Eu sonhei que estava em uma sala que me lembrava muito a última sala de Harry Potter e a Pedra Filosofal, a que Dumbledore projetara para guardar a pedra. Era longa, mas ainda dava para ver seu fim, tinha pilares que talvez fossem somente decorativos pois estavam esculpidos com histórias de Hogwarts e com o brasão das casas em cada um. A sala era fracamente iluminada por algumas tochas que estavam quase no fim. Apesar da falta de luminosidade consegui enxergar o espelho de Ojesed, era magnífico como o livro descrevera e tinha uma belíssima moldura de talha dourada e pés em formato de garras.

Fitei o espelho por algum tempo, dei umas três voltas nele até criar coragem para encará-lo. Eu tinha medo, medo de descobrir o meu maior desejo, medo de enxergar a melhor e a pior parte de mim, medo de me revelar. Depois de muito pestanejar eu parei de frente ao espelho e olhei diretamente pra ele.

Primeiro eu me vi na sala, sozinha, assustada e ainda com aquele corte na testa. E continuou assim por um bom tempo. Que idiotice, pensei comigo mesma, eu não tenho um sonho nem desejo. Quando pensei em sair dali uma fumaça negra me cobriu até a cintura. A fumaça era espessa e formava figuras estranhas que me lembravam olhos observando alguém num lugar escuro. Com a mesma velocidade que apareceu, a fumaça sumiu e em seu lugar estavam centenas de pessoas mortas, algumas com ossos pra fora, outras sem parte da pele. Aquilo era horrível, tentei sair da frente do espelho mas algo parecia me prender ao chão e quanto mais eu tentava sair mais presa eu estava ao espelho. Tentei virar o rosto, olhar pra trás, mas eu parecia estar em transe, estava totalmente hipnotizada e com o olhar fixo no espelho.

De repente um silvo agudo começou a ecoar pela sala. Não tinha ninguém lá, e mesmo que tivesse era impossível alguma coisa humana emitir um som tão vazio e sem vida. Mas também não tinham centenas de mortos aos seu pés quando você entrou, briguei comigo mesma.

Me assustei quando senti uma coisa gelada encostar em minha perna, parecia uma mão mas nenhum ser vivo teria a mão tão fria. Ainda olhando pelo espelho eu vi o que estava rezando para que fosse mentira, um cadáver estava segurando minha perna, agora todos eles pareciam estar tentando se levantar com muita dificuldade e me usavam como apoio. Apesar de estarem mortos eles tinha muita força, lutei, puxei, bati minha perna no chão mas não havia nada que os fizesse me soltar. Não sei quanto tempo isso durou, mas sei que eu estava ficando cansada, agora tinham quatro em cima de mim, me chamando pelo nome com uma voz aguda que pareciam agulhas furando meus tímpanos, me puxando para que eu me juntasse a eles e enquanto isso o som irritante e mortífero só aumentava. E ele aumentou tanto que eu jurava que meus ouvidos iam explodir quando eu desisti de lutar e me deixei cair em cima deles.

Eu gritava.

Eu gritava como nunca havia gritado em minha vida.

Eu não caí e fui devorada por eles, eu continuei caindo. Estava tudo escuro e gelado. Eu não via paredes nem fundo nem começo. Eu estava morrendo. Continuei gritando cada vez mais alto mas não havia ninguém pra ouvir, eu achei que ia ficar caindo eternamente quando senti mãos segurando minhas pernas e braços. Pensei que fossem os mesmos cadáveres me segurando então comecei a chutar e tentar me livrar deles. Foi aí que eu senti que estava em cima de alguma coisa, era macio, associei à um colchão. Lentamente eu parei de gritar, minha respiração voltou ao normal e eu abri os olhos. O lugar onde eu estava não se parecia em nada com o buraco sem fim aonde eu estava, na realidade era tudo branco com azul e tinha cheiro de eucalipto. Foi aí que eu me lembrei, eu havia desmaiado na delegacia e provavelmente teria que voltar pra lá depois pra depôr.

– Puta que o pariu! – Resmunguei alto demais de modo que as pessoas no corredor me olharam com cara feia.

Só então percebi as pessoas que estavam no quarto do hospital comigo: minha mãe, uma enfermeira e dois policiais. Me desculpei meio envergonhada sob o olhar de desaprovação de minha mãe. Ela odiava palavrões e me desligava de qualquer meio de comunicação se não o verbal caso me pegasse falado algo do tipo, resumindo, eu ficava de castigo. Mas a expressão tensa e raivosa do seu rosto foi se esvaziando e em seu lugar havia um olhar de cuidado e carinho. Ela estava preocupada comigo de verdade.

– O que aconteceu? Parecia que estava tendo convulsões, precisamos chamar os policiais pra te segurar. Você está bem mesmo?

– Foi só um pesadelo mãe, relaxa.

Eu menti. Não foi um só um pesadelo. A lembrança dos cadáveres chamando meu nome parecia tão real que senti vontade de vomitar. A enfermeira pareceu notar minha cara enojada porque no mesmo instante em que me ocorreu o pensamento ela mandou todos saírem, disse que eu tive um dia longo e que eu precisava descansar.

Dia longo, pensei comigo mesma. Pelos meus cálculos deveriam ter passado algumas horas desde a minha entrada no hospital.

– Er.. Enfermeira?

– Oi Anna, algum problema?

– Não, nada importante. Eu só queria saber a quanto tempo estou aqui.

Ela me olhou pelo canto do olho, procurou alguma coisa na minha ficha e andou em direção à uma bancada, parecia separar alguns remédios.

– Você deu entrada às 13:00 e agora são 22:40. – Parou de falar subitamente, respirou fundo e continuou enquanto andava em minha direção com uma bandeja nas mãos. – Tome seus remédios Anna e não se preocupe, você não tem nada, só desmaiou.

Aquilo me acalmou, engoli os remédios de uma só vez pra não sentir o gosto e me deitei. Percebi então que eu não sabia o nome da enfermeira, e quase como se tivesse lido meus pensamentos ela anunciou antes de sair.

– A propósito Anna, meu nome é Valentina, mas pode me chamar de Tina.

Valentina, aquele era sem sombra de dúvida, um dos ou se não o nome mais bonito já criado pelo homem. Adormeci antes de concluir meu pensamento. Sem cadáveres, sem espelhos, sem vozes, só eu a observar nuvens deitada em uma árvore. Ou Valentina tinha me drogado ou aquele foi o melhor sono da minha vida.

Acordei com a luz da janela diretamente no meu olho, e eu odiava como meu rosto era um imã solar então tentava dormir sempre com o rosto virado para a parede, mas eu capotei na noite anterior sem nem pensar nisso. Me virei para o outro lado como sempre faço e dei de cara com os dois policiais da noite passada. Eles realmente pensavam que eu ia fugir, o que era bem ridículo mas não vou dizer que não cogitei a possibilidade por alguns instantes. Soltei um sorriso bobo ao imaginar eles me observando dormir, mas rapidamente me repreendi mentalmente por isso.

– Bom dia flor do dia.

Era Valentina. Ela estava entrando de costas no quarto por conta da pesada bandeja que carregava sobre os braços. Eu só sabia que era pesada porque nela tinha o café da manhã mais reforçado que eu já tinha visto. Bolo, café, chá, panquecas. Até um abacate com açúcar e leite em pó que eu não comia a 3 anos.

– Coma tudo, hoje você tem um dia corrido. – Devo ter feito uma cara muito estranha porque ela começou a se explicar imediatamente. – Os brutamontes não te falaram que você vai depôr hoje? Pela sua cara não.

Me arrependi amargamente de ter comido um pedaço de bolo nessa hora porque ele parecia não querer descer até o estômago. Eu queria rir pelos policiais apesar deles nem parecerem se importar com o descaso da enfermeira, mas ao mesmo tempo queria correr em direção a janela e me jogar de lá. Eu ia depôr, eu ia ter que contar tudo, teria que mostrar meu bloco de notas.

Terminei de tomar o meu café lentamente, mas tão lentamente que um idoso riria de mim. Vesti uma roupa que minha mãe trouxera, um vestido amarelo cheio de babados que mais parecia um bolo de aniversário. Não tinha no livro de etiqueta sobre qual o melhor look para se depôr em uma delegacia que fede a mijo? Só então eu notei o enorme relógio bem de frente pra cama que eu estava e me arrependi de ter feito uma pergunta cuja resposta podia ter descoberto por mim mesma.

Os policiais pareciam impacientes mas eu não estava com um pingo de pressa e com uma vontade quase zero de agradá-los. Me despedi de Valentina e prometi que voltaria algum dia pra conversarmos, mas não tinha tanta certeza se cumpriria tal promessa. Fechei os olhos e fui em direção a porta com os dois policiais no meu calcanhar. Descemos de elevador, passamos pelo saguão principal e fomos em direção a viatura. Eu quase hesitei e quis correr até os perder de vista, mas as armas dos policiais balançando de forma tão amedrontadora me fizeram ficar quietinha. Durante a viagem, de cerca de 30 minutos, eu tentei puxar assunto com um dos policiais. Até hoje eu espero uma resposta dele.

Quando chegamos me lembrei do quanto eu odiava aquele lugar. Não havia mais vômito no chão e o cheiro da bebida deu lugar a um cheiro forte de lavanda, provavelmente de um aromatizante de ambiente de 1,99. Mas ainda sim aquele lugar era demasiadamente agressivo para mim e me dava arrepios tão ruins ou piores do que os que senti em frente ao espelho de Ojesed.

Agora não haveria para onde fugir, entrei numa sala e minha mãe estava lá. Me olhou apreensiva e depois abaixou a cabeça novamente. A sala era escura, apesar da lâmpada bem em cima de mim. Tinha uma mesa e duas cadeiras, todos de ferro, o que me deixava com mais medo daquele lugar. Tinha, como nos filmes americanos, uma câmera no canto da sala e uma parede espelhada mas que todos sabiam ser um vidro com policiais e investigadores atrás te encarando e buscando expressões que entregassem quando estivesse mentindo. O ar condicionado deixara todo o ambiente gelado demais, me lembrou do meu pesadelo e consequentemente senti aquele frio na espinha de novo.

Fechei os olhos e pensei comigo mesma, calma, foi só um sonho ruim. Olhei para os lados e minha mãe não estava mais lá, só havia um policial me vigiando. Ele me apontou a cadeira e eu sentei.

– Olhe para a câmera, diga seu nome completo e o que sabe sobre o caso 6531.8/45. Após o término do seu depoimento você será interrogada. – Algum policial por detrás do espelho disse isso, ele tinha a voz grave e sua respiração estava pesada. Me perguntei se era possível ele estar mais nervoso que eu.

Respirei, olhei para as câmeras e comecei a lembrar de tudo. Cada detalhe, cada folha de árvore, cada passo, cada pessoa morta. Com a boca meio trêmula eu comecei a dizer tudo.

– Dia 15 de setembro...