Made of Stone

XXXVII. De todas as tempestades do mundo


Talvez fosse a adrenalina ou aquela sensação de entorpecimento, mas minha vida estava girando tanto em torno do Alex que eu não pude sentir que as coisas estavam há um passo de virar de ponta cabeça, girando caoticamente sem direção.

Havia aquela iludida sensação de formigamento e plenitude, e no fundo vibrava a esperança de que minha vida finalmente houvesse entrado em sintonia com a vida dele.

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Ao recordar-me daquele dia, e dos dias que o seguiram, meu peito ainda aperta e meu estômago ainda revira. Talvez por piedade de mim mesmo, por lembrar exatamente de como me senti e por saber que meu coração era mais frágil do que é agora para suportar a primeira desilusão amorosa - e eu tampouco tinha maturidade aos quinze anos para processá-la adequadamente.

Mas o fato é que a vida passa por altos e baixos, e escapar dos baixos nunca foi uma opção. Por vezes, acontece pior, porque a vida pode ser tão cruelmente irônica que, em apenas um dia, consegue te jogar lá em cima, nas nuvens, e logo no outro extremo, no mais baixo do solo, pressionado com o que parecia ser o peso do mundo.

Alex era, afinal, uma bomba desarmada.

E restou a mim juntar meus pedaços espalhados pela explosão.

*

Eu estou doente.

Eu ando ansioso e nervoso e não consigo dormir. A ansiedade me faz comer mais do que eu normalmente comeria, mas em momento nenhum eu chego a sentir fome. Eu fico enjoado logo depois, meu estômago revira e minhas mãos tremem. Mas, nem ao auge de passar mal eu consigo me sentir tão mal quanto deveria. Um sorriso sempre brota no meu rosto independentemente da situação.

Eu checo o meu celular a cada cinco minutos. Eu não consigo finalizar um desenho sequer, porque minha atenção não está ali. Eu encaro os professores, os meus amigos, a minha família, enquanto eles falam e falam e falam, e eu nada consigo ouvir. Quando consigo parar quieto, tudo o que faço é encarar o nada e pensar nele.

“Estar doente de amor”, como vi em filmes, livros e músicas, nunca fez tão sentido. Pensei que era uma forma boba de dizer o quanto o amor ou a paixão eram sérios, intrínsecos e reais. Nunca me ocorreu que fosse algo literal.

Quero dizer, semana passada, quando ficamos juntos pela primeira vez, essa percepção começou a tomar forma. Mas talvez não fosse assim com todo mundo. Talvez só acontecesse com aqueles cuja causa de seus sintomas os contempla da maneira como Alex o faz comigo.

— Droga de parâmetros inúteis! — resmungava Cristina, amassando o teste entregue pelos professores. — Quem precisa saber as datas em que aconteceram essas merdas que mancham nossa história?

Alex abriu um sorriso lindo e eu o devolvi, mal conseguindo acompanhar a conversa.

— Nossa, as datas? — perguntou Korn, pegando a folha amassada de suas mãos e a abrindo. — Isso é sacanagem mesmo, eles deviam se limitar às décadas pelo menos.

Alex usava um boné desta vez, puxando os fios já longos pelo tempo sem cortar para trás, deixando o rosto à vista em todos seus detalhes perfeitos. Os olhos escuros, presos em mim, vez ou outra desviavam para os demais para então retornar o foco na minha direção.

Se isso não era o suficiente para me deixar nervoso, talvez os sons de pacote e salgadinho sendo mastigados por Ian ao meu lado, de maneira extremamente irritante, fossem.

Cristina estalou a língua. — Não importa — resmungou, mais uma vez, dando de ombros. — Eu dou meu jeito na próxima vez.

— Não querendo ser pessimista, amor — interrompeu Maze, com todo o cuidado do mundo —, mas me parece que você disse o mesmo sobre, pelo menos, umas cinco matérias. Geografia, literatura, físi... — Algo o interrompeu e eu foquei neles por um instante, vendo que Cristina dirigia um olhar frio para ele. — Desculpe.

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Escondi os lábios para não rir, desviando os olhos para o Alex novamente, que não pareceu tão empenhado em disfarçar o riso. A escuridão de suas orbes, porém, estava voltada para mim. Sorri de volta, mais uma vez, ao vê-lo piscar um dos olhos.

— Meu bem, se você quiser, eu posso te ajudar a estudar — interrompeu Bex, com um sorriso encorajador, mas a ruiva já negava.

— Não há necessidade — declarou, com ar de desdém, ao pegar o celular como se tivesse muito interesse nisto.

Bom, acho que eu já a conhecia o suficiente para declará-la orgulhosa. Não gostava de pedir ajuda, de demonstrar fraqueza ou sequer emoções, quando podia evitar. Ajudava a gente quando precisávamos, mas também evitava que fosse feito muito reboliço por isto.

Uma vez comentei que Magic havia gostado demais de uns biscoitos que compramos, mas que eram caros demais para dar na quantidade que ele gostaria, e ela apareceu com uma sacola cheia deles quando a panelinha foi lá em casa. Uma sacola cheiinha dos biscoitos de carne de unicórnio esculpidos com o ouro do baú no fim do arco-íris - ao menos é assim que imagino dado o preço absurdo - entregues a mim como se não fosse nada. Me atrevo a dizer que até meu “obrigado” a deixou incomodada, como se preferisse que eu os aceitasse em silêncio.

— Ao menos aceite as anotações da Grace, são muito boas — comentei, ao menos para fingir que estava participando um pouco da conversa.

Ouvi o som engasgado de onde Alex estava, quase afogado no próprio riso, ao perceber que eu pegava o bonde andando para disfarçar. Mas, em minha defesa, as anotações da Grace realmente eram boas. Ela só costumava tirar más notas no outro colégio por causa do bullying que sofria, mas sempre foi bem estudiosa e naturalmente inteligente. Grace já havia oferecido suas notas à Cristina mas ela, como de costume, havia negado qualquer ajuda.

— Confesso que não sou de muita ajuda com história, não, é meu ponto fraco — admitiu Korn, olhando-a por detrás dos óculos como se pedisse desculpas. — Passei com as calças na mão no último semestre.

— Eu sempre tive facilidade — apontou Mary Jane, contrariando Korn, ao olhar para Cristina. — Ainda me lembro de boa parte do conteúdo do ano passado. Se quiser, me avisa e eu te ajudo — insistiu, ao lado do Alex, os olhos escuros meigos.

Cristina fez um beiço, já cansada de negar, mas não disse nada, encarando o papel que Korn desamassou para logo amassá-lo outra vez.

— Suas anotações são mesmo boas? — perguntou Dan, desviando da conversa, para a Grace ao seu lado esquerdo. Sorriu, os olhos brilhando. — Talvez eu precise de uma ou outra, então.

Ian chegou a engolir o salgadinho com mais pressa só para interromper a conversa ao lado, visto que Grace estava entre ele e Dan. E eu, infelizmente, estava ao lado do Ian, não havia como não prestar atenção.

— Você não devia ficar entregando suas anotações assim pra qualquer um, Grace — resmunga ele, depois de engolir, torcendo o nariz. Acrescentou, quando ela lhe dirigiu um olhar incivisamente questionador: — Ao menos peça que paguem por elas.

Grace dá uma cotovelada nele, voltando-se para o Dan com um sorriso amarelo, como se pedisse desculpas em nome do Ian. Ian revira os olhos, emburrado, e começa a empurrar salgadinhos guela abaixo com certa violência, olhando para longe.

Dan sorri para isto, inclinando-se na direção dela ao arrancar um risinho. — Por você, eu pago o dobro do que cobrar.

Ian suspirou, mastigando com raiva, e eu tirei o pacote das mãos dele, enrolando-o para que guardasse.

— Vai se afogar daqui um pouco — reclamei, entregando-o o pacote dobrado. Ian fez uma careta. — Ian...

— Não quero ouvir — retrucou ele, sem nem olhar na minha direção.

Revirei os olhos, desviando-os para frente, encontrando Alex que desaprovava o silêncio do primo também.

Vi quando o celular do Alex vibrou e ele o pegou rapidamente, lendo e relendo alguma coisa, o vinco entre as sobrancelhas aumentando a cada vez que o repetia. Com uma careta de desgosto, ignorou o que quer que havia notificado no seu celular e o guardou de volta ao bolso.

Focou os olhos em mim em seguida, como se sentisse que eu o encarava, e me sorriu. Deu uma olhada ao redor e um brilho sacana apareceu em seus olhos escuros.

— Hã — começou, dando uma olhada nos nossos amigos ao se levantar —, eu vou aproveitar os cinco minutinhos que faltam e vou ao ponto de fumo.

Arqueei as sobrancelhas, vendo que isso chamou a atenção de todos. Se todos estavam em um burburinho de conversas aleatórias, desde esportes, notas de provas e flertes ao meu lado a respeito de anotações, todos se silenciaram ao ouvi-lo.

— O quê?! — exclamou Ian, os olhos julgadores no primo.

— Como assim? — questionou Dan, perdido. — Você não tinha parado de fumar?

— Ô otário, volta aqui!

Alex ri, desviando com um pulinho do puxão que Bex daria nele, se afastando uns cinco passos do grupo.

Dirigi um olhar questionador a ele, mas Alex pareceu sequer perceber, dando sorrisinhos culpados para todos no grupo. Deu de ombros, como se não pudesse fazer nada a respeito, ao passo que os demais protestavam.

— Ah, todo mundo tem suas recaídas — descartou ele, como se não fosse nada, antes de focar os olhos em mim. — Caleb, você vem? — perguntou, incisivo.

Pisquei, arqueando as sobrancelhas, tentando digerir o que acontecia.

— Você tava indo tão bem! — lamentou Korn, balançando a cabeça de um lado ao outro. — Por que isso agora?!

Alex apenas dá um risinho, erguendo os ombros como se não soubesse o que dizer. Dirige um último olhar para mim antes de dar as costas, a despeito das reclamações, e se vai em uma corridinha para longe.

Compreendendo o pedido, levantei meio sem jeito, ouvindo os pedidos para que não deixasse que ele tivesse uma recaída novamente.

— Eu... Eu vou e... — comecei, pigarreando, mas meus olhos focaram na única pessoa silenciosa com o movimento. Mary Jane checava as próprias unhas com um sorrisinho mínimo, sem haver protestado ou se surpreendido em momento algum. Voltei os olhos aos demais. — Vejo se... Bom, se eu consigo convencer ele.

Antes de ouvir qualquer coisa, dei as costas, correndo na direção para a qual ele havia ido e que eu já conhecia de cor. Olhei ao redor para ver se ninguém me enxergava e me espremi entre a cerca e o muro, me esgueirando na parte traseira do ginásio.

Antes que eu pudesse espiar onde Alex estava, alguém circundou os braços ao redor de mim como um vulto e grudou os lábios nos meus. Soube quem era imediatamente, mas não rápido o suficiente para poder retribuir os selinhos quase agressivos na minha boca, nariz, rosto, pescoço.

— O que você tá fazendo?!

— O que parece? — perguntou ele, entre beijos, antes de encostar o nariz no meu e deixar um beijo mais calmo na minha boca. — Eu tô beijando você.

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Tentei reprimir o sorriso ou sequer manter a linha de raciocínio e perguntar o que foi todo aquele show que ele fez, mas eu estava doente, como já havia percebido há uns dias.Então tudo o que eu fiz e quis fazer foi deixar que me beijasse da maneira como quisesse.

Quase hipnotizado por este rapaz arteiro, deixei que ele se inclinasse na minha direção com um sorriso e me beijasse outra vez. Passei os braços em torno do seu pescoço quando ele uniu a língua com a minha, e o senti me guiar até que eu estivesse sem saída entre a parede traseira do ginásio e ele. Fechei os olhos e novamente esqueci onde estava e em que momento estava, tudo o que sabia é que estava com ele.

— Você não veio fumar, né? — deduzi, quando ele desacelerou os beijos e os levou para o meu pescoço. Soltou um riso bem ali e eu ergui o ombro em direção ao rosto como reflexo.

Alex se afastou um pouco, arqueando as sobrancelhas com diversão.

— Caleb, eu não trouxe nem a cartela de cigarros. Vou fumar o quê? — Então, aproximou-se do meu pescoço e inspirou fundo. — Seu cheirinho?

Me encolhi todo, tentando empurrá-lo para longe, rindo pelas cócegas.

— Ridículo!

Alex me prendeu contra o seu corpo outra vez, olhando-me com carinho ao esperar que meus risos parassem e que eu parasse de lutar contra seu aperto. Sorri para ele, enfim, vendo-o tirar um fio curto dos meus cabelos dos olhos.

— Se eu ficasse sem te beijar a manhã toda, ia acabar te atacando na frente de todos — contou, com um sorriso de canto.

Desviei o olhar para longe, não conseguindo evitar sorrir, mas tampouco sabendo ainda como receber esse tipo de informação que Alex simplesmente jogava na minha direção como se não fosse nada. E ele sabia disso, por isso sempre aumentava o sorriso para um de orelha a orelha quando eu hesitava e evitava seu olhar.

Ridículo!

Pensei, então, na veracidade do que me dizia.

— Você não pode — limitei-me a falar, baixinho.

Alex frouxou um pouco o aperto, de forma que consegui erguer meus braços e apoiar as mãos nos dele. Inclinou o rosto para o lado direito, me analisando com certa cautela.

— Não? — perguntou, hesitando por um instante quando eu tornei a olhá-lo nos olhos. — Não poderia?

Pisquei, desconfortável ao me remexer em seus braços, vendo-o me encarar com tanta intensidade que poderia fazer um buraco na minha cara. Desviei o olhar novamente, inquieto.

— Bom... Sim.

Fiquei sem saber se Alex iria querer isto, de fato, ou se eu mesmo quisesse que os outros soubessem. Gostava que fosse só nós dois - talvez mais do que seria saudável -, mas não me incomodaria se os demais soubessem. Só que contar a eles implicaria explicações e eu não tenho certeza se tínhamos uma.

"A gente se beija de vez em quando"?

"Alex e eu estamos ficando"?

"Alex e eu nos gostamos"?

"Sou apaixonado por ele desde que o vi pela primeira vez"?

A gente ainda não tinha um nome para isto, e eu não me importava com isto, mas a ideia de nomear alguma coisa me dava certo receio.

— Sim? — perguntou ele, falhando ao tentar esconder o sorriso. — Eu poderia te beijar na frente de todos?

Arregalei os olhos, sentindo as orelhas arderem. — Não! Isso, não! —evidenciei, piscando ao vê-lo rir baixinho. — Não me beijar, mas...

— Contar a eles sobre nós? — terminou por mim, e eu assenti. Ele sorriu. — Suponho eu que sim, até duvido que alguém ficaria surpreso. Talvez o Ian, porque...

— É o Ian — falamos, em uníssono, antes de rir.

Ao fundo, o sinal soou, arrancando um suspiro pesaroso do Alex. Ele deu uma espiada por entre a fresta da cerca para ver se nenhum monitor do colégio checaria aquele local por alunos vagabundos, e se voltou para mim com um sorriso, puxando-me para perto e grudando-me na parede outra vez.

— A gente podia contar — sussurrou contra meus lábios, arrepiando os pelos da minha nuca —, mas aí perderia isso aqui.

Ele não precisou explicar, eu entendi perfeitamente: os encontros às escondidas, ter que nos afastar rapidamente quando minha mãe resolve entrar no quarto, o roubo de beijos às vezes perto dos nossos amigos, ter que correr para o ponto de fumo para nos beijar na clandestinidade.

É óbvio que isso só era bom porque a gente sabia que tinha apoio dos amigos e, no meu caso, da minha família, a respeito da sexualidade. Talvez, quem sabe, fosse por causa da ausência de apoio da família dele que o Alex ainda parecia não melhorar totalmente de seus pesadelos e sua insônia, ponderei, relanceando os pontos fundos debaixo dos seus olhos.

Mas ele não me deixou manter o raciocínio por mais nenhum segundo quando me beijou mais uma vez, tão profunda e lentamente que eu passava a entender o porquê da Eva comer o fruto proibido sem pensar duas vezes.

Meu coração acelerou, minha pele arrepiou, meu estômago esfriou com as benditas borboletas. Isto não mudaria nunca, eu tinha certeza. Como poderia, se toda vez que me beija é como se fosse a primeira vez?

Quando afastou os lábios molhados dos meus, eu ainda me demorei feito um imbecil antes da cabeça funcionar, e finalmente abri os olhos.

— Talvez daqui uns dias? — sugeri, a voz fraca, as pálpebras pesadas.

Ele sorriu, assentindo, sem desviar os olhos da minha boca. Prendeu meu lábio inferior entre seus dentes e o puxou com leveza, antes de lambê-lo com lentidão.

Agradeci estar prensado contra a parede, porque sequer senti minhas pernas depois que elas se liquefizeram.

— É, daqui uns dias.

*

Na hora da saída, o tempo já havia se fechado, as nuvens coberto todo o sol e o vento norte, forte como se zangado, faziam as nossas roupas se mexerem como se tivessem vida própria.

Caminhei lado a lado com o Alex para os portões do colégio, atrás dos demais, desviando de seus beliscões e sua tentativa frustrada de pegar minha mão, arriscando que fôssemos vistos. Maduro como sempre, me mostrou a língua e sorriu, mas este se perdeu quando o celular vibrou outra vez.

— É a minha mãe — explicou, quando lhe dirigi um olhar questionador. — Ela encontrou meus pitos no quarto e fez todo um escândalo. Agora tá toda preocupada, mandando mensagem, querendo que eu faça terapia por causa de fumo. — Revirou os olhos, alargando-os em seguida quando algo passou por sua cabeça: — Imagina se essa mulher descobre que sou gay!

Franzi o cenho, preocupado.

Se eu parasse para pensar, ela agiu de forma estranha nas duas últimas vezes que a vi quando estava na casa do Alex. Como sempre, ele a cortava no meio das falas, mas ela pareceu querer conversar com ele à sós mais de uma vez, se interrompendo quando via que eu estava junto, às vezes, o restante da panelinha também.

— Isso parece sério, Alex.

Ele descarta aquilo como se fosse bobagem. — É nada.

— Posso ir com vocês? — questionou Mason, bastante entediado de ir para casa agora que Cris estava irritada com ele e focada em estudar.

Dei de ombros. — Pode.

— Não!

Arregalei os olhos, virando para um indignado Alex. — Alex!

Ele deu um sorrisinho amarelo, coçando os cabelos, antes de fazer uma careta de cachorrinho abandonado.

— Ah, Mason, vocês tão sempre juntos — reclamou, puxando-me para mais perto. — Eu queria passar um tempinho com o Caleb, sabe como é, colocar o papo em dia.

Mason nos olhou com cara de peixe morto. — Mas é só o que vocês fazem ultimamente.

Bex se engasgou com o próprio riso.

— Sim, mas é que a gente passou muito tempo brigando e tem muita coisa para conversar ainda. Não é, nenê? — perguntou ele, e eu quase cavei um buraco para me enterrar ali mesmo. — Sem falar que, olha esse rostinho. — Pegou meu rosto com a mão livre, pressionando minhas bochechas até que minha boca formasse um biquinho. — Eu senti falta de ficar encarando os olhinhos verdes a tarde toda.

— Cala a boca! — resmunguei, sentindo tudo arder de vergonha.

— Caleb não admite, mas ele sentiu minha falta também — continuou, com um ar de quem sabe tudo.

Bex e Korn se entreolharam e Mason fez uma careta ao nos encarar como se fôssemos alienígenas. Me analisou com muita atenção antes de dar um suspiro, virando-se para o casal ao lado:

— Eu vou pra casa de vocês.

Mais alegremente do que deveria, Alex me empurrou em direção ao portão e virou para o lado direito da rua, abanando para os demais com um sorriso de orelha a orelha.

Dei outro tapa nele. — Faz isso de novo e eu te mato.

— De amor? — murmurou, próximo ao meu ouvido, antes de deixar um beijo estalado ali.

Afastei-me, as orelhas queimando ao passo que via alguns alunos de outras turmas nos relancearem com estranheza.

— Você não sabe ser sutil?

— Não — respondeu, pegando minha mão na sua.

— Eles vão ver.

Puxei minha mão no mesmo instante, criando uma disputa, sem querer, sobre quem vencia: eu ao me afastar ou o Alex ao se aproximar. Disparei meu olhar para as nossas costas, vendo se enxergava alguns dos nossos amigos ainda lá nos portões do colégio.

— Ninguém vai ver — descartou, como se não fosse nada, ao vencer nossa disputa. Deixei que enlaçasse nossos dedos antes mesmo de virar a esquina e, quando o fizemos, ele me abraçou e me beijou descaradamente. — E se ver, melhor ainda.

Soltei um riso, deixando que me beijasse o quanto quisesse.

Mesmo que estivéssemos no meio da rua, mesmo que eu ainda não soubesse estar com alguém tão abertamente, mesmo que tivesse medo de sofrer agressão de alguém preconceituoso, mesmo que ainda ouvisse em pleno século vinte e um que existe algo de errado com a gente.

Para mim, não havia nada mais certo.

Mas, como o vento que anunciava a tempestade, o celular dele tocou.

Alex deu um suspiro, pegando o celular apenas para desligá-lo, mas ele logo tocou outra vez. Eu pedi que atendesse, podia ver o nome da sua mãe estampado na tela, mas ele ainda relutou antes de atender.

— O que foi?! — atendeu, com uma careta. Escutou, me relanceando com o canto do olho, antes de rir, debochado. — O que é isto, reunião familiar? — perguntou, com zombaria, mas eu não podia ouvir o que ela falava. Em seguida, ele suspirou, fechando os olhos com impaciência. — Não, eu não posso, tô indo pra casa do Caleb.

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Levei minha mão à sua, segurando-a para dar apoio quando vi que fumacinhas quase saíam por suas orelhas. Pude perceber que a mãe havia aumentado o volume da voz, mas ainda não consegui distinguir as palavras.

— Já disse que não!

— Alex! — berrou a mãe, no telefone, e desta vez eu pude discernir o nome com nitidez, tamanho o volume da voz.

Alex me relanceou, trincando a mandíbula ao passo que ela falava mais coisas que eu não era capaz de ouvir. Obviamente que ele não parecia feliz, mas ela pareceu convencê-lo aos poucos até que ele estivesse quase bufando.

— Ok — resmungou, coçando os cabelos com irritação. — Já disse que "ok", eu tô indo. E é melhor que seja importante mesmo — grunhiu, desligando a chamada e enfiando o celular no bolso.

Ao invés de soltar minha mão, ele a apertou ao inspirar fundo.

— Isso é sério? — perguntei, preocupado.

Como de costume, levou a outra mão ao bolso mas antes de enfiá-la ali, soube que não encontraria nenhuma cartela de cigarros. Suspirou, massageando o topo no nariz com a mão livre.

— Isso é encheção de saco, é isto o que é — resmunga, ainda apertando minha mão. — Já tá me dando dor de cabeça com antecedência.

Pisquei, franzindo o cenho. — É sobre os cigarros?

Desta vez, Alex hesitou um tanto, me olhando de soslaio. — E sobre as parassonias — acrescentou, dando de ombros, ao passo que eu tentava ligar uma coisa na outra.

Senti um calafrio ao ouvir aquilo, pela forma com a qual ele mencionava como se não fosse nada - quando, só pela maneira como hesitou e não quis me olhar nos olhos, já dizia que aquilo era qualquer coisa que não "nada".

— Parassonias? — perguntei, confuso, ponderando sobre o que é aquilo. Tem a ver com insônia?

Alex pigarreou, virando na minha direção, mas não olhou para mim, os olhos presos nos carros que passavam na rua.

— É, uns problemas de infância. Besteira — descartou, mas eu soube que era o oposto de "besteira".

Era como um instinto que eu sequer sabia que eu possuía - aquele de saber se Alex está mentindo ou não, talvez porque ele raramente mentisse para mim, mas eu não havia sentido aquilo antes. Eu soube que algo estava errado, os pelos da minha nuca eriçaram de um jeito ruim, mas o meu cérebro liquefeito de apaixonado simplesmente optou por ignorar a sensação, como se ela nunca tivesse existido.

Era o vento norte, não era?

Sempre me dava a sensação de fim do mundo, não dava?

— Mas resumindo: ela quer que eu faça terapia e tome remédio — continuou ele, antes que eu pudesse focar muito no que dissera antes. — É essa a solução da minha mãe, como se não fosse óbvio o suficiente que ela é farmacêutica — brincou, mas a diversão não chegou aos olhos escuros. — Deve ter trazido o meu pai pra isso para me amedrontar, como ele sempre faz, já que ela não é firme com nada que fala. Que saco.

Chutou uma pedrinha, levando a mão livre para puxar pedaços de pele ao redor das unhas, já que não mais as possuía pela ansiedade crônica.

— Não acho que terapia seja algo ruim — murmurei, em uma última tentativa, apesar de achar pavorosa a ideia de me sentar de frente para alguém e expor algo meu —, talvez você pudesse fazer. Meu cunhado vive falando que isto o ajudou muito. E a Grace também.

Alex fez uma careta, talvez pensasse o mesmo que eu sobre abrir-se sobre coisas pessoais diante de um desconhecido, mas balançou a cabeça.

— Sei lá, mas não se trata disto. Eles não querem isto para o meu bem. — Deixa escapar um suspiro pesado. — Só querem riscar algum item na lista perturbada deles de "como serem pais" antes de me chutar de casa feito um cachorro. Eu...

Abriu e fechou a boca algumas vezes, como se não tivesse certeza de que queria externar aquilo, antes de focar os olhos em mim com relutância. Apoiou as costas no muro de uma casa, soltando minha mão para remexer as duas na sua frente, os olhos perdidos em algo que eu não pude ver.

Decidiu, enfim, pôr para fora em um murmúrio baixo:

— O que mais me machuca é que eles desempenham um papel mas insistem em fingir que desempenham outro. Me tratam feito um saco de lixo mas fingem que se importam. Me doeria bem menos se eles só me jogassem fora feito lixo, seria bem condizente com o comportamento deles.

Senti meu peito se apertar, mas me aproximei dele, parando em frente ao seu corpo e fechando minhas mãos nas suas em forma de concha. Desta forma, ele parou de remexê-las e ergueu os olhos nublados para mim.

— Cuidar de mim, meia boca, durante cinco por cento do tempo me dá a falsa esperança de que essa porcentagem aumente ou signifique algo para alguém além de mim — continuou, o tom de voz baixo, como se tivesse vergonha de dizer em voz alta. — Esse cinco por cento sempre me fez querer ficar, quando tudo o que precisei foi ir.

Ele desviou o olhar para as nossas mãos, querendo evitar o contato visual, mas eu vi que os olhos pretos marejaram. Levei suas mãos à minha boca e deixei beijinhos nela, esperando que ele continuasse, já que parecia ter mais coisa entalada ali.

— Cada vez fica mais claro que isso é o que mais me faz sentir preso, e eu não sei realmente como me libertar — sussurra, quase como um segredo, ao me olhar outra vez. — Caleb, eu tenho medo de que, quando eu me libertar das amarras, eu não vou conseguir sair do lugar. Porque... — Engoliu em seco, a dor refletida nos olhos escuros era tão poderosa que quase a senti em mim. — Sendo livre como quero ser, nem esses miseráveis e doloridos cinco por cento eu vou ter. Eu não ter nada vindo deles. Talvez da minha mãe, mas o que vier dela vai ser tão dolorido quanto sempre foi, tão dolorido quanto não ter nada.

Não deixei que ficasse com a cabeça abaixada e o puxei para um abraço, sentindo-o retribuir rapidamente. Vi que ele teimosamente não deixou nenhuma lágrima cair, mas limpou o rosto quando estava abraçado em mim e eu só podia ver pelo canto do olho.

Aquelas palavras não eram de algum sentimento momentâneo, ele parecia haver refletido muito sobre aquilo ao passar dos anos. Me doía pensar que essa foi a vida que ele teve dentro de casa, duvidando da genuinidade do amor dos pais, e me doía triplamente pensar que ele pudesse estar certo.

— Eu sinto muito — sussurrei, porque não havia nada que eu pudesse fazer além disso. Como se repara o erro de um pai? — Você merece melhor do que isto, Alex, sempre mereceu.

Alex se afastou e eu ouvi ele soltar o ar pelo nariz, como se aquilo o divertisse. Ergueu os olhos doloridos para mim e sorriu triste, da maneira como vi algumas vezes, como se não acreditasse naquilo, como se tivesse piedade de mim por pensar que ele tivesse valor.

— Eu gosto de agir como se eu merecesse, mas Caleb, no fundo isto não é verdade. Não mereço nem você — sussurrou, os olhos fixos nos meus como se quisesse mesmo que eu acreditasse naquilo.

Neguei, e negaria sempre.

— Não diga isto — pedi, mais uma vez, percebendo que essa mesma discussão havia se repetido mais vezes do que era saudável. — Você merece o mundo, Alex, e tudo o que tiver nele.

Ele me sorriu, com carinho, mas eu podia ver a descrença no olhar.

— Eu queria muito que você tivesse razão.

— Alex...

Como se nada tivesse acontecido, ele balançou a cabeça e era como se não houvesse externado as coisas mais tristes que eu já havia ouvido dele algum dia. Sorriu, colocando as mãos na minha cintura e aproximando o rosto para me beijar, mas eu me afastei.

— Vem, me dá um beijo que eu preciso ir pra minha "reunião familiar" — pediu, não escondendo o deboche na voz, retornando a postura de antes da ligação.

Eu entendi, naquele momento, que ele não mudaria de ideia tão fácil, e ele sabia disto, por isso queria nos poupar da discussão. Queria que eu não me preocupasse e não mais falasse coisas das quais ele discordava profundamente.

— Alex, me escuta — insisti, afastando o corpo enquanto ele sorria ao tentar se aproximar —, tira essa ideia errada da cabeça. Você é...

— Um idiota apaixonado que quer um beijo — completou, com um sorriso de canto. — Vamos, vem.

— Alex, eu tô falando sério. Você...

Ele ficou sério subitamente, embora os olhos sorrissem, quando interrompeu em um tom meigo: — Não se preocupe comigo, meu amor.

Aquilo me calou, embora eu tenha certeza que a ruga continuou entre minhas sobrancelhas.

Alex deixou um sorriso espalhar pelo seu rosto, convencido, quando percebeu que sua tática funcionou. Roubou-me um beijo bem ali, como se não fosse nada, enquanto eu ainda o olhava embasbacado, as palavras sendo comidas pelo vento quente e forte que movia nossas roupas e fios de cabelo.

Começou a caminhar para trás, os olhos em mim, ao seguir na direção contrária.

— Talvez eu fuja pra sua casa mais tarde — falou, de longe, ao me jogar um beijo. — Te mando mensagem, viu?

Sabendo que de nada ia adiantar insistir na conversa, ainda mais que ele tinha um compromisso que gerara gritos na sua mãe pelo telefone, apenas o observei ir embora.

Ficou apenas eu, a promessa de uma tempestade e o vento apocalíptico a me chacoalhar.

*

Não sei exatamente como eu cheguei em casa, mas havia entrado pela porta sem sequer perceber, preso nas palavras e nos beijos, como se eu estivesse com a cabeça dentro de uma nuvem apaixonada. Dei bom dia para a família, com muito bom humor, entrei no meu quarto e me atirei na cama.

Não sei quanto tempo encarei meu universo antes de pegar meu caderno de desenhos debaixo do colchão e deslizar os traços de Alex aleatoriamente. Mandei mensagens, do tipo: "já conversaram?", “está acordado?", "o que está fazendo?", "já ouviu a banda que te mandei ouvir dois anos atrás?”, mas em nenhuma recebi resposta.

Passei a tarde toda esperando por ele, apesar de não haver recebido mensagem alguma ou sequer uma confirmação de que ele viria ou não. Mas, para mim, a possibilidade já era o suficiente para que eu ficasse pulando na cadeira na espera de algo.

A preocupação estava começando a bater na minha porta, pouco a pouco, mas eu a calei imediatamente, da mesma forma como ignorei a ventania lá fora como se não existisse, assim que entrei em casa e já não era mais tocado por ela.

As horas se passaram e nada, então eu fiz o que sempre fazia quando estava preocupado e não podia fazer nada a respeito: dormia. Peguei no sono relativamente cedo para os padrões, lá pelas oito, e como minha mãe realmente dormia cedo quando não saía com Theodore e meu irmão não dormiria em casa de novo, a casa estava silenciosa.

No entanto, como se o universo reclamasse do silêncio, em pouco tempo pude ouvir as gotas dágua batendo no telhado antes de se tornarem pesadas o suficiente para me acordar. Não era tão pouco tempo, porque vi ditar meia noite e pouco no relógio. Deitei novamente por mais um tempo, virando de lado, quando a chuva ficou mais forte na minha janela. Reclamei, virando para ela, mas sem querer me levantar. E então, de novo.

Abri os olhos, dando-me conta que eram batidas: aquelas que eu tanto conhecia.

Me levantei com rapidez, ainda grogue, e abri a janela em um movimento brusco.

Alex estava encharcado do lado de fora, a roupa grudada no corpo, os cabelos pingando por sobre os olhos, aparentando estar mais pálido do que se estivesse morto. A expressão estava tão atormentada que trouxe, mais uma vez naquele dia, calafrios à minha nuca.

Se não fosse pelas gotas d'água escorrendo pelo seu rosto incansavelmente, eu diria que estava chorando.

— Alex — sussurrei, empurrando a janela por completo para que ele entrasse, os pingos violentos adentrando no meu quarto também.

Ele esgueirou-se pela janela, sem dizer uma única palavra, os olhos foscos como se não pudesse focar em nada. A ação de pular para dentro do meu quarto foi dificultosa, ao contrário de como ele sempre fazia, e só então pude perceber a case de violão e a mochila enorme em suas costas.

Arregalei os olhos, apressando em ligar o abajur, que estava mais próximo do que o interruptor da lâmpada, e voltei a olhá-lo. — Alex?

Com a luz amarelada do abajur, pude ver além do que havia inicialmente: a pele branca feito papel, os lábios avermelhados - não só pelo frio, mas porque havia um corte feio neles -, os olhos foscos estavam envoltos por um inchaço incomum em uma cor também avermelhada.

— O que houve? — perguntei, o coração havendo encolhido, ao me aproximar.

Ergui uma mão para tocar seu rosto machucado, mas ele se afastou em um impulso, como se recém despertasse do que quer que ocorria em sua mente. A respiração estava pesada, os dentes batiam algumas vezes pelo frio, e assim que despertou dos pensamentos perturbadores, também fungou algumas vezes.

Olhou nos meus olhos pela primeira vez desde que chegou, e eu fui incapaz de decifrar tanto sentimento.

— Eu não aguento mais — resmungou, a voz trêmula, ao passo que uma lágrima caía - e desta vez eu tive certeza de que não eram pingos de chuva. — Eu tenho que ir embora.

Arregalei os olhos ainda mais, se possível, chocado, tentando entender.

De todos os sentimentos possíveis, eu vi a culpa assolar seus olhos ao passo que fazia uma careta piedosa como se estivesse prestes a me matar com uma faca na mão e sentisse muito, porque não tinha escolha.

— Eu preciso, Caleb — insistiu, dando um passo em frente —, e eu preciso que entenda e que não me odeie — pediu, feito uma criança, ao colocar as mãos nos meus braços.

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Senti meu coração se encolher, mas não dei ouvido às palavras, preocupado até a alma com o que havia acontecido.

— Alex — chamei, ignorando suas palavras —, o que aconteceu?

Vi quando seu beiço tremeu e ele se tornou miserável, as lágrimas escorrendo como se fossem jatos e ele sequer as sentisse cair dos olhos. Ele os fechou, balançando a cabeça de um lado para o outro, como se não quisesse sequer pensar a respeito, em negação.

— Alex...

Toquei seu rosto, vendo que desta vez ele não desviou, e fiz carinho próximo ao olho inchado. Ele os abriu, me olhando de forma tão infeliz que eu me senti morrer um pouquinho por dentro.

— Ele me odeia — sussurrou.

Senti meus próprios olhos marejarem. — Foi seu pai que fez isso?

Se eu soubesse que ele tinha um pai como o meu, eu o teria feito sair de lá há eras. Eu teria montado um acampamento em meu quarto e não o deixado sofrer nunca mais.

Ele desviou o olhar. — Eu provoquei.

Balancei a cabeça de um lado para o outro com rapidez.

— Isso não é desculpa. Ele nunca devia erguer a mão pra você — insisti, vendo-o se afastar de mim outra vez, remexendo os próprios dedos.

Desde que havia chegado, não havia parado de tremer ou de se mexer, mesmo quando os olhos pareciam tão monotonamente sem vida quanto o corpo parecia do contrário.

— Eu sei — grunhiu, encarando a janela com ódio, as lágrimas ainda caindo. Era como se sequer soubesse lidar com o que sentia. — Que ódio — externou, passando a mão pelos cabelos e puxando-os um tanto antes de largar. — Foi tudo culpa dessa ideia imbecil de reunião. Eu... Eu...

— O que houve? — insisti, nervoso, tentando não tocá-lo desta vez para não agitá-lo ainda mais.

— Minha mãe, ela... Ela quis que todos conversássemos e eu... Ele... Ele é tão, mas tão... E eu não pude ouvir aquilo sem...

Bufou, levando as mãos trêmulas aos cabelos outra vez, enquanto eu me esforçava parar ouvir sua voz abafada sob a tempestade lá de fora. Permaneci estancado no lugar, sentindo a testa latejar de tão vincada e os olhos ainda alargadas sob nenhum comando, ao passo que o ouvia soltar palavras aleatórias e sem sentido.

Ele tornou a me olhar, parando de gaguejar por um momento, antes de formar palavras mais articuladas: — Eu tenho dezoito anos, então eu falei que eles não tinham nada que ver com a minha vida e que terapia não ia ajudar, e eu falei que eu não vou fazer o que esperam, que eu não entrei pra faculdade e nem vou entrar de novo, que eu vou embora, que eu sou gay e que eu vou fazer música, e que se eu sou tão merda quanto eles pensam é tudo culpa deles, e eles deviam dobrar a língua antes de sugerir terapia quando nunca me ofereceram nem um... Nem um abr-abraço...

A última palavra foi interrompida por um soluço e eu não esperei que terminasse antes de puxá-lo para o abraço que sempre foi negado a ele. Alex deixou, por um instante, fechando os braços molhados em mim e me apertando como se quisesse me esmagar, engolindo os soluços com um som engasgado. Mas só por um instante.

Logo, se afastou outra vez, negando com a cabeça de um lado ao outro.

— Caleb, eu não... Eu não consigo — falou, ainda jogando a cabeça de um lado ao outro.

O que ele tanto negava, eu não sei.

Tentei me aproximar outra vez, mas ele deu passos para trás, relanceando a chuva lá fora com uma careta agoniada e voltando a escuridão das orbes para mim. Negou outra vez, e outra, e outra.

— Eu não consigo.

— Não consegue o quê? — murmurei, preocupado.

— Eu não consigo ficar aqui. Eu não aguento mais — repetiu, a voz embargada, ao se aproximar de mim outra vez, olhando-me nos olhos como se quisesse passar a gravidade da situação: — Eu estou enlouquecendo — sussurrou. — Eu vejo coisas e eu... Eu tenho pesadelos, e eu sinto como se fosse sufocar, e agora que eu parei de fumar, parece que tudo piorou e eu nem sabia que podia piorar, e eu...

Uma careta aprofundou-se em seu rosto quando olhou para as próprias mãos trêmulas como se quisesse arrancá-las do corpo, esticando-as em frente ao corpo.

— E eu não consigo parar de tremer — grunhiu com tanta raiva que deve ter doído sua garganta. Fechou as mãos em punho com tanta força que ponderei se não havia se machucado também.

Eu estava oficialmente assustado.

Todos havíamos percebido que ele não havia estado muito bem neste último ano, e eu havia entendido que era por reprovar de ano e ter que ficar meses a mais dentro de casa, esperando pelo momento de ir embora, mas nunca pensei que fosse para tanto. Nunca pensei que estivesse com tanta dor.

Levei minhas mãos às suas e as cobri com carinho, percebendo que estavam geladas feito um defunto.

— Vai ficar tudo bem — sussurrei, mas ele chorou mais, negando com a cabeça. — Vai — prometi, deslizando minhas mãos por seus braços, subindo até o seu rosto.

Puxei-o para mim, unindo nossos lábios em um beijo demoradamente calmo, em uma tentativa de passar a tranquilidade que eu esperava que ele sentisse. No entanto, teve efeito oposto. Ele circundou meu corpo e me grudou nele com brusquidão, aprofundando o beijo quase em necessidade. Sua boca estava gelada, assim como todo o seu corpo, que umedecera as minhas roupas.

Abracei-o como pude, dados os dois empecilhos gigantes em suas costas, vendo-o acalmar a respiração e parar de tremer aos poucos, embora eu não imaginei que fosse funcionar por completo até que ele estivesse em roupas secas e perfeitamente aquecido.

Pensando nisto, me afastei um pouco, dei uma olhada nele e voltei os olhos para seu rosto miserável. Fiz carinho em sua orelha, vendo-o inclinar-se nessa direção, os olhos fechados.

— Alex, eu posso te ajudar — murmurei, fazendo-o abrir os olhos. — Você pode ficar aqui o tempo que quiser, tenho certeza que minha mãe não vai se importar, pelo menos até que as coisas fiquem bem — falei, nervoso, ao ver que ele começou a negar outra vez, os olhos tornando-se duros. — Você não pode ir embora assim, no meio da tempestade, com pouco dinheiro, e eu...

Alex se desvencilhou rapidamente. — Sim, eu posso.

Sentindo o desespero subir pela minha garganta, consegui formular um: — Alex...

— Eu não vou ficar, Caleb — firmou, negando com a cabeça feito um robô.

— Alex — tentei novamente, começando a ficar nervoso —, você não tá bem. Você precisa de ajuda...

— Não! — grunhiu, os lábios tremendo ao passo que tornava a chorar. Voltou a tremer da cabeça aos pés, as sobrancelhas escuras unidas em uma espécie de raiva com desespero. — Não, eu preciso sair daqui!

— Alex...

Só pude externar um sussurro, sentindo os olhos marejarem e obstruírem minha visão.

Em frente à janela semiaberta que molhava o chão do meu quarto cada vez mais, com a tempestade caindo com violência no chão como se o céu estivesse revoltado, percebi que eu não o havia perdido. De frente um para o outro naquele quarto escuro, com a mera luz fraca do meu abajur, eu soube que ele nunca havia sido meu.

Alex não era de ninguém para que pudéssemos perdê-lo.

Alex sequer era dele mesmo, e talvez por isto houvesse tanto tormento naquele par de olhos que parecia tão desprovido de luz quanto parecia ser sua alma.

— Eu não posso deixar que se vá — sussurrei, os ombros caídos.

Como se minhas palavras o fizessem se acalmar um tanto outra vez, instável do jeito que estava, ele tornou a me olhar e parar de mover-se com ansiedade. Desviou os olhos para a cômoda onde estava o abajur, onde jazia o último desenho dele que eu rabiscava, ainda incompleto.

Aproximou-se de mim outra vez. — Então venha comigo — pediu, levando uma das mãos trêmulas ao meu rosto.

— O quê? — perguntei, débil.

— Venha comigo, eu... — Os olhos moveram-se, mas não pareciam nada ver, como se pensasse em uma solução mas o vinco na testa demonstrava que não encontrava nenhuma. Ainda assim, murmurou: — Eu posso te proteger, e eu arrumo um emprego e eu vou conseguir dinheiro para um apartamento, talvez, e a gente pode ficar junto.

Ele não parecia acreditar totalmente no que dizia, e os olhos estavam tristes o tempo todo, como se nada no mundo pudesse fazê-lo feliz agora.

— Alex — sussurrei, meio incrédulo —, eu tenho quinze anos.

Ele negou, com uma careta, voltando a se agitar. — Eu sei, mas você pode... Pode estudar em um colégio público por lá, e eu...

Eu soube que não era um convite honesto, que ele não havia ido até ali, pronto para ir embora, porque queria me convidar para ir junto. Também soube que ele sequer sabia o que estava fazendo, pelo que estava pedindo, o que estava estabelecendo.

Era como se ele não estivesse presente, apenas uma parte dele. Ele não estava completamente ali, comigo, e eu não saberia explicar de outra maneira.

Ainda assim, perguntei: — E onde é "lá"?

Alex passou a mão no rosto, derrotado, novamente nervoso.

— Eu não... Eu ainda não sei.

Desta vez, fui eu quem balançou a cabeça de um lado ao outro, negando o que ele dizia. Peguei uma das mãos trêmulas na minha, olhando-o nos olhos com tanto pesar quanto eu sentia.

Vê-lo desta forma era devastador.

Aquilo me doía o peito, me doía o corpo, me doía a alma.

— Alex, você precisa de ajuda — repeti, temeroso.

Ele puxou a mão das minhas instantaneamente. — Eu não sou louco! — defendeu-se, levando-a para o peito com muita ofensa.

— Não foi isso que eu disse — retruquei, agoniado, vendo-o ajeitar a mochila de acampamento nas costas.

Mas ele não pareceu acreditar.

— Essa é a sua resposta final? — perguntou, ao me olhar de canto de olho com tanta mágoa que eu podia senti-la na pele.

Aquilo não estava certo.

Já que tudo havia acontecido mesmo e ele apareceu em minha janela no meio de uma tempestade, eu não podia mudar o passado mas podia evitar qualquer besteira que ele fizesse. Já que tudo havia acontecido mesmo, eu devia pegá-lo em braços e acolhê-lo ali, me certificando de que tudo melhorasse e de que tudo ficasse bem para ele.

Mas as cenas desenrolaram-se sem que eu sequer pudesse digeri-las, entendê-las, consenti-las. Eu tentei me aproximar, mas ele me afastou. Chorou, grunhiu de raiva, se afastou, se aproximou, me beijou, me rejeitou, quis que eu fosse com ele, e negou ficar.

Como eu faço uma pessoa instável perceber que ela não está bem?

Fechei as mãos em punho, incerto do que estava prestes a acontecer. Trinquei a mandíbula, querendo mais do que tudo não deixá-lo sozinho, mas sabendo que isso era consentir com a loucura que ele estava fazendo.

— Sim — respondi, firme, implorando mentalmente que ele mudasse de ideia.

Alex assente, as mãos também fechadas em punho, ainda incapaz de olhar para mim.

Eu devo mesmo ser um idiota.

Esse tempo todo que passei com ele devia ser o suficiente para perceber que a afirmação de que "Alex não está bem" era superficial demais. Esse tempo todo, nas últimas quase duas semanas, passei grudado nele como se fôssemos um só e ainda assim fiz pouco caso do quanto ele estava mal e que isto não era algo para ser deixado de lado. Era muito mais grave do que todos pensávamos, eu em especial, porque ele realmente precisava de ajuda o tempo todo.

Mas ao contrário de nós, imbecis, este não era o caso do Alex.

Por mais que esteja recusando ajuda e jurando de pé junto que não precisa disto, ele estava ciente, sim, da gravidade do que está acontecendo. Se não soubesse, ele não teria me ocultado coisas.

Alex ainda se demorou em frente à janela, limpando o rosto e ajeitando a mochila diversas vezes nas costas, antes de abrir totalmente a janela.

Dei um passo em frente, meio que por impulso, a ficha recém caindo de que ele estava mesmo fazendo isto. Ele estava mesmo indo embora, na minha frente, naquele estado. Ele estava mesmo recusando ajuda e teimando que ir embora era a solução de todos os seus problemas.

Ele também estava mesmo quebrando uma promessa.

Eu não sei o que é que me apavorava mais, nem qual era o sentimento que estava em maior quantidade acumulando-se no meu peito: preocupação, pelo que ele estava prestes a fazer; pena, de tudo que havia acontecido com ele; raiva, dos pais dele e do maldito universo; ou mágoa; por ele realmente estar disposto a me deixar.

Dor, por ele haver aparecido aqui para isto.

Ou puro medo, do que estava por vir.

Alex girou o rosto na minha direção, largando a janela e vindo até mim outra vez. — Caleb — murmurou uma última vez, me abraçando com tristeza —, eu vim porque eu não podia ir embora sem me despedir de você.

Roçou os lábios nos meus e eu fechei o espaço, em um selinho longo e pesaroso, enquanto sentia minhas próprias lágrimas escorrerem pelo meu rosto.

O que estava acontecendo?

Por que tudo mudou tão depressa?

Isto estava mesmo acontecendo?

Eu não entendia, eu não conseguia engolir aquilo, eu não consentia.

Senti-o deixar um beijo casto em meu rosto por último, enquanto eu sentia meu mundo ruir debaixo dos pés, me perguntando de novo e de novo como é que havia me deparado nessa posição.

Quando ele virou as costas, sem me importar com a humilhação de pedir outra vez, eu segurei sua mão.

— Eu ainda acho que você devia esperar terminar o ensino médio — consegui murmurar, o desespero tomando conta do meu peito —, faltam poucas semanas e você não precisa passá-las em casa se não quiser, você tem um lar aqui, comi...

Alex mais uma vez endureceu a expressão e se afastou como se levasse um choque, parecendo que qualquer menção à ficar nas redondezas dos seus pais fosse gatilho para ele. Tive certeza disto porque ele tornou a tremer, trincando a mandíbula e fechando as mãos em punho para que não ficasse tão óbvio, e deu as costas.

— Alex!

Alex negou uma última vez, o semblante perturbado e os olhos vazios ao me encarar, antes de pular a janela e sair correndo noite afora debaixo da chuva.

Um soluço alto, como se estivesse entalado na minha garganta, se fez ouvir quando eu vi seu último vislumbre antes de sumir na rua. O choro começou no segundo que ele saiu e não parou até o outro dia.

Apesar de haver me humilhado vezes suficientes nessa conversa, ainda assim eu queria ir atrás dele e me certificar de que estivesse bem e que não fizesse nenhuma besteira. Por mais instável que estivesse, ele parecia lúcido o suficiente para tomar a decisão de ir embora e não deixar que nada tirasse isso da sua cabeça. Mesmo assim, eu estava morrendo de preocupação e de pura mágoa.

Elas cresciam no meu peito, como se disputassem espaço.

Fechei a janela com as mãos trêmulas, me lembrando da maneira como ele havia estendido as suas em frente com desespero no olhar porque elas não paravam de tremer. Encarei o chão molhado, sentindo minha própria pele arrepiada devido ao frio intenso lá de fora, intensificado pelas minhas roupas úmidas.

Chorando sem parar um minuto sequer, me afastei e peguei um pano, secando o chão como se não houvesse nada mais que eu pudesse fazer no mundo. Tirei minha própria roupa e vesti uma roupa seca, imaginando quanto tempo demoraria para que Alex pegasse uma pneumonia naquela chuva, e me enrosquei feito uma bola na cama, soluçando ainda mais.

Tive sorte de que o barulho da tempestade fosse tão alto que eu não teria ninguém arrombando a porta do meu quarto para perguntar o que havia acontecido.

Eu não saberia explicar.

O que foi que aconteceu?

Peguei o Waltney, o coração afundando no peito, e o abracei com desalento. Odiei que o cheiro do Alex tivesse ali, que ele houvesse me presenteado, que ele tivesse deitado com a cabeça no urso dois dias antes ao implorar para que eu o deixasse dormir aqui, nós três juntos. Odiei mais ainda que fosse no próprio urso que Alex houvesse suado a noite toda, perdido em pesadelos ruins, murmurando palavras tristes até que eu o acalmasse outra vez.

Eu sou tão imbecil!

Ele nunca esteve bem e era tão óbvio que eu só podia ser burro.

Ainda assim, ele sabia que era grave.

Alex sabia e ele mentiu para mim.

Enquanto abraçava e esmagava o urso como se ele fosse o próprio Alex, o tempo passou de maneira que sequer o vi. Já era dia quando percebi que havia parado de chorar, e só porque a tempestade finalmente deu trégua e eu fui abraçado por um completo silêncio vazio.

Alex, você prometeu.