Não sei bem dizer se estava morrendo mais de frio ou de vergonha.

Quando decidi que ia abrir a porta, o carro dos bombeiros chegou. Eu sabia que eram eles por causa da sirene, a dos bombeiros era mais demorada enquanto a da policia era mais rápida, mas o baque na janela foi o que confirmou minhas suspeitas. Eles queriam saber se eu já tinha conseguindo me matar, mas como havia previsto o box não encheu a tempo, agora ele estava com 5 ou 7 dedos de água. Definitivamente ia demorar muito pra que eu me afogasse.

— Droga – Resmunguei comigo mesma. – Devia ter pensado nos remédios no armário.

Mas não dava mais tempo. Eu tinha que sair logo dali.

Mais vermelha que um pimentão, fato extremamente curioso em pessoa mais escuras, eu abri a porta. Todo mundo parou. Me olhavam com cara de assutados e pareciam muito confusos, mas eu não estranhei a reação deles, afinal eu parecia ter acabado de sair de um filme de terror: estava ensopada, com cara de quem tomou o maior porre de sua vida e passou horas chorando e com um lindo e gigante corte na testa.

Pensei no que dizer, algo que esclarecesse tudo e os fizesse entender minha crise, mas não me veio nada além de pirar. Porque foi isso que aconteceu, eu pirei. E na realidade é bem difícil disso não acontecer depois da casa, das pessoas e… Depois de tudo.

Passei direto por todos como se nem existissem e fui pro meu quarto. Dessa vez ninguém gritou ou tentou arrombar a porta, talvez ainda estivessem confusos com o que viram. Vesti uma blusa qualquer, um short com um rasgo enorme que minha mãe odiava com todas as forças e insistia pra eu jogar fora e uma sandália, apesar do meu amor pelos tênis eu não estava nem um pouco afim de calçá-los. Enrolei por mais algum tempo no quarto, brinquei com a outra eu do espelho e tentei, inutilmente, deitar na cama e fazer como nos sonhos: apertar os olhos, abrir e ver que tudo voltou ao normal, que os monstros ficaram pra trás. Mas, pra minha tristeza, não funcionou. Aquilo era real, tudo era real, cruel e desesperadoramente real.

Quando desci as escadas minha mãe estava em pé andando em círculos. Ela parou, olhou pra mim, abaixou a cabeça e voltou a andar. Podia jurar ter visto uma lágrima caindo no chão. Apesar da expressão aflita ela parecia bem mais calma, só um pouco nervosa. Os policiais contaram pra minha mãe tudo o que aconteceu, ou pelo menos o que achavam que aconteceu, e eu soube disso quando ela falou comigo. Ela não reclamou sobre meu short ou sobre meu cabelo, ela fez uma coisa que me machucou mais que qualquer sermão.

— Por que você não me contou?

Aquilo doeu. Doeu de uma forma estranha porque eu não sabia porque não tinha contado, eu não sabia direito o que ou porque tudo aquilo estava acontecendo comigo, e sinceramente, não queria saber. Mesmo que soubesse era doloroso demais falar sobre isso com minha mãe. Decidi mudar de assunto como quem fala sobre a nota baixa na prova de física.

— Vamos logo pra delegacia. – disse ainda tremendo.

Eu não esperei uma resposta, me dirigi até a porta como se nunca tivesse ouvido ela perguntar nada. Senti a respiração de um policial atrás de mim, parecia preocupado mas ainda sim aliviado, pelo visto ele também tinha se cansado de brincar de pega-pega e uma D.R. familiar era o que ele menos queria naquele momento.

Quando chegamos me arrependi amargamente da ideia que dei, preferia ter ficado encarando minha mãe por séculos a ter de ir àquele lugar. Era mal iluminado, fedia a mijo e bebida e as faxineiras pareciam não ter notado a enorme poça de vômito no tapete que tive que desviar. Provavelmente toda aquela confusão foi causada por um único bêbado que se esquecera de perguntar onde ficava o toilette.

Qualquer pessoa antes de prestar um depoimento passa por um procedimento padrão: digitais, ficha com dados pessoais e as fotos. O que tinha na minha ficha?

Nome: Anna Bolena M. de Andrade;

Idade: 17 anos (dezessete);

D.N.: 26/11/1997;

Estado Civil: Solteira;

Caso: 6531.8/45 Investigação sobre ocultação de cadáver.

Eu parecia relativamente bem antes de ler a palavra cadáver, memórias, imagens, tudo passando rápido demais pra ser processado mas devagar o suficiente para eu lembrar. Foi aí que tudo começou a girar. Ouvi minha mãe perguntando o que estava acontecendo, tentei responder mas minha boca parecia estranhamente dormente e só consegui falar um "Urgh" desajeitado antes de tudo começar a escurecer e eu sentir minha cabeça batendo no chão.

Eu desmaiei.