Make a Memory

Capítulo XXVI – Difícil Diálogo


...

Longos minutos passaram até que Félix saísse do quarto do pai. Eu fiquei esperando o meu amor na sala e, tanto eu quanto a mãe, a avó e o filho dele estávamos apreensivos para saber se dali sairia um Félix em paz ou se tudo acabaria em uma nova briga. Mas, parecia que tudo ia para o lado da paz. Finalmente, entre ele e o pai estava havendo uma conversa civilizada, sem falar no gesto que o doutor César teve para com ele que surpreendeu a todos nós.

Quando o Félix saiu do quarto, veio em nossa direção. Sua expressão era calma, até serena. Ele parecia tranquilo, como se tivesse tirado um peso das costas. Eu não me demorei a ir até ele e abraça-lo.

— Tudo bem, meu amor?

— Tudo bem, carneirinho.

— Como foi a conversa com o seu pai.

— Foi... Interessante, eu diria.

— Interessante? Como assim?

Pilar também quis saber. – Do que vocês falaram, Félix? Ele te tratou bem?

— Tratou, mãe. Tratou muito bem.

— Eu nunca que ia imaginar aquela reação do César! – Pilar exclamou.

— Nós dois conversamos bastante. Eu acho que ele entendeu.

— Entendeu o quê, meu amor? – Perguntei e ele me disse algo inesperado.

— Ele entendeu que, não importa o que me aconteça, como eu esteja, ou quem eu pense ser, sempre serei eu mesmo. Eu não posso fugir de quem sou. E entre as coisas que me fazem ser quem sou... Está você, carneirinho.

— Eu?

— Você. Acho que o meu pai finalmente entendeu que eu te amo.

Senti um arrepio com aquela declaração.

— Você... Você disse isso a ele?

— Disse.

— Verdade? E ele?

— Ele quer te conhecer.

Senti como se meu coração parasse nessa hora. Eu só não sabia se era por emoção ou por medo.

— M-Me conhecer?

Dona Bernarda também duvidou. – Félix... Você tem certeza que o César quer ver o Niko?

— Tenho.

— Mas, você disse a ele que o Niko é o seu namorado?

— Sim. Eu falei para ele quem é o Niko e o que ele significa na minha vida. E, por isso, ele quer conhecê-lo.

Pilar e Bernarda se olharam enquanto Jonathan mantinha uma cara de espanto. Não era pra menos, eu também estava espantado por saber que o doutor César queria me ver e, claro, com receio dos motivos que o levaram a pedir isso.

— Tá bom, eu vou lá, mas... Você vem comigo, né?

— Não, carneirinho, o meu pai quer te ver sozinho.

— S-Sozinho? Pra quê?

— Eu acho que ele não quer que você se influencie pela minha presença... É algo assim. – Ele falou com um sorrisinho. – Vai lá. Vai ficar tudo bem.

—... Tá... Então, tá.

Ainda meio relutante fui até o quarto do doutor César. Bati na porta e ele me pediu para entrar. Eu entrei ainda imaginando o quê o Félix e ele poderiam ter conversado tanto para ele querer me conhecer. Aliás, por que eles falaram de mim?

...

... ... ...

—... Quem é ele, Félix? – Meu pai me perguntou me deixando sem saída. Mas, eu já tinha lhe dito, na última vez que discutimos, que eu tinha dormido na casa do Niko e que sentia algo por ele. Havia chegado a hora de falar abertamente sobre os meus sentimentos e ele precisava me ouvir.

— O senhor está falando do... Do rapaz loiro que entrou, não é?...

— Você me ouviu. Ele é quem estou pensando, por acaso?

— E... Por um acaso, em quem o senhor estaria pensando?

— Félix, você já está começando a testar a minha paciência como sempre?!

— Está bem, pai, está bem. Eu não quero brigar de novo com o senhor como da última vez. Eu vou contar. – Tomei essa decisão, mas pensei bem antes de falar. – Aquele é... Ele é o meu melhor amigo.

O silêncio dele me demonstrou claramente que ele estava duvidando. Mas, eu ainda não tinha terminado de falar.

— Hum! Seu amigo. Sei...

— É verdade, pai. Aquele é o meu melhor amigo... E também é o amor da minha vida.

O silêncio de novo. Agora era pura frieza, eu quase podia sentir o gelo da sua expressão.

— N-Não vai dizer nada, pai?

— Não. Continue.

Respirei fundo e com a cara e a coragem, lhe falei tudo que queria do fundo do meu coração.

— Pai, aquele é o Niko. Eu já lhe falei sobre ele. Eu... Eu não sei se lhe falei tudo, mas... Ele é muito, muito importante para mim. Há pouco eu descobri que ele e eu temos um relacionamento, e não só isso, mas também que eu estava indo para a casa dele quando sofri o acidente.

Ele apenas me ouvia, com o olhar distante. Eu senti que ele prestava atenção às minhas palavras, apesar de parecer pensativo. Já que ele não dizia nada, eu continuei. Continuei e quase me deixo levar pela sinceridade.

— Eu não vou mentir para o senhor... Eu ainda não me lembro de tudo. Não me lembro de como sofri esse acidente, por que saí de casa naquele dia e queria ficar com ele... Eu só sei quem eu sou e como sou. Sei que sou Félix Khoury. E devo isso ao Niko.

— Foi ele quem te contou quem você realmente é? – Ele me perguntou friamente.

— Não, não foi ele. Aconteceu muito coisa nesses últimos dias que me fizeram descobrir tudo. Mas, agora quando todo mundo pensou que eu fugi, na verdade, eu só saí dessa casa para encontrá-lo... De novo. Entende? Da mesma maneira que eu fiz quando sofri o acidente, eu fiz de novo. Eu saí dessa casa só para encontrar o Niko. Eu queria vê-lo, queria ficar com ele, queria que ele me desse paz! A paz que o senhor havia me tirado.

— Eu?

— Sim, pai, você. Nós discutimos, nós praticamente brigamos... E eu tinha acabado de voltar pra casa depois de um terrível acidente que me custou minha memória.

Ele voltou a olhar para o nada, apenas ouvindo o que eu tinha a dizer.

— Você compreende? Você brigou comigo quando eu tinha acabado de voltar de uma tragédia que me custou a vida! Sim... Minha vida. Por que a partir do momento que eu perdi todas as minhas memórias, que achei ser outra pessoa, eu perdi a minha vida. ... E o que você fez, pai? Você... Não me deu nenhuma chance. Nenhuma chance de me ouvir, de conversar, de me explicar o que estava acontecendo, você só... Só me mostrou o quanto você não gostava de nada do que eu te dizia, de nada do que eu... Sou. Entao fui eu que compreendi... Você, simplesmente, nunca gostou de mim. E você sabe como eu entendi isso, não sabe, pai? Eu entendi isso no mesmo instante em que recordei outra discussão nossa. E pelo visto tivemos muitas, né? Uma discussão na qual você jogava na minha cara que você nunca me quis. Que você nunca quis um filho como eu, porque eu nunca seria igual ao seu Cristiano.

Ele olhou para mim com um olhar que eu não saberia explicar e comentou:

— É verdade. Você não é... Não é nem nunca será igual ao Cristiano!... Por outro lado, eu não tenho como saber como o Cristiano seria.

Suas palavras me deixaram confuso.

— O que quer dizer?

Foi aí que eu senti que ele se abriu comigo por alguns minutos ao me contar um sonho.

— Sabe, Félix... Um dia desses, eu tive um sonho. Sonhei com o Cristiano. Ele era só um menino... Corria por esse jardim afora, se divertia como qualquer criança... Era feliz. Era feliz com muito pouco. ... No sonho ele se escondia para eu procurá-lo. Eu procurava e ele se escondia de novo. E mais, e mais... Até que eu não pude mais encontrá-lo. ... E sabe quem eu encontrei no lugar dele?... Você.

—... Eu?

— Sim. ... E não conseguia entender por quê. Momentos antes, no mesmo sonho, ele te jogava dentro da piscina. Você era só um bebê, no seu carrinho, e... E o teu irmão te empurrava na piscina e corria. Eu te resgatar um de vocês, só um... E... Deixar o outro morrer.

— E quem você deixou morrer?... Eu. Não foi?

— Foi. Eu não pude fazer nada por você. Eu só te via morrer enquanto eu buscava o Cristiano. Mas, foi aí que... No lugar dele, quem eu encontrei foi você.

Eu não estava conseguindo entender muito bem meu pai queria chegar me contando aquele sonho, mas foi aí que ele me disse:

— Eu não compreendi esse sonho tão rápido. Na verdade, eu nunca dei importância a essas coisas. Mas... Depois de tudo... Depois que você começou a agir como se fosse o Cristiano, eu cheguei a uma conclusão...

— Qual?

— Que eu sentia tanta falta do meu outro filho que quis te transformar nele. E quando, finalmente, se transformou nele... Eu achei que você poderia ser o filho que eu sempre quis. Aquele com o qual sempre sonhei.

— Você queria um filho igualzinho a você, não é? Por isso que quando acordei sem memória, achei ser o Cristiano. Foi porque eu achei ser o seu filho perfeito. Talvez... Porque eu quisesse ser esse filho perfeito pra você.

Ele me olhou e me chamou de um jeito que eu ainda não havia escutado. Provavelmente, nunca.

— Meu filho...

Ele me chamou de “meu filho”! Aquilo me comoveu de uma forma inexplicável. E ele completou:

—... Você é meu filho... Mas, não é perfeito. Ninguém é.

A vontade de chorar voltou, mas eu me contive dessa vez. Ao mesmo tempo, precisei desabafar.

— Se sabe disso, sabe que ninguém é perfeito, porque parece que você sempre quis que eu fosse? Por quê?

—... Porque eu pensava sempre estar certo de tudo. E foi por pensar assim que fiquei como estou. Preso a uma cama, com um lado do corpo paralisado e quase cego.

— Como que você ficou assim?

— Disso você não se lembra, não é?

— Não.

— Então, eu não vou te contar. Não tem porque reviver essa maldita lembrança.

— Tá bem...

— Se quer um conselho... Não queira saber mais do passado do que você já deve saber. Não queira mexer em feridas cicatrizadas. A dor é muito maior quando eles se reabrem e o sangue volta a jorrar.

— O que devo fazer, então?

— O que você pretende? Diga você.

— Eu pretendo viver o meu presente, pai. E construir o meu futuro.

—... Você está com as mesmas ideias de antes.

— As mesmas ideias? – Estranhei. Do que será que meu pai já sabia? Será que eu já havia lhe contado antes os meus planos? – Eu... Eu te contei alguma coisa? Alguma coisa que eu queria fazer do meu futuro?

— Talvez você tenha me contado algo...

— Pai, precisa me dizer...

— Não, não preciso. Você não tem aquele rapaz pra te contar tudo que você quiser? Pergunta pra ele.

Era indefinível a atitude do meu pai.

— Tudo bem... Já que você não me conta nada, eu é que vou contar uma coisa. É algo que... Eu pensei muito desde que eu soube e... E tomei a decisão de tornar realidade.

— Fale.

— Eu descobri que eu tinha prometido a um garotinho que eu me tornaria pai dele.

Ele fez uma cara de total estranhamento.

— Como é?

— É isso mesmo que ouviu, pai...

— De que garoto está falando?

— Estou falando do filho do Niko.

— Como é? – Agora a questão soou diferente, mas não menos tensa.

— O Niko tem dois filhos, um garotinho de uns sete, oito anos e um bebê. Quando eu cheguei à casa do Niko, esse menino veio até mim e me abraçou. Ele me abraçou com tanto carinho, pai... Era como se eu fosse muito importante pra ele, mas muito mesmo. Eu vi os olhinhos dele brilharem comemorando que eu havia voltado... E ele até se emocionou quando me pediu pra ficar com eles.

Eu também já estava me emocionando de novo contando sobre o Jayminho. Meu pai apenas ouvia atento.

— E sabe o que eu respondi? Eu respondi que ia sim ficar com eles... Que não ia mais embora.

—... É isso o que você quer?

— É o que eu mais quero.

Um silêncio se estabeleceu após minha resposta. Eu tinha certeza do que dizia, mas não tinha nenhuma certeza do que o meu pai estava achando de tudo aquilo.

— Você não quer ficar nessa casa, então? – Ele indagou após alguns segundos.

— Não. Sinceramente, eu não tenho vontade de ficar nessa casa de jeito nenhum. Eu quero voltar para a casa do Niko.

— Por que não vai, então? Se não quer ficar aqui que é sua casa, vá. Vá ficar com ele.

— É isso o que você quer? – Joguei a pergunta de volta para ele, mas ele não me respondeu. Pelo contrário, contornou com outra pergunta.

— Importa para você o que eu quero?

— Importa sim. Você é meu pai e quero saber o que acha disso.

— Quer saber mesmo o que eu acho?

— Quero.

—... Eu acho que eu deveria conhecer esse tal de Niko.

— Oi?

— É isso mesmo. Eu quero conhecê-lo. Quero saber por que você quer tanto ficar com ele. Por que você o procura sempre que foge dessa casa, por que você quer até... Se tornar pai dos filhos dele? Como pode isso? Eu não entendo.

— Não tem o que entender, pai. Eu quero formar uma nova família com o Niko, uma nova vida. Eu não tenho mais nada da minha própria vida, porque eu a esqueci!... Por isso, tudo que mais quero é ter essa chance, a chance de ter uma nova vida ao lado dele. Porque eu sinto que só ele me completa. Por isso eu preciso tanto.

— E por isso eu quero conhecê-lo. Quero justamente saber por que você precisa tanto dele assim.

— Ok... Então, eu vou pedir para ele entrar...

— Não. Com você não. Eu quero que ele venha sozinho.

— Por quê?

— Porque quero conversar com ele e que ele seja sincero. Não quero que ele se influencie pela sua presença e fale coisas só para te agradar.

—... Eu não tô entendendo direito, mas... Tudo bem, eu não consigo entender o senhor mesmo. Eu vou chamá-lo.

Fui saindo, mas meu pai me chamou: - Félix.

— Sim?

— Nós ainda não terminamos.

— Eu achei que já...

— Não. Ainda preciso te perguntar uma coisa antes do... Do seu namoradinho entrar.

Eu tive que dar uma risadinha. – Pelo menos você aceita que ele é meu namorado.

— Isso é sério, Félix! Diga-me... O que você seria capaz de fazer por ele?

— Pelo Niko?

— Sim.

Pensei, e descobri que talvez houvesse apenas uma resposta para aquela pergunta.

— Pai... Na primeira vez que eu “fugi” daqui para ficar com ele... – Fiz aspas na palavra fugir. – Eu sofri o acidente e perdi a memória. Na segunda vez, eu me perdi, fui roubado, enganado e descobri barbaridades sobre mim. ... Quer saber o que eu seria capaz de fazer por ele? Eu fugiria de novo. Quantas vezes fosse preciso. Infinitas vezes se eu pudesse. Só para quando eu voltasse eu poder ver o brilho nos olhos dele ao me reencontrar outra vez.

—... Pode ir agora. – Foi tudo que ele disse e eu finalmente saí do quarto. ...

... ... ...

...

— Queria me ver, doutor César? – Entrei no quarto, reticente. Fiquei junto à porta, mas ele me pediu para entrar, educadamente até, para minha surpresa, ao mesmo tempo, de um modo que me dava calafrios.

— Entre. Sente-se.

Eu me sentei numa cadeira que havia no quarto e estava do outro lado da cama. Ele falou em tom de reclamação:

— Fique de frente para mim, senão não poderei vê-lo.

— Ah, s-sim...

Eu não queria deixar transparecer o meu nervosismo, mas confesso que a situação me deixava bastante apreensivo. Até me atrapalhei na hora de puxar a cadeira, fiquei em dúvida se a arrastava ou levantava, acabei fazendo as duas coisas até conseguir me sentar de frente para ele. Parecia que eu estava me preparando para ser interrogado. E era quase isso mesmo.

— Eu serei breve. Tenho algumas perguntas para lhe fazer.

— Pode fazer.

— O que quer com o Félix?

— O que quero? Não entendi... – Já comecei sem gostar muito daquela pergunta. – Será que o senhor não quis perguntar o que eu sinto por ele?

— Hum... Você entendeu, então. Fale.

Respirei fundo antes de dizer qualquer coisa, pois já havia notado que aquela conversa seria longa e difícil.

— Doutor César, eu amo o Félix. Amo de verdade, de todo meu coração.

— Já disse o que sente. Agora diga o que quer com ele.

— O que quero com ele? Como assim?

— Quais são seus planos?

— Bom... Eu não sei bem em que sentido o senhor está perguntando isso, mas os meus planos com o Félix são de formar uma família.

— Família... – Ele fez um barulho como se eu falasse de algo que ele não acreditava. Era como se ele falasse de família do mesmo modo como alguém fala de saci pererê e mula sem cabeça.

— O senhor não acredita que possamos formar uma família?

Ele nem me respondeu. Jogou mais uma questão.

— E você acredita?

— Claro que sim!

Antes mesmo que eu pudesse argumentar algo mais ele comentou:

— Eu soube que você tem filhos.

— Sim, tenho. Dois. O Jayminho tem oito anos e o Fabrício poucos meses...

— Como eles nasceram?

— Oi? Como nasceram?...

— Você entendeu muito bem o que eu quero saber. Vocês não gostam de mulher, então... Como esses meninos vieram ao mundo?

— Ah... É isso. Bem, eu queria muito ser pai, esse era um dos meus maiores sonhos e eu consegui realizar de duas formas. O Jayminho eu adotei há pouco tempo. Muita gente quer adotar só bebês, mas eu não me importava com a idade da criança desde que eu pudesse cuidar dela, dar todo o meu amor e carinho. Daí eu conheci o Jayminho num abrigo e aquele menino me arrebatou com seu jeitinho, sua inocência... Acho que ele arrebatou meu lado paterno. Já o meu Fabrício nasceu de uma barriga solidária. Ele é meu filho biológico com um óvulo de uma doadora anônima. Era um sonho que eu queria realizar há muito tempo e não tinha tido a oportunidade...

— Hum... Você não se importa com mais nada desde que realize seus sonhos. Não é?

Aquela sua afirmação me soou muito estranha.

— Não entendo o que o senhor quer dizer.

— Não pensa no que esses meninos vão passar quando crescerem?

— Eu... Eu penso, sim...

— Não parece.

— Do que exatamente o senhor está falando? Por que, que eu saiba, qualquer criança pode passar por muitas coisas...

— Estou falando do fato de terem um ou dois pais e nenhuma mãe.

Finalmente entendi que tipo de conversa ele queria ter.

— Ah... Já sei. Eu já ouvi muito esse tipo de... De questão, doutor César.

— É uma questão importante, não acha?

— Ah, é, é muito importante. Tanto que eu já sei o que vou dizer aos meus filhos quando perguntarem sobre isso. Eu vou dizer que não existe um só tipo de família, existem vários tipos. E em todos, o que mais vale para que esse conjunto de pessoas possa ser chamado de família, é o amor que existe entre eles.

Eu sei que dei praticamente um fora no doutor César, mas se ele estava pensando que viria com esse papo preconceituoso pra cima de mim, eu precisava mostrar que ele estava muitíssimo enganado.

—... Pelo visto você sabe exatamente o que dizer.

— Algumas coisas eu sei. Não posso saber de tudo agora, até porque ninguém sabe de tudo e não tem como prever o que vai acontecer. Mas, com amor tenho certeza de que o futuro não será tão complicado quanto as pessoas gostam de fazer parecer.

— Você é desse tipo de gente que acha que o amor resolve tudo.

— É nisso que eu acredito, doutor César.

— O mundo não chegou até aqui por pessoas que amam. Foi por pessoas que pensam.

Suspirei profundamente para manter a calma diante daquela conversa.

— Já me disseram que eu não penso com a cabeça e sim, com o coração. Mas... Com todo o respeito, doutor César, se pensar com a cabeça é pensar como o senhor pensa, eu quero continuar ouvindo só o meu coração.

Ele também respirou fundo e vi que ele não estava nada satisfeito com minhas palavras. Era de se esperar. Mas, eu ainda não estava certo de onde ele queria chegar.

— Isso é um grande erro. Olhe para mim... Foi quando eu dei ouvidos ao meu coração, aos meus sentimentos, que eu fiquei assim. Primeiro cego, depois preso a uma cama ou, no máximo, a uma cadeira de rodas.

— Mas, isso não foi culpa sua, doutor César. Foi culpa de quem fez isso com o senhor. O seu erro foi acreditar num amor que não era recíproco. Mas, eu sei que o Félix me ama tanto quanto eu a ele. – Falei de forma carismática, para que ele visse que eu não era seu inimigo. Porém, ele não viu de tal forma.

— Até onde vocês vão chegar com essa estupidez?!

Ele perguntou zangado. Lamentei por ter tocado num assunto que, pela reação, devia ser o calcanhar de Aquiles dele.

— É... D-Desculpa, doutor César, eu não quis ser indelicado, eu só...

— Eu perguntei até onde pretendem ir com essa estupidez!

— Qual estupidez? – Eu também já estava perdendo a paciência, mas da minha parte era mais tristeza que raiva.

— Essa ideia estúpida de fazer o Félix ser uma espécie de pai para os seus filhos, de ele ir morar na sua casa, porque ele não quer ficar mais aqui...

— Isso que o senhor chama de estupidez, eu chamo de amor, doutor César. É por amor que seu filho e eu queremos formar uma família e ficarmos juntos pra sempre. E o senhor, ao invés de ser contra, deveria apoiá-lo depois de tudo pelo que ele passou, deveria querer que ele fosse feliz.

— Eu quero que ele seja feliz.

— Quer? – Indaguei incrédulo. – Desde quando? Se o senhor nunca fez nada para o bem dele...

— Eu nunca fiz nada? Tudo que eu fiz para o Félix foi para ele ter o melhor...

— Não. Não, senhor. Tudo que o senhor já fez para o Félix foi para fazê-lo melhor segundo sua própria percepção do que é uma pessoa melhor, um homem melhor. Mas, sinto lhe dizer, doutor César, que nada deu certo. Porque o Félix nunca foi feliz seguindo o seu método de vida.

— Eu sei.

— Quê? – Indaguei ainda mais incrédulo. – O senhor sabe que ele nunca foi feliz? Tem noção disso?

— É claro que tenho! O que acha que sou? Um idiota?... Eu sei muito bem que agora, depois de tudo pelo que ele passou, ele tem uma segunda chance, uma nova chance de viver uma vida totalmente diferente, de ser feliz. E eu quero que isso aconteça.

— O... O senhor quer?

— Quero. Acredite ou não, eu quero que o meu filho tenha uma nova chance. Será uma nova chance para ele... E para mim.

Eu mal podia acreditar no que ele estava me dizendo. Parecia bom demais para ser verdade. E, de fato, era.

— Mas... Então... Se o senhor quer que ele seja feliz, deixe que ele venha comigo pra casa! Eu lhe garanto que ninguém vai fazer o Félix tão feliz quanto eu. Ninguém vai cuidar dele e amá-lo como eu o am... – Antes que eu pudesse terminar, ele me interrompeu.

— Eu quero que você deixe o Félix em paz!

—... Oi?

— É o que você ouviu. Deixe-o. E deixe que ele te esqueça.

— O que o senhor está me pedindo? – Eu ainda não queria acreditar.

— Que se afaste do Félix.

— Que... Que me afaste? E deixar que ele me esqueça... De novo? Ele já me esqueceu uma vez, doutor César, não vou deixar que isso aconteça de novo, nunca mais!

— Você precisa fazer isso. Por mim eu não permitiria que meu filho fosse embora com você, mas não posso fazer nada. Só posso lhe pedir que não o leve.

— Mas... Não... Não, não, eu não posso crer! E tudo que o senhor acabou de dizer sobre fazer o Félix feliz, dar uma nova chance?...

— É justamente por querer uma nova chance que eu vou lhe pedir que não leve o Félix, não afaste o meu filho de novo de mim!

...