Quando se está em alto nível de cansaço, nenhum pensamento é confiável; eu bem que sabia disso. Não somos nós mesmos até. Falamos e fazemos coisas que não combinam conosco. Cheguei até pedir spoiler de prova pra Djane não faz muito tempo – SPOILER DE PROVA! E como naquela virada de noite, de bad para uma manhã gloriosa, assim Murilo amanheceu. Mais centrado, consciente e disposto. Leve.

E louco para rever a família!

Me senti bem melhor de vê-lo assim.

Vinícius mais uma vez era um agente cumprindo sua missão. Sério, ele tava empolgado desse jeito. Quando fui abrir a porta para ele, ele todo charmoso e de sorriso de orelha e orelha, logo declarou:

— Agente especial Vinícius Garra se apresentando para nova etapa da surpresa.

Ele foi nos buscar para ir à casa do vô-sogro. Preferiu assim para surpreender a todos, pois nunca desconfiariam. Se chegássemos pelo carro do Murilo, seria dar bandeira.

Quando foi mesmo que meu namorado se tornou esse raio de agente misterioso?

Nem impliquei, tava era amando tudo aquilo. Até papai estava achando graça, entrou na brincadeira e tudo. Se dizia agente especial também, protegendo os alvos, como se ele também não fosse um!

Como profetizado por Murilo um tempo atrás, até a época de voltar de viagem, Filipe e Iara já teriam se mudado. A mudança mesmo foi no domingo passado, com uma série de transtornos típicos, estresse e muita coisa pra arrumar. Pra quem já tinha se mudado de casa tantas vezes, Filipe tava pra ficar doido com tanta coisa – Iara me contou. Acho que era porque dessa vez era muito importante pra eles, então teve um maior envolvimento das partes.

Disse ela que era até engraçado. Ainda bem que Sávio e uns amigos seus da oficina estavam lá para ajudar. Como casou de ser o dia de comemoração do meu níver com Vini, fomos perdoados pela falta. E foi bom porque assim Sávio pôde ficar de guarda baixa e seu Júlio aproveitou a chance para conhecer mais do namorado da neta.

Mas não foi só esse dia. Os arranjos na casa duraram quase a semana toda! Tinha dia que eu estava conversando com Iara pela empresa e ela simplesmente sentava, ou deitava em qualquer lugar, só de cansada. Mas vez que ela estava hiper feliz, todos aqueles transtornos de carro de mudança, malas e objetos perdidos iriam terminar e com isso, um sucesso de operação.

Aproveitando esse gancho, de ser uma oportunidade para ver como tudo estava se assentando, convidei Aline para comemorar com a gente a novidade. Nem ela nem ninguém sequer tinha alguma ideia de que esse encontro seria um encontrão. E assim permaneceria até que pisássemos naquela casa.

Eu já podia ver Djane me afogando na piscina por guardar tamanho segredo. Mas tinha meu agente especial à prontidão pra todo caso, certo?

No carro, Vini dirigia, eu ia no carona, e papai e Murilo no banco traseiro para não darem de cara logo na entrada. Pelo caminho, contava a eles ainda um pouco sobre o lançamento da vovó e as peripécias minhas com Flavia e Luke naquele festão. Na oportunidade, Filipe conhecera minha mãe. Agora iria conhecer meu pai.

E eu estava super calma e animada por isso.

Ao chegar na portaria, todo mundo acaba ficando em silêncio. Ao entrar na casa, fica o suspense. Vejo do outro lado, na área da piscina, a Iara com Sávio e Aline, conversando. Na varanda, ninguém à vista. Vinícius estaciona e desliga o carro. Todo mundo meio que se entreolha com olhar brincalhão. Chegara a hora.

Desço lindamente, acompanhada do namorado. Ele assobia para chamar a atenção dos outros e as duas portas dianteiras do carro se abrem. À mesa do lado da churrasqueira, Aline é a primeira a nos perceber. Parece que o tempo para. Assisto seu desnortear momentâneo, em que se pergunta se era mesmo quem ela achava que era, até o instante que sua ficha cai, tal qual foi comigo no dia anterior. É de deixar qualquer um em fuso mesmo.

Aline sai em disparada, correndo pela grama e não consegue dizer palavras simples diante de tamanha comoção. Ela se choca aos braços do meu mano como numa cena de cinema e todos assistimos o pequeno momento de casal daqueles dois. Era a primeira vez que papai via Aline e pelo jeito todos os pares de seus filhos ele só conhecia em grandes cenas de emoção. Posso prever os ciúmes da minha mãe por isso.

Enquanto aqueles dois se curtiam, Iara chegou até nós, tão chocada, atônita e maravilhada, que a única coisa que ela consegue dizer de primeira instância é “Miiiiiiiiiiiii” e “Meu Deus, meu Deus” e me abraçar pulando. Sávio, logo atrás, também demonstrava surpresa. E então Iara percebe que faltava mais gente nesse cenário. Grita:

— PAI! DJANE! VÔ-JÚLIO! VENHAM, VENHAM!

Me viro a tempo de ver um Filipe esbaforido aparecer na varanda e sorrir, desacreditado. Ele torna à porta para chamar os outros e corre para onde estávamos. Djane é a próxima a aparecer na varanda e nessa hora quase posso explodir ao ver sua expressão. Não era por ela possivelmente querer me fazer engolir toda a água da piscina, mas porque era mais uma confirmação para meu íntimo de que era tudo real. Ela ajuda seu Júlio a descer os degraus para a grama e Murilo também corre para eles. Só noto mesmo que estou chorando por papai me abraçar de lado e fazer “shiii”, dizendo que tudo estava bem, que estávamos juntos de novo.

É andando para a casa, entre felicitações e risos e choros, que Iara se põe na frente de Murilo e faz graça, porque no meio de tantas pessoas, ela deu espaço para todos, mas não tinha conseguido seu abraço ainda. Foi então que o tapado do meu irmão se deu conta e deu seu abraço de urso. Consigo ouvir dela um “a casa não é a mesma sem você” e dele “e nem a vida sem vocês”.

Mas é dona Fanny que consegue arrancar uns bons sorrisos quando, no alto da varanda, coloca as mãos na cintura e diz:

— Por que ninguém me avisou? Eu teria feito uma sobremesa especial!

Bobo, Murilo sobe os degraus para cumprimentá-la, enquanto eu só levanto as sacolas que trazia às mãos:

— Pensamos em tudo, dona Fanny. Tem sorvete pra todo mundo!

Era também meu suborno para ninguém ralhar conosco pela falta de informações.

~;~

Após o almoço (e sobremesa!), estávamos todos espalhados ao redor da criaturinha na sala. Eu e Aline ficamos no sofá com Murilo no meio, Iara sentada na mesinha logo a nossa frente, Djane num braço, Vini no outro, Sávio numa cadeira perto da sogrinha. Já papai conversava com seu Júlio e Filipe na poltrona ao lado. Se Murilo tava sufocando com toda essa atenção? Que nada! Mas pelo jeito, voltava aos poucos ao sacaninha que era/é:

— Se eu soubesse que era só passar um tempo fora para vocês grudarem em mim mais que cola super bonder, eu já tinha ido.

Quase que sincronizadas, eu e Aline damos uns tapas – leves – na pessoa.

— Eu, tua excelentíssima mana, já tinha te dito milhares de vezes sobre dar espaço, mas, claro, tu nunca me levava a sério. Logo eu, tão nobre alma, que dá tão bons conselhos.

Era meu jeitinho delicado de dizer “te amo” e “ai de ti se inventar de sumir de novo”. Tão logo as saudades passavam, sentia que podia respirar e contar que ao olhar para o lado, ele permaneceria lá. E que voltávamos a ser gato e rato.

— Bons conselhos desde quando?

— Desde que me entendo por gente, ora. Você que sempre distorcia tudo. Como na vez que me obrigou a usar colírio e fingir que tava chorando só pra poder impressionar a Aline. Eu sempre preferi outras maneiras – e mais verdadeiras – pra você demonstrar que cuidava da irmãzinha.

Eu complemento piscando os olhinhos, com a maior cara de inocente. Já Aline abre um bocão de ultraje e dá mais um tapa na perna de meu irmão, o que leva os outros às gargalhadas.

— É o quê, Murilo?

O tamanho sorriso de meu mano de quem não conseguia ficar com raiva pela informação vazada era tão lindo que me deu vontade de beijar-lhe o rosto. Mas aí ele abriu a boca e reativou meu espírito traquina:

— Mana, eu te amo, mas agora... Corre, que eu vou te matar.

Olho ao redor e ainda saio apontando as pessoas ao redor:

— Tenho um, dois, três, quatro, cinco... agentes especiais pra me proteger.

— Mas hoje é meu dia, ninguém vai ser capaz de me impedir.

— Ai, coisa, o que eu não faço por ti, viu.

Então papai se materializa ali naquele montante na sala e diz:

— Nem 24h e esses dois já estão prometendo matar? Eu desconfiaria era se não estivessem se matando.

Seu Júlio vem logo atrás, com Filipe lhe amparando, e concorda:

— Tiraste as palavras de minha boca, Otávio!

Termino por cruzar os braços e fazer um bico no maior drama – aparentemente, não estava em mim, mesmo engolindo o riso.

— Eu compro o sorvete, eu dou os conselhos e ainda saio trolada. Ô vida!

Mas que era gostoso de estar ali, me sentindo exatamente no lugar certo e com as pessoas que tanto amo, como era!

~;~

— UNO!

— Cantou cedo demais, meu filho.

Meu irmão havia jogado uma carta que virava o sentido do jogo, o que lhe garantiu o UNO, mas é mara ver a cara dele quando papai faz com que compre QUATRO cartas. Ser massacrado assim (e mais de uma vez) por papai no jogo, que não tinha pena, nem dó, fazia de meu pai definitivamente um “dos meus”.

— Espera! Ele não contou o segredo!

Iara aponta logo que Murilo está comprando suas mais novas cartas. Acontece que uma das regras que inventamos para a partida da jogatina da vez era de que quem chegasse ao status de carta única (Uno), tinha que contar um segredo. Eu e Sávio já tínhamos contado três, Djane e Aline cinco, Vini e Iara dois, papai um e Murilo ia pro sétimo! Que sorte (ou azar?) tremenda era essa eu não sei, mas genial mesmo era Filipe, único que não conseguia nem chegar lá, mas estava adorando ver todo mundo na mira. Aliás, todo atencioso quanto às histórias que Sávio contava. Iara e eu só ficávamos de olho, dividindo sorrisinhos.

Com o vô-sogro na cama para o descanso da tarde, Iara nos convidou para fazer um pequeno tour na casa, para ver como ficou. Brincalhona tal qual o Vini neste dia, ela assumiu a missão de guia turística pela residência, mostrando o caminho e o que tinha mudado. Acho que nunca vi os olhos dela brilharem tanto!

Além de se mudar para a casa do vô Júlio com o pai, a casa estar no ponto, Filipe e Vini de bem, Vini ter assumido o posto de irmão e o Murilo ter voltado, o Sávio, desta vez, estava ali. E não somente como mero visitante e distante. Não, ele estava bem socializado ao nosso grupo de turistas, se deixando levar pelo passeio. Iara, que sempre teve receios e o coração triste acreditando que aquilo era impossível, agora desfrutava de toda uma nova felicidade. Eu diria que ela também se sente (finalmente) no lugar certo com as pessoas certas.

Nessa andança, fomos parar no escritório de seu Júlio, que era grande e um cômodo bem aconchegante. Parecia um daqueles cômodos de filme com várias prateleiras e livros, sofás e tapetes. Bom, não tinha tapete. Era um lugar da casa que quase não íamos, porém, com a chegada de Filipe à casa, diz ele que já tem seu lugar para reuniões. Quando não dava na empresa, às vezes ele fazia na estreita copa do apartamento, e por isso, mais assistido nessa questão, já tinha marcado território. Fora que isso super ajudava seu Júlio. Há boatos de que estão pensando em aderir as empresas, que são de áreas bem próximas – distribuidoras. Seria uma expansão e tanto!

— Acho que eu não tenho tantos segredos assim, gente. Isso é com a Milena.

A coisa ri um risinho sacana, mas sei que não fala por mal. Quero, no entanto, atacá-lo com mais cartas. Infelizmente não estou do lado dele, mas felizmente Vini está. E papai. Já disse que amo esses homens da minha vida?

— Para de provocar tua irmã, que ela tá quieta e não tá soltando nada sobre você.

— Pô, pai, não lembra, que agora ela vai!

É, eu vou!

A inspiração para os segredos veio justo por eu ter vazado aquele do colírio. Foi unir o útil ao agradável – no caso, a jogatina, que, pelo jeito, é nosso modo de ser feliz.

Enquanto jogo e mando uma pequena bomba pra Filipe, que permanece bem longe do Uno, já estou procurando nas gavetas do cérebro algo pra dizer. Lembro momentaneamente da vez que o Murilo entrou numa loja de brinquedos e conversou com uma boneca, mas ele não sabe que eu sei ou que vi. E não posso vazar sobre a vez que ele achou que a Aline tava grávida, porque, um, seria crueldade demais, e, dois, porque não quero envolver a Aline nessa. Ela, aliás, preferiu não se sentar perto do meu mano no jogo porque não queria ter que sacrificar o namorado pra ganhar (palavras dela, concordância dele); Aline pode ser bem competitiva quando envolve cartas. Eu bem sei por que já joguei pôquer com ela e porque Sávio e Djane já levaram boas bombas nos últimos minutos.

— Anda, Murilo! Que a Milena já tá arquitetando tua caveira, a gente já sabe, agora conta logo esse segredo.

Não sei se respeito ou se provoco a Iara depois de soltar essa; só observo.

— Tá, tá legal. Acho que... Bom, teve a vez que fui... hmmm.... suspenso no trabalho. Eu tinha adulterado uma apresentação com certas imagens, mais precisamente fotos dos caras do departamento em situações... errrr, constrangedoras, e a diretoria estava nessa reunião. Me ferrei. Mas pelo menos pude chamar a atenção da Aline.

Minha cunhada joga e já quase atira uma carta na cara do meu irmão.

— Não me mete nisso, Murilo!

E eu, claro, também reclamo, mas por outras razões:

— Ah, não, isso eu já sei! Quero segredos inéditos!

— Mas nem todo mundo sabia! Sabia?!

De repente um coro longo de “eu sabia” se faz e percebemos que TODO MUNDO SABIA. Até o Sávio sabia!

— Caraca, quem foi que contou?

Resumo da ópera: eu contei pro Vini, que mencionou uma vez pra Djane, que comentou com Seu Júlio, que falou pra Filipe, e ele disse pra Iara, que chegou no Sávio. Papai? Soube por vovô. Murilo ficou sem o que dizer, desacreditado.

Papai bate no ombro de meu irmão como consolo.

— Você fez algo ruim, filho, mas assumiu o que fez. E fez aquele treinamento com o departamento, não foi?

— O senhor sabe até disso?

— Bem, pelo jeito, sei. Não foi uma atitude louvável, mas isso trouxe boas mudanças. A Aline concorda, não concorda?

Vez que a Aline fica um pouco desconcertada pra responder, eu lanço um olhar pra Iara me acompanhar no apelo:

— Então esse segredo não valeu. Conta outro, Murilo.

— É verdade, não valeu não, Murilo.

— Tá, tá, deixa eu pensar. Já contei do Big Brother, né?

Novamente um coro se fez, com umas risadinhas:

— Já!

MURILO NO BIG BROTHER BRASIL, EU NÃO TERIA NEM CARA.

Mas sim, ele fez um vídeo uma vez, só não enviou, porque ficou sem coragem. Infelizmente esse vídeo não existe mais – dizendo ele. E não voltou a considerar uma participação, porque, à época, ele achava que eu não poderia ficar sozinha, e também porque Murilo não é o tipo de pessoa que consegue ficar sem as pessoas que ama por perto. Ele literalmente tem um tilt. Só Deus sabe o que foi essa viagem, longa e incerta. Ao menos papai estava lá.

— Tá, lembrei de um... recente. Lembram daquele meu prêmio do projeto no departamento? Que fiz com um colega de trabalho?

Alfineto:

— Aquele que tu fez literalmente ninguém esquecer, ainda mais saindo na tv?

Meu mano sorri de safado orgulhoso pra logo depois vestir uma carinha uma pouco encabulada pelo que viria a contar.

— Depois do prêmio, eu fui chamado pra palestrar no departamento de geografia, onde estudei, mas declinei o convite. Porque tenho receio de voltar pra universidade e eles me cobrarem... um livro que nunca devolvi pra biblioteca.

— AH, NÃO! Não acredito!

Essa foi a Iara porque eu mesma estava mais rindo do que outra coisa. Mas também não acreditava.

— E que raio de livro é esse, mano?

— Nem eu sei.

Murilo diz simplesmente, com a cara mais inocente e confusa. Aí que gargalhei mesmo, sem nem prestar mais atenção no jogo. Meu irmãozinho encabulado era uma coisinha de dar dó.

Djane faz sua tentativa:

— Mas Murilo, você nem sabe se... Eu não entendo. Você não sabe nem qual é o livro!

— É porque não foi pra mim, era uma colega de classe que tava precisando. Só que ela nunca me repassou o livro e eu não pude devolver. Isso foi perto da minha formatura. Daí não voltei mais.

A gente tava rindo dessa história toda do Murilo quando de repente Sávio faz o melhor comentário:

— Eu taria mais preocupado é com a multa.

— MEU DEUS, A MULTA. VAMOS TER QUE VENDER O CARRO.

Agora sim fui eu, a dramática que sou, embora risonha como nunca.

A jogatina continua, mas com essa criatura falando suas peripécias e seus segredos, fica difícil prestar atenção. Acho que tava mais fácil vô-sogro, que nem no recinto tá, ganhar o jogo, do que qualquer pessoa nessa roda.

Mas na real não importava nada disso. Poderia eu ficar em último lugar e ainda estaria feliz como nunca, por isso apreciava cada coisinha. Quer dizer, não só eu.

Acho que todo mundo precisava de uma boa dose de família.

Ou, pelo menos, de uma boa dose de Murilo.