Há dias que as coisas estão tão amenas e encontrando seu eixo de novo que a gente mal pode acreditar que os dias bons estão de volta. Dedicada a me manter presente e não ansiosa pelo futuro ou pelas coisas pendentes, aproveito momentos de calmaria para somente estar com as pessoas. Quando Vini me buscou na casa da Flávia, percebi que a gente não tinha feito plano algum e isso era bom. Algo como deixe a vida me levar, vida leva eu, como diz aquele famoso pagode. Ou samba. Não sei.

Como prometido, Vini me passa um trechinho de uma das músicas que ele ouviu da fita de Viviane. Ele gravou no celular um pedaço e agora posso compreender totalmente a reação de todo mundo ao ouvir a Dani cantando.

O timbre. É. MUITO. IGUAL. Me arrepio toda até!

— Caraca! Vocês não estavam exagerando mesmo.

— Exatamente!

Trilha citada/indicada: Beatles – Lucy In The Sky With Diamonds

(1:03)

Era uma música das antigas – Beatles, pelo que Vini me conta. Nunca vi Daniela cantando algo do tipo, mas tenho a completa certeza de que seria desse jeito que ela cantaria. Geralmente cantava músicas mais pop. Se bem que desde que começou a cantar com a banda, tem ampliado seu repertório. No dia que a Filipe a ouviu cantar, foi uma música das antigas, que nem eu conhecia. E era uma música que Viviane costumava cantar.

Em uma de minhas poucas conversas com Filipe sobre Viviane, em que eu deixava minha curiosidade falar mais alto, ele me contou um pouco da trajetória deles e o quanto aquela música – Tomorrow is today, do Billy Joel – significava. O que sei é que Viviane saiu de casa para estudar; seu sonho era ser veterinária. Ela cuidava dos animais na fazenda onde foi criada, mas mesmo assim, os pais não queriam que ela tivesse que ir embora. O pai dela principalmente. E ainda assim Viviane foi em busca de seu sonho.

A questão é que ela tinha pouco dinheiro. Por isso investiu em trabalhar primeiro, arrumando qualquer emprego, só pra poder levantar um pouco mais de grana. Parece que ela chegou a ganhar uma meia bolsa para cursar a universidade, e por alguma razão, que não sei, ela não pôde ingressar. E já não podia voltar pra casa. Então continuou a trabalhar, para pelo menos se sustentar, e quem sabe encontrar novas oportunidades.

Foi assim que Filipe a conheceu, ela era sub-gerente em um restaurante. Ele costumava fazer suas refeições lá, sempre muito apressado, então não era de dar conta do ambiente ou das pessoas. Fazia muito pouco tempo que ele tinha casado com a Lígia, e como era um casamento de fachada para conseguir mais investimento, isso lhe atribuiu muito trabalho.

Daí, um dia, do que me lembro da conversa com meu sogro, parece que ele tinha ido para uma reunião nesse restaurante, o empresário que ele foi encontrar lhe deu um bolo, Filipe estava sofrendo muita pressão para fechar uns contratos, e então o garçom que o atendia entregou o pedido errado. Viviane foi averiguar, já que era um dos garçons de que ela cuidava, e ali foi o primeiro embate deles. Ela acabou sendo demitida nessa confusão e Filipe ficou bastante mal pela situação toda.

Mas depois de uns encontrões e muito mais bate-boca entre eles, Filipe conseguiu uma vaga para ela no rancho do Silveira, para ajudar no cuidado com os animais. Lá eles descobriram que Viviane cantava. Uma das memórias mais lembradas por Filipe é dessa música do Billy Joel enquanto Viviane fazia um parto de uma cabra, no meio da madrugada. Ela costumava cantar para acalmar os animais, e essa música em específico, era uma de suas preferidas, então foi uma das que Filipe mais ouviu. As fitas que chegou a gravar foi mais por influência do Silveira. Ele foi pai quando ela mais precisou.

E não só, isso, pelo que Vini conta:

— Sabe quem tá nesse piano aí? O Silveira!

— Não!

— Tô te falando!

— E ele ainda toca?

— Pouco. Uns anos atrás ele perdeu o piano, infelizmente. Chegou a pagar cursos de canto para ela também. Disse que eram simples, só mesmo para agradá-la. Como tinha um amigo que trabalhava numa gravadora, passou a fazer essas fitas. Depois que eu nasci, ele parou tudo. Acho que era muito doloroso mexer em qualquer coisa. Por uns anos ele se distanciou e quase perdeu essas fitas quando teve um incêndio no depósito.

— Meu Deus!

Segurando o celular de Vini, penso sobre o quanto essas fitas passaram e quase não sobreviveram. E agora está aqui, na minha mão, o áudio. De uma fita que, sabe-se lá como, Lígia confiscou e guardou em suas coisas. Iara encontrou durante sua investigação. Parecia coisa de filme.

Clico mais uma vez no play e a voz de Viviane toma mais uma vez o carro. De olhos marejados, me emociono um pouco. Vini percebe, ao passo que diminui a velocidade diante de um sinal vermelho com que nos deparamos.

— Às vezes eu também fico assim. É inacreditável, não é?

— Tudo isso, toda essa história, é inacreditável. Que músicas mais têm?

Vini sorri e mesmo atento à avenida e ao trânsito, não deixa de parecer animado.

— Tem uma que não tô acreditando até agora. Porque o Westlife regravou.

Levo a mão à boca, surpresa e curiosa.

— Como assim?

— Não era uma das músicas que eu gostava do Westlife, mas eu diria que agora... Não sei, é como se eu redescobrisse. E tô ouvindo basicamente a semana toda. As duas versões. Ou melhor, as três. Do Billy Joel, do Westlife e da... minha mãe.

Observo Vini enquanto fala, enquanto dirige e antes que eu possa dizer algo mais sobre isso, percebo qual entrada na avenida ele pegou e estranho.

— Ué, estamos indo para minha casa?

O namorado assente, ainda animado pela viagem ao tempo que fazia.

— É que o Murilo me ligou mais cedo, pedindo para que eu pegasse umas documentações. Como o Armando tá morando perto de mim por agora, ficaria mais fácil de repassar.

— Ah. É, seria mais fácil mesmo. Não sabia que ele tinha se mudado.

— Vai ser bem rápido. Entrar num pé, sair no outro.

Nem me animo muito por estar indo para casa, porque seria assim, entrar e sair. De repente entendo porque Gui abraçava seu carro cada vez que saía da faculdade. É só algo material, mas é algo que faz parte de nós. Sentimento de casa. Volto ao assunto anterior para não cair nas saudades de minha, embora todo aquele caminho já reativasse todas as minhas referências de “local conhecido”.

— E qual era a música do Westlife, afinal?

— Uptown Girl.

— De fato, não era uma das que eu mais gostava também.

Ao parar em frente à casa, Vini desliga o carro, mais uma vez prometendo que seria super rápido. Quando desce, logo volta e abre a sua porta para falar:

— Esqueci de dizer! Murilo também pediu pra conferir se tem correspondência trocada. Pode verificar pra mim?

Com um “tudo bem”, desço sem muita vontade. Quem diria que voltaria pra casa assim, tentando ligar certa apatia para barrar meus sentimentos de falta. Talvez ir no meu quarto pra pegar mais algumas roupas? Não sei.

Sigo Vini que abre o portão e logo depois, a porta da sala. Ele entra, ouço quando acende a luz pelo interruptor ali próximo e eu ainda tô no terraço, olhando o carro de Murilo na garagem, novamente tentando barrar as saudades e me reafirmar que em breve eu estaria de fato em casa. Em breve, em breve, em breve.

Pego a correspondência da caixinha, já checando se tava tudo ok. Algumas contas já haviam sido pagas pela internet, o que era uma mão na roda, sem necessitar que eu viesse aqui várias vezes. Assim que entro, ainda verificando se era tudo correspondência nossa, me deparo com Vini pendurado no celular. Ele acena de modo que dê a entender que está ligando para meu irmão, pra acertar o local das documentações. Logo some pelo corredor.

É então que ouço um barulho estranho. Um zumbido meio baixo, como se tivesse alguma coisa vibrando. Coloco as cartas na mesinha do centro e saio atrás desse zumbido, preocupada de algum aparelho ter pifado nesse meio tempo. Da última vez que estive aqui, havia esquecido de puxar algumas tomadas. Dou uma olhada rápida e nada, então me concentro no zumbido, pra ver se acho a origem. Parecia vir do... sofá?

Quando puxo uma almofada, paraliso. Vejo um celular. Um celular que vibra e que vibra o nome do Vinícius. Olho ao redor, tudo muito silencioso, e meus sentidos meio que pirando e não sei o que dizer, senão perguntar para o nada:

— Murilo? Murilo?

O barulhinho do celular para. Me sentindo fora da realidade, corro para a cozinha, ligo a luz e não vejo nada. Com o coração no peito saltando, não sei o que está acontecendo. Então ouço, às minhas costas, quando minha criatura preferida desse mundão diz:

— Estou aqui, mana. Estou em casa.

~;~

Estou aqui, mana. Estou em casa. Estou aqui, mana. Estou em casa. Estou aqui, mana. Estou em casa.

Abraçava meu irmão como se pudesse espocá-lo. Chorava pedindo aos céus para que fosse real e não uma mera realidade alternativa onde tinha ido parar. No outro dia havia tido sonhos tão vívidos com aquela criatura, que poderia implorar para que estivesse ali mesmo. E estava. Eu o abraçava. Eu recebia seu carinho. Eu ouvia sua voz de novo, prometendo que tinha acabado. Eu não queria soltá-lo mais. Estava eu no lugar certo, no abraço certo, na asa certa.

Meu Deus, Murilo voltou!

Passando a mão nas minhas costas, ele tentou se desvencilhar de mim umas três vezes e não deixei. Numa quarta tentativa, permiti, porque eu estava com dificuldade de respirar. Ao olhá-lo através das águas que enchiam meus olhos, vi finalmente ele, também chorando, mas feliz. Estava em seus habituais pijamas, de cabelo molhado e com aquele seu sorriso besta do tamanho do mundo.

— C-como? Por que ninguém me disse?

Vini então surge de algum buraco que sei lá, de repente ele está ali também, risonho, feliz, realizado.

— A gente pensou que valia mais uma surpresa. Assim você poderia ficar tranquila, ter uma boa noite de sono, não uma noite de insônia por pura ansiedade.

— Noite? V-vocês sabem desde ontem?

Murilo então responde:

— Comprei as passagens ontem de noite. Madrugamos um pouquinho para pegar o horário da manhã.

Ouço o que ele diz, mas meu cérebro processa diferente, pois, no auge da minha emoção, ainda com dificuldade para respirar, digo:

— Te amo, Mu-u. Te amo muito.

E torno a abraçá-lo.

Sou bem recebida de volta a seus braços e carinho e sinto que ele também não está preparado para ficar longe. Sei pelos seus beijos à minha testa, ao meu cabelo, e por como me comprime para si. Então sinto uma coceirinha no cérebro quando abro os olhos e ainda grudada a meu irmão, vejo o Vini encostado ao portal da cozinha, radiante. Me recomponho um pouco para poder falar.

— E a história do Armando? A documentação?

Vini olha para Murilo, Murilo olha para Vini, e ambos riem um pouco marotos, como se tivessem sido pegos. Tinham, afinal. Vini termina por confessar, meio desconcertado.

— Eu não sei nem onde o Armando mora, amor.

Começo a rir que nem louca, de chocada e abismada por aquela empreitada.

— Meu Deus, Vinícius! A tua cara nem tremeu! Não sei se fico orgulhosa ou temerosa.

Meu mano ajeita minha franja, pra provocar.

— Deixa o cara. Ele só teve uma ideia legal.

E o namorado, todo todo satisfeito, entra no jogo.

— É, deixa eu te fazer feliz, Mi.

Então meu pai surge na sala de toalha nos ombros e declara:

— E eu? Não ganho abraço também?

— PAI!

Salto em sua direção, feliz demais. É no seu abraço que a ficha começa a cair mesmo. Eu poderia voltar para casa. Eu estava em casa. Eu estava com quem amava. Ali estavam os três homens da minha vida num mesmo recinto e eu não tinha coração pra isso!

~;~

Eu queria gritar pro mundo que meu irmão estava de volta, atualizar nas redes e enviar mensagens pra todos os meus amigos. Mas Murilo não estava elétrico como eu. Não estava tão animado quanto eu. E como bem conheço, Murilo quieto não é meu Murilo. Mas diante do que ele (e eu!) passou no último mês, relevo seu estado de espírito. Quando disse que não era pra avisar (ainda) a Aline sobre sua volta, ou qualquer pessoa, eu tava tão doida que a única coisa que pensei foi: melhor, assim posso ficar mais com minha criaturinha sem ter que dividir com ninguém – parecendo Djane. Quer dizer, eu realmente disse isso, alto e claro (menos a parte sobre Djane). O namorado até se fingiu de ofendido e Murilo riu bobo (meu bobo!), perguntando quando foi que a gente tinha mudado de papéis, pois sempre era eu tentando aproveitar a companhia do Vini e o Murilo resmungando falta de atenção.

Eu só soltei meu mano mesmo na hora de ir almoçar. Ele e Vini pareciam já ter tudo combinado. Em dado momento o namorado saiu para comprar o almoço, e, ter ficado com papai e Murilo em casa, só nós três, segurando esse segredo, me era de uma emoção sem tamanho. Meu irmão não falava muito, mas bocejava bastante. Eles realmente tinham madrugado para pegar o ônibus e não conseguiram dormir bem durante as horas na estrada. Papai contava mais sobre como tinha sido a viagem, como foi a estadia, como estavam meus tios. O nome Denise era basicamente evitado. Não era hora pra isso, imagino. Não que eu quisesse saber de primeira mesmo.

Após o almoço, Vini preferiu nos deixar um tempo, nos dar privacidade nesse momento família. Ele e todo mundo teria todo o domingo – detalhe, na casa de seu Júlio – para se jogar em cima do Murilo; eu era prioridade. Papai ficou imprestável após o almoço de tanto sono e cansaço que tinha, então se retirou para o quarto – no caso, do meu irmão, como de praxe quando vem visitar. Meu mano ficou no quarto de hóspedes e sim, acompanhei ele quando seu corpo pesou e ele precisou deitar.

Eu continuava elétrica. Emocionada. Sentada à cama, ouvia umas músicas mais lentas pra ver se conseguia baixar essa agitação toda que ainda me dominava por toda, e zelava pelo sono de meu mano. Como pedra, Murilo caiu e apagou. Fazia um carinho em seus cabelos para me certificar de que eu estava ali, que meu mano estava de volta e que ali começava um novo rumo de nossa história.

Quando começa a tocar Yellow, um cover de Coldplay que tinha no celular, não deixo de cantar uns versos, sentindo a letra como nunca antes. Diferentemente da original, essa versão, não sei explicar, tinha um toque de esperança.

Trilha citada/indicada: Boy – Yellow (Coldplay Cover)

— Look at the staaars, look how they shiiiiine foooor you, and everythiiiing you do… Yeah, they were all yellow. I came alooong, I wrote a sooong fooor you. And all the things you do, and it was called Yellow... So then I tooooook myyy turn, oh, what a thing I've done, and it was all yellow… Your skiiiin, oh, yeah, your skin and bones, turn iiiinto something beautiful, do you knoooow… You know I love you so? You know I love you so?

— Eu sei, mana, eu sei.

A voz fraca de Murilo se faz presente à música baixa e eu, que estava perdida em pensamentos, nem tinha percebido que ele já não estava dormindo. Seu corpo estirado à cama permanecia inerte e um tanto distante, já que eu não via seu rosto. Ao seu lado, enquanto lhe ofertava um bom cafuné, fui pega de surpresa mais uma vez neste dia. Queria poder lhe dar algum espaço mais, porém, nada em mim fazia disso uma possibilidade. Ora e outra ainda me sentia fora da realidade, por isso precisava ficar o mais perto possível.

— Pode voltar a dormir, maninho. Ainda tá cedo. Descanse mais.

— Eu não sei se consigo.

Quieto e de costas para mim, espio a expressão vazia e cansada dele.

— Você voltou pra casa. Acabou.

— Eu sei que você tem perguntas, Lena. E eu quero responder tudo. Eu só...

— Eu entendo. Juro. Você conta quando achar que consegue falar sobre isso. Não vou te exigir nada, maninho. Só você aqui comigo. Eu também quero voltar pra casa. E, Deus, é a coisa que mais quero nesse mundo! O meu colchão de volta, o meu teto de volta. Você de volta.

— E se eu não for mais o mesmo?

— Ninguém é mais o mesmo aqui, Mu. Ninguém.

— E se eu não conseg...?

Me movo na cama para descer e rodear para chegar ao outro lado. Ao sentar próxima a seu rosto, que vejo finalmente como meu mano está, que me parte o coração vê-lo quebrado assim, quero que todo o meu amor seja suficiente para ele. Toco-o levemente na bochecha e faço meu papel:

— Você já fez a parte difícil, precisa deixar isso ir. E eu tô aqui pro que você precisar. Cafuné, sorvete, abraços, declarações. Meu Deus, Murilo, lavo até banheiros por ti.

Isso na linguagem Lins significava muito. Em outros tempos, isso teria lhe arrancado sorrisos bobos e orgulhosos, mas o riso não chega. Ele só me olha, embora pareça perdido. Por isso torno a falar:

— Tome o tempo que quiser, mano. Anos se for o que você precisa. Minhas perguntas não são nada comparadas a minha vontade de só te abraçar e não largar mais. E lembra do nosso acordo? Milena não desiste de Murilo, Murilo não desiste de Milena; Você está condenado a mim, maninho.

— Eu nunca estaria condenado a você. Você é meu ouro.

Tento brincar para descontrair:

— Ouro de troca?

— Ouro da vida. Sinto que ainda tenho muito pra digerir, mas com você me dizendo essas coisas... me tira um peso. Obrigado por isso.

— Sempre que precisar, mano.

Me inclino e beijo a face dessa pessoinha que tanto precisa de amor neste momento. Logo ele se move e abre mais espaço, dando a entender que me dava espaço para que eu também deitasse. Acho que ele precisava de minha presença, tal qual eu precisava me manter perto, para então dormir sossegado. E só assim ele parece amainar e dormir, me levando junto ao campo dos sonhos.