisas. Como faria? Onde faria? Em casa não.

Não quero ir pra casa e me martirizar, por mais cansaço que sinta.

Talvez... outro lugar? Me vem essa ideia, bem melhor, quando vejo que somos os próximos no sinal. Baixo o volume para poder fazer um pedido. Era a companhia certa para isso.

— E se a gente... mudasse o caminho um pouquinho?

— Você quem manda. Qual o caminho?

— Só segue em frente, não atravessa a avenida.

Ele assente e manobra o carro para sair da pista de quem iria virar para a avenida. Nesse ponto uma nova música começa e eu reconheço esse início, mas não sei dizer que música é. Pelo menos não até vir os primeiros versos.

E quando vem, resume tudo: It's easier to run, replacing this pain with something numb, it's so much easier to go than face all this pain here all alone (É mais fácil fugir, substituir essa dor por algo dormente, é muito mais fácil ir do que encarar essa dor aqui sozinho).

Obrigada, Linkin Park.

~;~

Linkin Park - Easier To Run

Again?

Pergunto, com o dedo no botão para recomeçar a música Easier To Run, do Linkin Park. Conforme ela tocou pela primeira vez, eu acabei entrando junto na voz. Cantei a parte do Chester. Para minha surpresa, o Sávio cantou a parte do Mike. Poisé, ele cantou. De verdade. Sabia a letra bem melhor do que eu mesma lembrava.

Não sei dizer bem se já cantei perto dele assim, mas com certeza ele nunca cantou perto de mim assim. Só quando eu o pegava cantando sozinho de fone, às vezes, na faculdade. A voz dele não era nada mal, mas ele sempre foi envergonhado de mostrar a qualquer pessoa. Ele ter seguido na cantoria comigo significou muito. Ter cantado, ter matado aula, ter se disponibilizado. Eu sei que meu irmão e meu namorado fariam qualquer coisa por mim, mas no momento não quero cuidados, nem julgamentos.

Eu só quero... Bem, quero de novo me derramar na música, exasperar o que tanto tem se embolado dentro de mim e aproveitar este escape que encontrei. É como vomitar meu drama pessoal enquanto vivo o drama de outra pessoa. Como Britney já foi pra mim e como Avril foi no outro dia. Um espaço de expressão.

— Você quem manda.

Pego o celular na bolsa só para buscar a letra e então, respiro pra começar:

— It's easier to run, replacing this pain with something numb, it's so much easier to go than face all this pain here all alone. (É mais fácil fugir, substituir essa dor por algo dormente, é muito mais fácil ir do que encarar essa dor aqui sozinho))

Confiro a letra na tela e continuo, decifrando eu mesma os versos e significados e como tudo descrevia a mim, ao segredo e ressentimentos:

— Something has been taken from deep inside of me, the secret I've kept locked away, no one can ever see. Wounds so deep they never show, they never go away. Like moving pictures in my head, for years and years they've played. (Algo parece ter sido tomado de dentro de mim, um segredo que mantive trancado, que ninguém conseguia ver. Feridas tão profundas nunca ficam à mostra, nunca vão embora. São como figuras se mexendo na minha cabeça, por anos e anos ali passando).

Sávio entrou logo em seguida, não cantando com tanta expressividade como na primeira vez, por conta de estar atravessando um grande cruzamento, mas como estou lendo a letra, vou seguindo, reinterpretando e me encontrando ali.

If I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made, I would, if I could stand up and take the blame, I would, if I could take all the shame to the grave, I would, if I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made, I would, if I could stand up and take the blame, I would, I would take all my shame to the grave. (Se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, eu traria, refazer cada passo errado que eu dei, eu refaria, se eu pudesse ficar de pé e levar toda a culpa, eu ficaria, se eu pudesse levar toda a vergonha para o túmulo, eu levaria, se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, traria, refazer cada passo errado que eu dei, eu refaria, se eu pudesse ficar de pé e levar toda a culpa, eu ficaria, se eu pudesse levar toda a vergonha para o túmulo).

Retomo o refrão, também com menos furor, porque peças estão se encaixando.

It's easier to run, replacing this pain with something numb, it's so much easier to go than face all this pain here all alone. (É mais fácil fugir, substituir essa dor por algo dormente, é muito mais fácil ir do que encarar essa dor aqui sozinho).

E então o próximo trecho, que me arrebata com grandes verdades e vontades.

— Sometimes I remember the darkness of my past, bringing back these memories, I wish I didn't have, sometimes I think of letting go and never looking back. And never moving forward, so there'd never be a past. (Às vezes me lembro da escuridão do meu passado, trazendo de volta essas memórias que eu nem queria ter; às vezes penso em deixar ir e nunca voltar a olhar para trás, e nunca ter seguido adiante, para que nunca ter esse passado).

Sinto um aperto pelas minhas memórias, o meu passado e o meu presente. E lá estava ao meu lado Sávio me dizendo que se pudesse mudar tudo, ele mudaria. Se pudesse tomar toda a culpa para si, ele tomaria. Se ele pudesse tomar toda a dor, ele tomaria. Do seu jeito. Do jeito que a música desenhava.

If I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made, I would, if I could stand up and take the blame, I would, if I could take all the shame to the grave, I would, if I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made, I would, if I could stand up and take the blame, I would, I would take all my shame to the grave. (Se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, eu traria, refazer cada passo errado que eu dei, eu refaria, se eu pudesse ficar de pé e levar toda a culpa, eu ficaria, se eu pudesse levar toda a vergonha para o túmulo, eu levaria, se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, traria, refazer cada passo errado que eu dei, eu refaria, se eu pudesse ficar de pé e levar toda a culpa, eu ficaria, se eu pudesse levar toda a vergonha para o túmulo).

Então explodo de novo, como o Chester explode, se sentindo desemparado e em plena fuga, como eu estou.

Just washing it aside, all of the helplessness inside pretending I don't feel misplaced, it's so much simpler than change. (Apenas deixando de lado todo o meu desamparo interior, fingindo que não me sinto fora do lugar; é muito mais simples do que mudar).

A emoção acaba se elevando ainda mais, envolvendo-me e, agora de peito aberto, expurgando de todas as coisas que estavam tão embaralhadas e agora tão mais claras.

— It's easier to run, replacing this pain with something numb... It's so much easier to go, than face all this pain here all alone… It's easier to run. (É mais fácil fugir, substituir essa dor por algo dormente, é muito mais fácil ir do que encarar essa dor aqui sozinho... É mais fácil fugir).

If I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made. (Se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, eu traria, refazer cada passo errado que eu dei).

— It's easier to goooooo. (É mais fácil ir)

— If I could change, I would, take back the pain, I would, retrace every wrong move that I made, I would. If I could stand up and take the blame, I would, I would take all my shame to the grave. (Se eu pudesse mudar, eu mudaria, trazer de volta a dor, eu traria, refazer cada passo errado que eu dei, eu refaria, se eu pudesse ficar de pé e levar toda a culpa, eu ficaria, se eu pudesse levar toda a vergonha para o túmulo).

Caio de volta ao banco com o encerramento da música e de repente me sinto exausta. Isso chama a atenção de meu amigo.

— Você tá legal?

— Tô. Eu só... Tava precisando disso. Obrigada.

Staind – Falling

Uma nova música metaleira começa e com alguma banda que não conheço. Isso me desliga um pouco do que foi revolver as coisas com Linkin Park e me acorda para ver que já estávamos descendo uma das avenidas da praia. Pelo horário, o trânsito estava mais livre e os barzinhos lotados de happy hour.

A avenida também estava toda enfeitada para o fim de ano e isso me faz sentir um pouco deslocada no meio de tanta coisa. O Natal já estava bem aí e onde eu estava? No meio de um furacão. Girando. Sequer via o chão, sequer via o fim, só os problemas me tomando inteira.

Sávio vai até o final da praia e então vira para o outro lado da pista. Acho que entendeu que eu queria prolongar essa pequena fuga ao máximo. Embalada pelo som pesado, apenas fico a observar a orla, as pessoas, os barzinhos, o agito de uma sexta à noite. Toca outra música que não conheço e me perco nessa trilha.

Quando ele diminui a velocidade, para dar espaço a um carro que estava de saída do estacionamento, digo de supetão:

— Que tal estacionar um pouquinho?

— Tudo bem.

Seguro a barra do meu vestido quando desço e deixo minhas coisas para trás. Só deu tempo de amarrar meu cabelo, praticamente, para não voar. O vento fresco e forte, com o som leve das ondas ao fundo, me abraça de pronto. Parecem me chamar. Então vou. Sigo para um dos bares da avenida, numa mesa ao ar livre, e Sávio me acompanha. Sento e fico quieta. Um pouco de calmaria depois de tanto agito.

Só percebo que estou de olhos fechados ao tê-los de abrir quando um garçom se materializa a nossa mesa. Antes que o Sávio dissesse que não queria nada, eu emendo:

— Traz uma cerveja. Uma latinha.

— E para o senhor?

O garçom se vira com a comanda na mão para meu amigo perplexo. De todas as bebidas que um dia eu tomei nunca fui eu quem pedi. Acho que nunca pedi mesmo uma cerveja em qualquer lugar. Nem eu compreendo o que tô fazendo. Só tô fazendo.

Aliás, já tinha tido uma conversa bem desgastante com o Sávio sobre bebidas. Isso foi no fatídico dia que ele me beijou. Lembro vagamente de nossa conversa, eu muito puta porque estava presa com ele bêbado no meio do nada, numa cidade desconhecida, ele muito apático e agoniado pelas tramoias de André, perturbando nossa viagem. Eram tempos tão loucos como este.

Mas lembro de uma coisa que ele me disse na época. Eu reclamei que ele talvez tivesse tomado coisas demais e ele respondeu com um “talvez tivesse razões para tomar”. Lembro ainda de um de seus vacilos, quando disse que achava que eu não bebia porque tinha medo de revelar meus verdadeiros pensamentos e deixar à mostra minhas frustrações. Aparentemente, não mais. E tinha minhas razões pra tomar.

— Um suco de acerola apenas.

Antes que o garçom saísse, ele acrescenta:

— E uma porção pequena de batatas.

E assim que o outro sai, me diz:

— Tem certeza, Milena? Cerveja? Você não gosta de cerveja.

— Também não tô gostando muito da minha vida agora.

— Mas... Uma bebida não vai melhorar.

— Não vai. Mas preciso fazer algo diferente. Mesmo que seja um erro.

— Ainda dá tempo de cancelar e...

O garçom retorna, estourando a latinha na nossa frente e despejando num copo. No minuto que ele sai, que Sávio nem consegue reagir, eu viro o copo inteirinho numa golada só. Estava bem gelada e com um gosto amargo pra caramba. Quase me dá ânsia de pôr para fora, mas me forço a prender a respiração e fazer descer direitinho. Assistindo isso, Sávio pega a latinha para deixar bem longe de mim. Com o gosto ruim que fica na minha boca, nem sei se quero mais algum gole.

— Só converse um pouco comigo, Milena.

— Acho que não é momento pra conversa.

Falo, ainda com uma mão na boca, porque me bate um enjoo pesado.

— É momento pra encher a cara?

— Dá pra encher a cara com uma latinha?!

Sei que estou fazendo pouco caso, mas no momento não há energia em mim para me importar.

— Eu não te trouxe aqui pra isso. E você não é assim.

— Eu não sou assim. Mas também tô cansada de ser como sou.

— De ser o quê? Uma boa pessoa?

— De ser uma pessoa que... Que está cansada de ser invadida por pessoas.

— O que tá acontecendo, Milena? Me conta.

— Só o de sempre.

Dou de ombros. Ele, por outro lado, persiste.

— Foi o Max?

Cruzo os braços e desvio o olhar. Sávio suspira, incomodado.

— Olha pra mim e me diz se foi o Max.

O garçom ressurge com o pedido dele, uma porção pequena de batata frita e o suco de acerola. Ele estava dirigindo, não poderia beber nada além disso. Aproveito então sua distração com o garçom: dou um pequeno salto para pegar minha latinha de volta e entorná-la ali mesmo sem precisar de um copo. Eu definitivamente não tava facilitando pra ele. O desagrado estava estampado em sua cara, bem desgostoso e talvez até arrependido de ter aceitado meu desvio de caminho.

Meu amigo tinha razão. A bebida não iria melhorar em nada. Remexo a latinha na mão, com mais alguns goles. Reavivar esse gosto ruim na boca me deixa mais enjoada e miserável e sinto que não vou passar dessa dose. No entanto, ainda me sentia na necessidade de algo forte. E isso não era bom.

Sávio arrasta a porção de batata na mesa pra mim, aborrecido e preocupado.

— Ao menos come alguma coisa.

Ele bem sabia que eu estava de barriga vazia. Não sentia fome, mas pra não ser tão imprudente assim, aceito. Como algumas batatas. E por um bom tempo ficamos quietos. Ele tomou rápido o suco e ficou só esperando. Mexia na sua chave do carro ao colo sem me dignar um mísero olhar. Mesmo impaciente. E impotente.

Acho que era sua maneira de me punir por não falar nada.

— Sávio.

— Hum.

— Desculpa por estragar sua noite.

— Hum.

— E por te fazer matar aula por mim.

— Tá.

— Olha pra mim.

Ele desvia o olhar, como fiz anteriormente, voltando-se para o bar ao lado.

— Não foi o Max, tá? Foi o Gui. Foi o Gui e a Flávia. E agora eu tenho que falar essa merda todinha pro Max.

~;~

Assim que coloco os pés em casa, Murilo salta do sofá.

— Até que enfim! Onde tu tava? Sabe quantas vezes te liguei?

— Eu... Só dei uma volta.

— Com quem?

— Murilo, sério isso?

Meu irmão bufa um pouquinho e se atenta para um cuidado extra com as palavras.

— Você não me avisou, só isso. Tô te esperando faz um tempão e...

De repente ele para quando passo perto dele. E aí sua expressão muda, para uma desconfiada que não gosto tanto assim. Me pergunto o que deu nele. Tava tão cuidadoso antes de sair de casa, agora... sei lá. Mas quando me lança uma questão, petrifico.

— Você... você bebeu?

— O q...?

— Eu tô sentindo cheiro de bebida, Milena.

Murilo chega bem próximo de mim e respira, pra confirmar. Naquela hora que entornei de vez a latinha, pingou no meu vestido, nada demais, mas o suficiente para deixar um odor ruim ao meu redor.

— C-cigarro também?

— O quê? Foi só uma cerveja! Eu NUNCA que ia fumar! Deus me livre!

— Hum. Eu estava jogando um verde e colhi bem maduro, não é?

Fico sem ter o que lhe dizer. Então aceito que ele me pegou.

— E daí? E daí se bebi? Eu não tava dirigindo e eu nem sei dirigir. Não é como se...

Não consigo terminar a frase porque ela não deve ser finalizada. Fui imprudente? Fui. Era isso mesmo que queria. Porque era isso ou chorar mais uma perda. E eu já chorei o bastante por dois dias inteiros. Mas só de pensar nisso, de olhar pro meu mano decepcionado e lembrar de como o Sávio ficou também, as lágrimas voltam para meus olhos. Aperto os lábios para que não tremam e nem me entreguem mais do que já entreguei. Eu não era a errada aqui, afinal. Eu... eu era mais uma vez uma vítima.

Murilo passa aperta a ponte do nariz e depois passa as duas mãos ao rosto. Por fim, diz:

— Você comeu alguma coisa?

— Só... umas batatas.

— Então vou esquentar seu jantar.

Ele vira para a cozinha e eu fico sem compreender o que tá acontecendo. Tá que eu não era de beber, nem nada, e não tinha comido muita coisa, mas não era pra estar alta, né? Quer dizer, eu não me sentia alta. Só... miserável. E querendo enfiar mais hard rock nos meus tímpanos, algo mais seguro para me refugiar. Até peguei o pen-drive do Sávio emprestado – pra não dizer “roubado”.

Mas fico balançada por ver que meu mano, que se mostrou enervado num primeiro minuto, estava muito quieto. Dou uns passos para a cozinha e o encontro mexendo em algo na geladeira e depois no micro-ondas.

— Mu?

— Comprei lasanha. Fiz um pouco de arroz também.

Olho o relógio da sala, marca 22h35. Que horas ele deve ter chegado?

Observo ele fazer meu prato, atencioso e zeloso e não sei o que pensar. Só deixo minhas coisas no quarto e dou uma passada no banheiro, para lavar as mãos e o rosto. Quando volto à cozinha, ele está calado e sentado à mesa, com o prato feito e alguns talheres bem no meio. Sem dizer algo mais, sento e começo a comer.

Só assim que percebo que estava com fome mesmo. Acho que encarava o buraco do meu estômago como apenas tensão. Que agora não fazia sentido algum. Mastigo devagar, saboreando e preenchendo a barriga com algo decente. Era bem melhor do que aquela coisa de gosto ruim que estava me amargando em tudo.

Por mais que Sávio tenha entendido meu pequeno surto de imprudência, ou pelo menos eu ter contado só aquilo do Gui e da Flávia, tenho que considerar que meu irmão ainda tá no escuro. E Vinícius. E Djane. E Max. Pessoas que se importam comigo.

Não necessariamente Max, mas ele na verdade estava atento e cuidando de todo mundo. Era seu dever. Quanto aos outros, não tenho porque não ser justa com eles, mesmo que não tivessem sido comigo. Não foram eles que me traíram, afinal.

— Posso perguntar uma coisa?

Murilo me parece um pouco triste, cabisbaixo e isso faz aquele raio de cerveja dance de um jeito ruim no meu organismo. Ainda me sinto enjoada, é isso. Ainda bem que o Sávio me impediu de fazer mais besteira.

Por fim, só balanço a cabeça, com a boca um pouco cheia. Murilo, que estava com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça nas mãos cruzadas ao alto, começa:

— É por que você acha... Acha que eu vou despertar como uma fera?

— O qu...? Não! NÃO! Do que você tá falando?

Falo de boca cheia mesmo porque não daria tempo de mastigar. Mas repito a pergunta porque eu realmente não tô entendendo e a cara impassível do meu irmão só me diz que tem coisa mais ruim vindo.

— Do que você tá falando, Murilo?

— Isso vai acontecer mais vezes? Eu tenho que esperar por isso mais vezes?

Ele aponta para a porta e entendo que fala sobre eu dar um perdido.

— Eu nunca mais vou beber, tá?

Eu sei que papo de pinguço sobre não beber de novo não é confiável, mas porra, eu não era nenhuma pinguça, nunca tive histórico de bebida e não era agora que iria começar. Porque, sinceramente, não quero nunca mais esse enjoo bizarro!

Murilo permanece incomodado e com uma calma assustadora. Então recomeça:

— Não quero ser injusto, mas você não tá sendo muito justa comigo.

— Eu? O que eu fiz?

— Você acha, não acha? Só me diz, Lena. Só me confirma.

— Achar o quê? Eu preciso de mais informação aqui, Murilo.

Ele suspira e não de um bom jeito.

— Você acha que eu... Acha que eu vou me exceder.

— O q...? Por que tá dizendo isso? É claro que não. Complemente não.

— Então por que ainda não me contou?

— Contar o quê?

Murilo bate na mesa com o punho fechado com certa força que meu prato dá um pequeno salto na superfície.

— Sobre o que te deixou assim, porra! Você aparecer chorando, quase carregada por Djane, e ficar desse jeito, sem vida. E depois sumir. E beber. Você nunca foi de beber. Mesmo que tenha sido uma mísera cerveja. Eu te conheço e eu me conheço. E eu não sei se aguento esperar.

— Mu, não tem nada a ver com você. Eu te juro!

Estou tão chocada que não sei dizer outra coisa. Falo olhando no olho dele, mas parece que nada que eu diga tem real valor nesse momento.

— Então por que não me conta? Porque não consigo imaginar outra razão. E eu tô tentando, Lena. Eu tô realmente tentando. Com terapia e tudo.

Essa é a primeira vez desde que ele voltou que falou em terapia. Não era como um segredo, acho, mas eu não tinha certeza se ele sabia que eu sabia. Porque ouvi a conversa do Vini. E como ele nunca tocou no assunto, eu também não dizia nada. Apenas esperava vir. Veio, mas num momento que... Estava tão centrada em mim e em como processar tudo isso que não vi que também estava atingindo velhos conflitos em meu irmão.

Atravesso a mesa e seguro em suas mãos.

— Eu sei, mano, eu sei de verdade. E não acho isso. Não mais, ok? Olha pra mim e confia em mim.

Murilo me olha, mas vejo sua dor. Lembro que ainda na praia eu disse para o Sávio confiar em mim e ele disse “não confio em você com uma latinha na mão”. Foi a hora que parei de verdade. E vendo que estava causando mais dor, paro com o Murilo também.

Acho que eu só queria fazer como se tudo o que tivesse acontecido não tivesse acontecido. Não queria acreditar que era real. Porque no minuto que vomitasse tudo, estaria ali, pra todo mundo ver. Que se eu ficasse quieta, as coisas não iriam tomar grandes proporções. Que se eu pensasse bem a respeito, eu poderia entender melhor.

Ou só mesmo não sentir. Eu não sei. Eu não sei mais de nada.

Como se reage a um ataque silencioso?

Não era com mais silêncio, eu percebia agora.

Me recolhi de volta a minha cadeira e me preparei para as facadas ao coração que iria sentir novamente.

— É um pouco pesado, Mu. Não é que você não consiga lidar. Eu que não consigo lidar. Não consigo lidar com o fato de que meus melhores amigos armaram... Armaram para tirar informações de mim... Da maneira mais baixa e... invasiva... possível. Não consigo lidar com o fato de que vou ter contar tudo isso ao Max, porque o Gui não foi assaltado, foi um ataque de recado para o pai dele.

Com o aperto de volta ao estômago, passo a mão ao rosto, novamente trêmula, para tirar a lágrima que desce.

— E eu vou ter que contar ao Max que tanto o Gui como a Flávia sabem do esquema na faculdade. Uma coisa que eu jurei, que eu prometi e até barganhei com um policial... de que não vazaria nunca. E eu vazei... sem perceber.

Sem olhar para meu irmão, continuo. Sem olhar para o mundo, continuo. Fecho os olhos e já não me vale enxugar nenhuma lágrima, só deixar que elas corram para baixo.

— E-eu fui enganada, Mu. Fui enganada novamente e por quem se diziam ser meus amigos. Nem sei dizer se ainda são meus amigos. E não sei o que tem de errado comigo para as pessoas fazerem isso, a-assim. Eu sou idiota a esse ponto ou o quê? Dessa vez não tem caderninho nenhum, mas tem... tem e-eu quebrada de novo. E eu só queria viver num mundo onde eu possa confiar nas pessoas. É pedir demais?