Toda grande nobre alma, em algum tempo, tem que descansar.

Conforme a tarde foi avançando, o sono foi batendo e derrubando-nos um a um. Quando dei por mim, a Flávia hibernou no sofá. Nem tentei mexer nela, pra não atrapalhar seu soninho bom. Tirei só uma fotinho rápida sem ninguém notar, pra minha coleção pessoal. Da próxima vez que ela reclamar, posso dizer que é pra os dias ruins. Ela ainda vai querer apagar tudo do mesmo jeito, posso apostar. Ela já caçou aquelas que tirei quando dormiu no sofá de uma loja. Quase encontrou! Eram preciosas demais.

Mamãe queria ficar para dar assistência às visitas, mas tinha que voltar pra loja. Era uma época de muito movimento. Por mais que ela quisesse ficar, eu disse que tomaria de conta, afinal, dali um tempo todo mundo estaria apagado. Após muita insistência consegui fazê-la ir pro trabalho. Já tinha tirado muita gente do expediente com essa viagem, atrapalhar mais uma não dava. Vovô foi com ela e vovó tinha uma última reunião antes do evento, para checar algumas coisas. Diz ela que tem uma surpresinha. Só me pareceu trambique quando vi de relance que Lucas, nosso vizinho, iria acompanhá-la. Aí tem!

Ficou eu, Vini, Iara e Filipe – vez que Flá já tava em outro mundo – resistindo em ir dormir por conta de um filme aleatório. Queríamos ver o resultado da investigação. Era um filme bobo de comédia daqueles que a gente não sabe nem o nome, mas permanece de olho meio aberto. Logo que o caso se resolveu, Filipe disse que iria pra cabana. Disse ele que achava engraçado falar isso, porque era chique ter uma segunda casa nos fundos da principal. Prometi contar-lhe grandes peripécias minhas e do Murilo por lá. Nisso, acompanhei ele para ajeitar algumas coisas no quarto de hóspedes, coisa rápida.

Quando retornei à sala, Iara estava cochichando algo com o Vini. Mas eu, já bebinha de sono, nem dei trela a isso. Só fui na cozinha, pra tirar umas coisas do congelador, como mamãe pediu, e lá mesmo Vini foi me buscar, dizendo que era melhor eu ir descansar. No meu estado, tampouco resisti, fui levada pela mão. Só quando ele diminuiu do ar-condicionado e ajeitou os travesseiros na minha cama que entendi o que Iara fizera. Ela trocou de quarto com ele.

— Sabi...chões... vocês.

Falei entre grandes bocejos e olhos pesados. Vini se acomodou de um lado na cama, que não era tão estreita, nem tão larga. Puxei o lençol de debaixo de meu travesseiro e o abri um pouco, conforme fui deitando e me aconchegando, de lado e de frente para o Vini. Ele, por sua vez, fechou os olhos. Mas parecia não estar relaxado o suficiente para dormir. Eu queria perguntar se tinha algo o incomodando, porém, não sei. Num momento eu estava pensando sobre como fazer isso e em outro, eu estava em Dublin, ou pelo menos me informaram ser Dublin, quando muito parecia minha outra cidade. Era efeito do filme. Dormi. Um tempo depois, sabe-se lá o quanto, pois acordei bem desorientada, sem saber onde estava, com quem estava, que horas eram, e por um momento pude jurar que era o Murilo ali perto, e acho que foi essa impressão que me fez despertar. Vini estava de barriga pra cima, os olhos fechados, mas não parecia estar dormindo, pois mexia os dedos no espaço da cama conforme algum ritmo. À medida que fui despertando mais, observei que estava de fone.

Segurei essa sua mão que estava mexendo e ele abriu os olhos instantaneamente.

— Espero que não seja punk no fone.

Punk e descanso não funcionam juntos, é o que sempre lhe digo. É muita agitação.

Ele ri um riso cansado.

— É um eletrônico um pouco lento.

— Mas você dormiu?

Vini faz uma carinha de que não quer exatamente responder, mas acaba respondendo com sua expressão.

— Não dormiu porque não quis ou porque não conseguiu?

— Não consegui muito. Muitos pensamentos e pensamento longe, sabe como é.

— Você tá ansioso, é normal. Ouvir música eletrônica nessa que não é uma ideia tão boa. Umas mais calmas seriam melhor.

— Não tenho muita música lenta.

Me viro pra pegar meu celular na mesinha ao lado da cama e acessar minhas playlists. Com um risinho de quem ainda tá grogue, coloco meu aparelho em sua mão. Tão logo ele despluga o fone do seu, pluga no meu e me passa um lado do fone. Reconheci o instrumental de Innocence, da Avril Lavigne. Estava num volume baixo, de modo que poderíamos falar e ouvir um ao outro.

Trilha citada/indicada: Avril Lavigne - Innocence

— Obrigado.

— Quer conversar sobre sua viagem?

— Até então está ótima!

Rio pela gracinha e ajeito o travesseiro, pra ficar com a cabeça mais alta. Logo ele faz o mesmo.

— Você sabe que falo da segunda parte.

— Sei mesmo... E não sei. Quer dizer, tem tanta coisa pra redescobrir. E eu quero poder conhecer tudo. Mas é complicado estar de fora, ouvindo de um e outro. Parece que todo mundo está a minha frente. Por outro lado, agradeço a oportunidade. A Iara... A Iara não teve a mesma sorte. Acho que eu devia me sentir mais sortudo. Só que... não dessa maneira?! Não sei. Mesmo.

Observo esse seu momento incerto, preguiçosa. Me parece cada vez mais como o pai. Eles têm um traço de expressão que fazem igualzinho. Iara também tem uns traços do pai, mas ainda não notei realmente se ela e Vini fazem algo igual. Coço um pouco o olho, sonolenta, e tento me centrar no Vini, ainda inquieto.

— Posso fazer alguma coisa?

Ele inspira e expira devagar.

— Você já está. Fazendo muito, na verdade.

— Se for muito pra você no momento, não precisa ir, você sabe, né?

— Sei. Mas quero ir. Acho que a última vez que fui no rancho, eu devia ter uns 16 anos. E eu sei que vai ser um tempo mega curto, eu só... Acho que é essa espera. Que tá me tirando o sossego.

— Já pensou se você não está esperando demais? Digo, muitas expectativas. Não é como se você fosse reunir todos os pedaços dessa história num só fim de semana. E não é como se a sua história fosse lhe escapar.

— Achei que essa era a melhor maneira de me conectar a ela. Agora não tenho tanta certeza.

— São só expectativas, amor. Que acha de só ir... e aproveitar a viagem?

As viagens.

— Pois é, as viagens. Estou pensando sobre minhas expectativas também. Baixar a bola.

— E tem conseguido?

Me esgueiro pra mais perto dele, mas ainda deixando um espaço entre nós. Alcanço o seu braço ali no meio e me enrolo a ele. Falar cada vez mais sobre isso me tranquiliza. Espero de verdade que funcione com ele também.

— Com esforço, sim. Um pouquinho. Não adianta eu bater perna esperando notícias do Murilo ou do meu pai. Isso só iria me consumir, eu sei. Já fiz isso por muito tempo – e não recomendo. O que mais quero no momento é descansar. Fazer isso funcionar. Às vezes nós mesmos criamos nossos monstros e nos deixamos levar por nossos medos.

De olho brilhando, inseguro e vacilante, Vini é direto:

— Está com medo agora?

— Não. Quer dizer, sim. Mas sabe quando se tem uma certeza? Que tudo, de alguma forma, vai ficar bem? Tô dando força pra isso aqui dentro.

Aponto para meu peito e percebo que isso lhe traz algum ânimo.

— Fico feliz, Mi. Me tranquiliza também.

— Eu sei. De verdade, eu sei.

Não menciono certa conversinha que entreouvi uns dias atrás durante uma ligação não desligada de Djane. Aceito como empurrãozinho do universo. Empurrãozinho esse que agora me traz um pequeno sorriso de meu Vini.

— Daqui pra amanhã eu aumento esse sorrisinho.

— A depender de você, ainda hoje.

— E a depender da Flávia, com mais uns micos pra minha coleção.

Cubro o rosto, com a mão que não está entrelaçada a ele, pelo mico de mais cedo. Nem consegui dizer nada a Filipe, meio que ficou por isso mesmo, aquele momento esquisito e vergonhoso sobre o vaso. Justo como da vez que ele descobriu.

— Ainda constrangida por aquilo antes do almoço?

- Ainda constrangida por aquilo em outra viagem. E contar a Filipe. Nessas horas não sei o que ele deve pensar de mim. Não sei se iria querer saber também.

Ele RI. Sorriso ainda pequeno, mas aberto.

— Olha, posso ser meio lento pra algumas coisas, mas percebo outras sim. Acho que ele pode ter quase as mesmas impressões que eu tenho. Você que se constrange com umas coisas pequenas...

— Pequenas grandes.

Vini assente, dando o braço a torcer por fim. Mais divertido, ele faz um carinho em meu rosto e retruca, agora sossegado e cheio de ideias.

— Talvez fosse mais fácil só te beijar... te abraçar... e estar com você.

— Depois de todo esse papo, nem inventa nessa altura do campeonato cancelar a viagem pra ficar aqui. Eu te quebro com um vaso de novo, com ou sem teu pai presente.

Vini ri de colocar a cabeça pra trás. Isso quase me dá coragem de realmente dar-lhe com um vaso na cabeça, mas aí eu teria que me explicar de novo pra Djane e chega de drama! Ao voltar à antiga posição, Vini me olha direto nos olhos e afirma, extasiado pelo que eu disse:

— Essa SIM é minha garota!

— Bem, estou aberta pro que der e vier. Seja pra pagar micos, seja para... Enfim, não tô dizendo que vai ser um fim de semana fácil, nem que vai ser o mais miserável deles. Além disso, a Flávia tá aqui e ainda vou ver o Lucas. Tem meus avós. Meus pais. Bom, minha mãe. Vou me deixar ser mimada o máximo possível. E você, trate de fazer o mesmo! Provavelmente vou ter que arrancar os detalhes da Iara, então ótimo que ela vai também.

— Fala como se eu não fosse te contar nada.

— Eu gosto de ter a visão completa.

— Sei... Queria que você pudesse ir também.

— Quem sabe outra vez. O importante é você ir e aproveitar bem.

— O mesmo para o lançamento da sua avó. Vá e se divirta.

— Pensa bem: eu, a Flávia e o Lucas. Tu acha que alguma coisa vai prestar?

— Acho. Aprendi a ter esperança.

Vini diz isso de um modo tão presunçoso que sou eu quem quer rir e gargalhar. Mas acabo só parando para observá-lo para tão logo me levantar rapidamente e lhe dar um beijo. Com carinha de quero mais, Vini investe em não me soltar. Aí sim começo a rir.

— Só um?!

Ainda bem que foi um beijo rápido, pois logo ouvimos uma batida na porta e nos ajeitamos na cama. Parece que eu tava sentindo que seríamos interrompidos!

— Posso entrar?

Era minha mãe, chegando de mansinho e desconcertada. Está tarde assim? Pra já ter chegado do trabalho? Ela não fala nada da porta fechada e nem me olha feio, só evita passar os olhos pela cama, onde estamos eu e Vini. Ainda assim, me levanto um pouquinho, quase sentada.

— Oi, mãe. Precisa de alguma coisa?

— Só vim pegar... err... mais toalhas. Não se incomodem comigo.

— Que é isso, mãe. Quer ajuda?

Já ia me levantando de vez quando...

— Não, não precisa. Podem ficar aí. Eu só... Tchau.

Comprimo um sorriso e mal posso acreditar que minha mãe escapulira desse jeito. Já ia falar isso pro Vini quando pego ele no flagra também. Sim ou com certeza vou zoar bonito?

— O que é isso, Vinícius?

— Isso o quê?

— Essa vermelhidão no seu rosto.

— Vermelhidão?

— É... de quem tá constrangido.

— E-eu? Constrangido?

— O que vai, volta, amor, o que vai, volta.

Uma pequena filosofia pela qual tenho um grande apreço.

~;~

— Diz logo esse veredito: mamãe gostou de Filipe?

Ouvir a voz de meu irmão feliz e curioso é com certeza algo que me anima.

— Não só adorou como não larga dele. Se papai tivesse por aqui, acho que o ciúme dele já taria ligado.

— Sério????

— Tô brincando. Mas é bem verdade que ela adorou ele, não sossega UM minuto e...

Mamãe já tinha esquecido que ele era meu chefe. Quando o assunto da empresa surgiu por acaso, de repente era como uma novidade. Por alguma razão ela tinha a impressão que eu estagiava junto com Flá, e não com Gui. Iara aproveitou pra nos soltar a bomba da vez: vai voltar a estudar. Filipe tava tão orgulhoso que felicidade não lhe cabia mais no peito, ele tava esbanjando-a de todas as maneiras. Estávamos num rodízio de pizzaria e quando o garçom vinha com opções, Filipe dizia “acho que minha filha vai querer uma calabresa” ou “manda uma portuguesa pro meu garoto”. Mamãe? Adorava! Até esqueceu da chateação de mais cedo, por não ter bujão de gás reserva como ela pensou, e isso ter acabado com os altos planos dela pra noite, mas se contentou em sair para comer fora.

E quando mamãe puxou a conversa sobre o jantar de oficialização do meu namoro com Vini, que Filipe falou “esse é meu garoto” e queria MAIS UM jantar especial com a família completa? O Vini ficou todo sem graça! Empurrei meu ombro no dele com a maior cara de pau.

— Meu Deus, você nem vai acreditar!

— O quê, o quê, o quê?

A pizzaria tinha um telão no fundo, que tocava uns dvds de shows. Eu estava um pouco afastada, na área da varanda do estabelecimento, para atender a ligação do Murilo. Ao me virar pra ver como estavam todos na mesa, eis que:

— Mamãe tá dançando com Filipe!

— Mamãe tá o quê com Filipe? A ligação falhou.

— DANÇANDO. MPB. MEU DEUS, EU TENHO QUE GRAVAR ISSO. VOU DESLIGAR.

— Não, não desliga!

Desliguei. E a música acabou. Mamãe se desvencilhou de Filipe e aceitou o convite de Vini para uma próxima. Penso em gravar um pouquinho esses dois, com medo desses sorrisos demais deles, e caminho de volta para a mesa, de onde vejo que o sogrinho tá me mirando. Aponto pra Flávia e ela empurra a Iara. Assim que sento, jogo logo pra minha amiga:

— Me diz que você gravou mamãe dançando!

— Eu sou decente, Lena.

— Ah, minha neta. Se eu tivesse uma câmera, eu mesmo filmava.

Dou língua pra Flá.

— Viu, vovô é do meu time.

E vovó me detona.

— E eu sou do time da Flávia. Nada de filmar. Tem que deixar acontecer.

— Mas vovó! Um momento tão memorável desses.

— Justamente. Antes aproveitar cada segundo que se distrair e perder o momento por estar segurando uma câmera. Aliás, ai de quem me gravar amanhã, ai de vocês. Saio puxando a orelha até que alguém filme.

— Que crueldade com as crianças, Marília.

Já nem me importo de ser considerada “criança” por vovô, sei que ele não fala por mal ou nos tem como imaturos. É só o jeito de ele falar mesmo.

— Ora, e comigo?

— É pra quando você for famosa, vó. Os repórteres sempre pedem umas imagens para fazer um especial. Temos que garantir esse material, né?

Vovó já era famosa na cidade e para ela já era o bastante.

— Fotos. Tirem fotos e só.

— Mas e papai? E o Murilo? Eles merecem ao menos uma espiada.

— Hum. Vou pensar no caso.

Comemoro jogando os braços pra cima.

— Eu disse que vou pensar no caso, Milena.

— Estou comemorando que a senhora vai pensar. Com carinho. Muito carinho.

Vovô sente a olhada que vovó lhe joga, como que dizendo que ele ainda me influencia. Ele retruca:

— Eu não tenho nada a ver com isso! Mas aceita uma dança, mi lady?

Enquanto minha vó faz um pouco de doce para aceitar, mamãe volta pra mesa junto com Filipe e aproveito que Vini continua a dançar com Iara – que são duas lindezas quando juntos e conversando e dançando e tramando alguma coisa. Ok, tramando talvez seja demais. Mas nunca se sabe, né? Puxo a câmera só para uma foto enquanto vovó se levanta e logo aponto que era pelo casal dançando, não ela. Eu ia enviar pro Murilo. No outro dia a gente acabou puxando o assunto sobre relação entre irmãos de novo e eu fiquei por me vangloriar sobre a relação dele (Murilo) com Iara. Aí ele soltou uma pérola filosófica.

— Eu disse que você ia amar ela algum dia.

— Quando se é um tolo, apenas tolo se é.

— Senhoras e senhores, Murilinho sendo filosófico? Mostrando sabedoria? Vou contar pra vovó! Ela espera isso faz anos!

Ainda tenho que contar para ela. Com toda essa movimentação, parece que não tivemos um momento apenas para conversar. Faz um tempinho que não conversamos, aliás.

Distraída procurando um bom ângulo para a foto, alguém surge na frente da câmera. Devagar levanto o olhar e dou de cara com Filipe. Parece que ele tá me dizendo “vai fugir de mim o dia todo mesmo?”; se estivesse dizendo, eu era capaz de assentir. Ia dar a desculpa de deixar a Flávia sozinha na mesa, mas mamãe já tinha voltado. Me resta sorrir amarelo.

— Milena.

— Filipe.

— Só falta você.

— Na verdade, falta a F...

Eu ia apontar pra minha amiga, que vê a esquiva e bota lenha na fogueira: me incentiva também. E mamãe.

— Vai logo, Milena!

— Isso, filha. Vai. Quero essa foto.

Só penso: sou filha de minha mãe mesmo. Quando me vejo, já estou sendo guiada para dançar. O rei. Era aquele dvd “Elas cantam Roberto Carlos” e a nossa música era logo “Emoções”. Universo, é você trabalhando de novo? Roberto falava das artistas participando do dvd, agradecendo a todos e nisso Filipe se preparava para começarmos a dança. Ele tava igualzinho o Vini quando sabe o que tá rolando e se diverte por isso.

Trilha citada/indicada: Roberto Carlos – Emoções

— Então...?

— Então...?

Se fazer de desentendida, sim, a gente vê por aqui.

— Você quer me contar alguma coisa?

— Eu tenho alguma coisa pra contar?!

— Não sei, me diz você.

— Bom, o Murilo...

Sim, claro e com certeza eu ia puxar um assunto nada a ver? Mas não dá pra enrolar o Filipe, por mais que eu tente só por tentar.

— Milena.

— Eu?

— Você realmente ainda...?

Antes que ele diga alguma coisa, apenas assinto.

— Mas Milena...

E antes que diga algo mais uma vez, intervenho:

— É só que é bem embaraçoso encará-lo e dizer o que fiz.

— Foi algo compreensível, dada à situação. E a gente já dividiu tanta história mais. Estou surpreso que se sinta assim.

Filipe me conduz conforme o ritmo e nos embala nas entradas das flautas da música com uma valsinha. É diferente da última vez que dançamos. Ainda tenho pouco jeito pra dançar, mas até que tenho melhorado bastante.

— A gente nunca conversou diretamente sobre isso e... sei lá. Ainda estou procurando um buraco pra enfiar minha cara.

— Se for contabilizar meus erros, Milena, eu estaria tão enterrado que já estaria a meio caminho do Japão. Isso se já não estivesse lá! Silveira, como você bem viu, queria me enterrar e por grandes motivos.

E ele diz isso sorrindo, feliz da vida. Orgulho deixa uma pessoa bestinha, não deixa? Reprimo um riso, mas entro na brincadeira.

— Ah, mas esse velório seria diferente.

— Justamente. E eu já te perdoei. Não que precisasse, mas se isso lhe parecer necessário...

— O senhor ainda não me deixou pedir desculpas.

Orgulho também deixa uma pessoa vaidosa e pedante. Me dê um desconto, ainda estou aprendendo.

— O senhor está no céu. Nada de senhor. Você.

— Mas o senhor é meu chefe!

— Aqui não sou chefe. Sou... seu amigo.

É bem verdade que eu já soquei, bati, dei tapas e pontapés em alguns amigos. Filipe já foi minha vítima, assim como seu filho. Nessa lógica, temos mais que meio caminho andado.

Momentos que eu não me esqueci, diz o Roberto Carlos.

Eu sei que é você, universo!

Espio que Vini e Iara estão passando por detrás de Filipe, me espiando também, e compartilho uma expressão de cúmplice com eles. Não minto que já estou louca para dizer para Djane que o filho dela tava dançando música lenta, coisa que Vini às vezes se nega.

Ou talvez eu deva seguir o conselho de minha vó, de aproveitar o momento e guardar comigo. Mas nada me impede de relatar o caso.

Respiro fundo e finalmente encaro meu sogro, na cumplicidade.

— Desculpa, Filipe. Por ter quebrado o vaso no Vini. Por ter fugido e ignorado o assunto dessa e da última vez.

Ele bem recebe o pedido com um assentir, sem se gabar, e, sem aviso, me roda às clássicas palavras do rei: “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”. Dou um pequeno gritinho pela surpresa e volto à posição às gargalhadas. Bote emoções nisso!

— Desculpo.

Palhaça que sou, adiciono uma promessa ao fim da música.

— Prometo que não faço mais.

— Nem no Murilo.

— Nem no Murilo!

Mas eu estou aqui vivendo esse momento lindo... Dançamos mais, aos sorrisos e conversas amenas. A música finaliza e as palmas do dvd se intensificam com as palmas da pizzaria. Nessa hora que percebo que o local estava cheio de gente dançando. Uma nova música engata, que não conheço bem, cantada por uma mulher, e os casais voltam a dançar. Espiei Vini se encaminhando pra mesa com Iara e Flávia o puxando pelo braço de volta. Filipe e eu retomamos a pequena valsa. Se isso é valsa. Não sei. Algo bem parecido.

Quando acho que agora só dançaríamos, Filipe começa:

— Quero que nunca se sinta desconfortável, Milena. Não comigo. Sempre converse, ok?

Assinto, agora divertida.

Sempre me sinto uma boba quando acontecem coisas assim.

— Ok. Posso perguntar uma coisa? De outro assunto.

— Pergunte.

— O sen... Você e a Iara já vão se mudar para a casa do vô-sogro?

— Sim. Falei com meu pai essa semana e acho que assim que voltarmos, vamos aprontar as coisas. Depois de anos, acho que essa é uma das melhores coisas a se fazer. Voltar pra casa.

Faz um tempo que prefiro não me meter no que diz respeito a ele e vô-sogro. Eles tinham às suas maneiras de se entender e vinham fazendo isso sozinhos. Sabíamos todos que havia muita louça suja para lavar quando tudo explodiu, e acho que agora eles estão de bem, colocando a louça pra secar. Ou, talvez colocando cada peça no lugar.

— Fico muito feliz por vocês.

— Obrigado. Acho que é um recomeço mais acertado.

A gente erra tentando acertar.

— Sim, isso mesmo.

Mais que perdoar uns aos outros, a gente também precisa se perdoar. E é assim, recheada de mantras, certezas, filosofias, o que seja, que eu seguia em frente. Experimentava essa nova atitude.

Me parece, assim, meu recomeço mais acertado.