Made of Stone

XXXIX. De todos os sustos do mundo


Não era a primeira vez e eu ousava dizer que não seria a última em que Alex e eu estaríamos brigados um com o outro. Acho que uma maneira melhor de descrever seria: estávamos magoados um com o outro.

Desta vez, no entanto, nossos amigos se recusaram a se dividir, e nos fizeram engolir o orgulho e ficarmos próximos apesar de não olharmos um na cara do outro. E todos eles foram muito incisivos, como pais com filhos, ao nos disciplinar.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Me esforcei ao máximo para me manter neutro no colégio, ao lado deles, durante a semana toda. Porém, o fim de semana logo chegou e com ele, veio o aniversário do Ian. Era início de outubro, quase dois meses após o aniversário do Alex, que vinha um mês após o meu. Esse era o lado ruim de ter um grupo de amigos tão vasto: em um ano a gente tinha que dar vários presentes, sem falar nas festas que, às vezes, alguns deles resolviam fazer.

Eu não preciso nem dizer que Ian é um deles.

O miserável tinha que fazer uma festa.

Não apenas eu estava sem humor para isto, como o Alex também. No entanto, chorão do jeito que é, Ian conseguiu convencê-lo a ir no seu aniversário a despeito da família. Ian passou dias convencendo o Alex de que seus pais não tinham nenhum preconceito contra ele e que também não iriam contar aos tios onde ele estava.

Para ser sincero, achei um tanto fofa a constatação por trás disso: uns tempos atrás, Ian tinha uma mente bem fechada com relação à comunidade LGBTQIA+, por causa dos comentários dos pais. Ele próprio se corrigiu logo depois, ao perceber que Alex também fazia parte dela, mas nunca mais mencionou nada a respeito dos pais. Eu soube, quando ele disse com tanta certeza que eles não tinham preconceito, que ele passou os últimos dois anos fazendo-os mudar de ideia sem que soubéssemos.

Talvez Alex tenha se dado por conta do mesmo, porque no fim da semana, ele já havia cedido.

A “festa” do Ian não foi como as outras que participávamos, pelo contrário, fomos apenas nós. Nosso grupo de amigos, música em torno da piscina, bebidas e guloseimas para todos.

A casa do Ian era gigantesca, como a casa do Alex - talvez um tanto menor, o que era curioso, porque tinha um integrante a mais que a outra - embora eu pudesse dizer que nesta havia vida. Em geral, possuía tons beges e escuros, o que fugia bastante dos tons brancos da casa do Alex. Eu sempre preferi a casa do Ian, apesar do quarto e do jardim do Alex ganharem essa disputa, porque me sentia mais em casa neles.

A área destinada à piscina era toda de piso, havia umas poucas plantinhas em um canto separado, em vasos, e nenhuma árvore. Foi ali que ficamos, o dia frio demais para que os demais - eu, não! - pudessem entrar na piscina, então ficamos sentados conversando. Aquilo me deu dejà-vu tenso sobre uma festa de aniversário do Alex, com a antiga panelinha, em que ele tentou tocar violão e cantou pela primeira vez.

Parecia ter sido há séculos, mas foram pouco mais que dois anos atrás.

Sacudi a lembrança para longe.

Os pais do Ian não foram nada além de simpáticos com a gente e, depois de ficarem ao redor, com a Emma, eles se retiraram para nos dar privacidade. A irmã do Ian já tinha nove anos de idade, havia crescido um tanto mais - seria alta como ele -, mas mesmo assim se empoleirava no colo do Alex. Com sorrisinhos pedintes, conseguiu que Alex ficasse ao lado dela a respeito da discussão sobre a estadia dela na festa do irmão, mesmo que Ian a quisesse longe dali.

Mas nenhum de nós se importava com a presença dela, então os pais a deixaram abraçada no Alex quando saíram.

Antes que se fossem, Alex chamou: — Tia?

Ela se virou, fechando o caminho entre eles mais uma vez. — Sim?

— Sobre os meus pais...

Ela descartou a ideia com um safanão no ar, os cabelos grossos e escuros balançando com o ato. — Não vou dizer nada, já falei com o Ian — garantiu ela, com um sorriso carinhoso, antes que a testa encrespasse. Colocou uma mão no ombro dele. — Mas você devia ao menos dizer a sua mãe que você está bem. Não sei quanto tempo aguento mentir para ela, e ela tem ligado todos os dias — acrescentou, séria. — Sei que meu irmão é um filho da puta quando quer, pra dizer o mínimo — acrescentou, franzindo os lábios —, mas sua mãe não é nada como ele. Ao menos diga a ela que você tá bem, sim?

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Alex desviou o olhar para os cabelos de Emma, nos quais mexia do jeito que fazia sempre, antes de assentir.

— Claro, eu vou falar com ela. Valeu — acrescentou, erguendo os olhos para ela.

Ela assentiu e, depois de dar mais um beijo no rosto da filha, fez carinho nos cabelos do Alex, deu as costas e partiu.

Emma girou nas pernas dele para ficar de lado e se inclinou, tapando a boca para falar algo no ouvido dele. Parecia muito séria, e Alex arqueou as sobrancelhas ao ouvir, mas logo em seguida desatou-se a rir, abraçando-a.

Desviei o olhar, no minuto que me perguntei sobre o que ela dizia, percebendo que não havia deixado de prestar atenção nele desde que cheguei, mesmo ao longe. Deparei-me, em seguida, com quatro pares de olhos em mim, como se esperassem por algo.

— O quê? — perguntei, perdido.

Ian deu um peteleco nos meus cabelos, e eu devolvi, irritado.

— Sempre no mundo da lua.

— Quem falando, imbecil — retruquei, mas ele apenas riu.

— Perguntamos o que você vai fazer depois do colégio — repetiu Grace, o que havia perguntado antes, ao ajeitar os óculos no rosto.

O que eu vou fazer depois do colégio?

Pisquei, olhando de um para o outro. — Hã, faculdade?

— Isso é uma pergunta? — riu ela, achando graça.

Fiz uma careta, dando de ombros, porque não havia pensado muito nisto. Afinal, ainda faltam mais de dois anos para que eu terminasse o colégio, e eu realmente não andava pensando muito em mim ou no meu futuro, no que eu faria com a minha vida. Eu sempre pensava no...

Relanceei Alex rindo e brincando com Emma por um instante antes de retornar os olhos a eles.

— Imaginei que, talvez, faculdade de desenho — murmurei, um tanto envergonhado, sem saber o motivo.

— Isso é muito bacana! — concordou Grace, levantando-se e vindo sentar ao meu lado. — Acho que sempre imaginei isso pra você — ponderou ela, consigo mesma. — Consigo totalmente te enxergar estudando artes e desenhos! Você é muito talentoso, Caleb!

Sorri, batendo meu ombro no dela. — Obrigado.

— E quando eu digo que vou fazer faculdade de educação física, você só acha graça? — reclamou Ian, quase bufando, fazendo-a gargalhar.

— Mas é claro! — concordou Grace, dando de ombros. — Eu esperava essa faculdade do Korn ou do Dan, mas não de você.

Só de mencionar o Dan, imaginei que uma veia saltava em sua testa.

— Mas eu faço jiu-jitsu há dois anos! — argumentou, quase chorando que ela não lembrasse. — Eu sempre gostei muito de esportes e me ajudou muito no meu crescimento desordenado! Eu já sou faixa roxa!

Grace suavizou o olhar. — Eu sei, eu sei. — Desviei o olhar entre um e outro. — Você tem razão, acho que pode se sair bem estudando esportes. Você tem mesmo o físico pra isso — ponderou, olhando-o dos pés à cabeça.

As orelhas do Ian avermelharam tanto que eu tive o intuito de cobri-las para me poupar da vergonha alheia, mas Grace não pareceu perceber, ainda mais porque Cristina interrompeu a conversa.

— Eu acho essa pergunta bem desnecessária — opinou ela, relanceando Grace. — Sobre o que fazer depois do colégio.

Grace revirou os olhos, como um meme real que diz: decepcionada, porém não surpresa. — E por quê?

— Porque é uma pergunta muito vaga, quase ninguém sabe responder e quem sabe acaba se surpreendendo depois ao cursar outro caminho completamente diferente — argumentou ela, e Mason concordou, com uma careta pensativa. — Sem falar que em dois anos, já mudamos de ideia ou fomos obrigados a mudar de ideia porque a vida é assim.

— Por que você é assim, hein? — reclamou Grace, jogando as mãos para o alto. — Você sempre discorda de tudo o que eu falo e sempre tem que mostrar o lado pessimista da coisa! Nem o Maze é tão exagerado assim! — apontou, deixando-o desconcertado ao receber os dois olhares femininos irritados nele.

— Eu tento ver todos os lados — defendeu-se ele, e sabíamos: não só ele via todos os lados, como os explicava e divagava sobre os lados feito uma tese de faculdade em um único fôlego. — Mas eu concordo com a Cris.

— É claro que concorda — brinquei, rindo.

As duas meninas reviraram os olhos praticamente ao mesmo tempo, descartando Mason da conversa e virando uma para a outra para discutir.

— O mundo não gira ao seu redor — apontou Cristina, muito calmamente. — Se eu discordo da sua opinião não é porque é sua opinião, é porque é uma opinião estúpida no geral.

— Estúpida?! — arquejou Grace, bufando. — Estúpida é você! Sempre cortando as falas de todo mundo com os comentários mais corta-prazeres só porque a vida é tão tediosa aos seus olhos!

Cristina inspirou e expirou muito calmamente antes desviar o olhar para o Ian. — Sua festa está chata. Não tem um beck?

Ian arqueou as sobrancelhas.

Grace deixou o queixo cair, olhando para o restante de nós e deixando os olhos pararem em mim ao apontar para ela. — Ela tá me ignorando? — perguntou, furiosa, e eu fiz uma careta. — Cansei dessa garota, é sério!

Grace levantou e saiu para longe, unindo-se ao restante do grupinho que, eu recém percebia, continha só os últimos integrantes. Korn, Bex, Dan e Mary Jane, enquanto Alex estava do outro lado com Emma.

Ian levantou e foi atrás dela, enquanto eu fiquei preso com o casal do ano.

Não era incomum que as duas se estranhassem, por serem tão diferentes, e essa discussão não havia sido a primeira. No entanto, ao contrário de Alex e eu, elas logo voltavam a se falar como se nada houvesse acontecido, depois de esfriarem a cabeça. Em seguida, depois de uns dias ou algumas semanas em paz, elas discutiam de novo.

De alguma forma, eu as invejava nisto.

Eu preferia brigar com o Alex toda semana, por irritarmos um ao outro, mas sem que nada fosse rompido, do que esta situação estranha na qual estávamos agora. Sem corações partidos ou encolhidos em algum canto do peito, sem mágoas ou a vontade irremediável de chorar em posição fetal, sem danos e estragos.

Mas, do contrário, nossas brigas mais espaçadas do que as brigas das meninas sempre pareciam fazer um estrago incorrigível mais significativo do que mesmo mil brigas bobas.

*

Eu sabia que o Alex andava fumando maconha.

Talvez fosse uma maneira de compensar a ausência da nicotina, mas eu sabia que ele usava a erva de vez em quando. Ele nunca comentou, mas eu pude sentir o cheiro nele vez ou outra, mesmo quando estávamos - juntos não! - em bons termos. Como ele não disse nada, eu não quis levantar o assunto e constrangê-lo de alguma maneira, até porque, eu li a respeito, e certamente que a planta era melhor do que as infinitas substâncias duvidosas do cigarro. Sem falar que, se ele fumava, era longe da gente, então eram bem menos vezes do que ele fumava o cigarro; e quando estava com a gente, não o vi chapado nem uma vez, o que confirmava a minha teoria.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Contudo, as coisas haviam mudado, e naquela noite ele não pareceu empenhado em esconder de ninguém. No primeiro instante que conseguiu se afastar da Emma, que se distraiu com a televisão do lado de dentro da casa, ele achou um cantinho longe da piscina para acender um beck.

Cristina, imediatamente, correu até ele para tragar também, e logo a seguiu Mary Jane e Bex, quando perceberam que não se tratava do velho costume dele.

Não que eu estivesse cuidando da vida dos outros, acrescentei para mim mesmo, especialmente não a do Alex. Acontece que, no fundo, Cristina tinha um pouquinho de razão e a festa do Ian estava meio parada. Normalmente, eu não me incomodaria com isto - era legal fazer algo só nós, com uma música, bebidas e salgados. No momento atual, no entanto, estar preso em um ambiente com Alex - sabendo que ele atrai meus olhos para ele a qualquer movimento sutil - era perturbador. No momento atual, eu preferia estar cercado de tanta gente e tanta conversa mirabolante que sequer conseguiria ouvir meus próprios pensamentos.

Ou prestar atenção no Alex.

Ele não bebeu demais hoje?

E aquele é um segundo beck que ele está fumando sozinho?

Ou, quem sabe, prestar atenção nele seja resultado de não tê-lo prestando atenção em mim. Alex raramente fica chateado comigo, e quando fica, não dura muito tempo, e quem está sempre prestando atenção em alguém é ele em mim.

Mas eu posso jurar que ele evita tanto me olhar que sequer me vê quando os olhos passam por mim e me atravessam como se eu fosse invisível.

Ridículo!

Quem devia estar puto sou eu!

Depois de tudo o que aconteceu, depois de eu haver chorado sem parar por dois dias, morrido de preocupação, me culpado por não tê-lo impedido de ir embora, me corroído por dentro pensando que ele podia estar ferido ou morto ou dentro de uma camisa de força, quem sabe - depois de tudo isso, ali estava ele, como se nada houvesse acontecido. Ali estava ele, ainda na cidade, ainda escolhendo ficar até o fim do ano, ainda sendo o “Alex” no meio de nós.

Tudo o que eu passei foi para nada.

Aquele dia na tempestade aconteceu para nada.

Eu sentia um ódio profundo só de pensar que, se nada daquilo houvesse acontecido, nós ainda poderíamos estar... Se o Alex simplesmente não fosse tão... E agora nós estamos aqui, feito...

Argh!

Tudo havia mudado para nada mudar.

— Você não acha que a Cris tá bebendo e fumando demais? — perguntei, em algum momento, para o Mason.

Cristina, Mary Jane e Alex haviam se deslocado para a cozinha quando a larica bateu neles, Korn e Bex os seguiram como se fossem guardiões. Dan e Grace pareciam cada vez mais próximos um do outro e acredito que tenha sido por isto que Ian ficava perto dos dois o tempo todo, atrapalhando as conversas.

Emma havia passado a última meia hora arrastando um Alex bem chapado pela casa e eu a ouvi dizer ao menos uma centena de vezes que ia ficar acordada durante toda a madrugada e sobre como seria tudo tão legal, e agora ela dormia no sofá da sala em frente à televisão. Ian, apesar de reclamar da irmã o tempo inteiro, deixou Dan e Grace sozinhos para ir lá, pegá-la no colo como se pesasse uma pena e levá-la para domir no quarto.

Mason estava na cozinha com os demais, mas caminhou até mim quando me viu encará-los de longe a partir do batente.

— Não é dela que você tá cuidando de longe faz horas — retrucou ele, empurrando os óculos para cima.

Torci o nariz para a fala, vendo-o escorar-se do outro lado do batente, também com os olhos na confusão que eles faziam na cozinha do Ian, em meio a gargalhadas.

— Não respondeu minha pergunta — retruquei, tornando a encará-lo.

Mason suspirou, os olhos azuis focados na namorada.

— Ela é assim desde sempre, não é? — murmurou ele, em seriedade, antes de tornar a me olhar. — Desde que a gente conheceu a Cris. — Arqueei as sobrancelhas, parando para pensar que era verdade. A garota tinha catorze anos na época e já agia como se fosse maior de idade. — Você não é o único que ama alguém com problemas familiares.

Pisquei, estranhando o tom dele.

Quis retrucar a respeito do “amar” alguém com problemas familiares, e também quis divagar mais sobre a Cris porque eu nunca havia parado para pensar muito nela. No entanto, a constatação de que talvez Mason andasse tão angustiado quanto eu, embora eu não percebesse, me bateu em cheio.

Para ser sincero, tanto Mason quanto Cristina eram as pessoas mais retraídas e fechadas do nosso grupo. Eu conhecia o Mason porque, bom, ele é meu melhor amigo há tempos, mas quanto a Cristina, as coisas eram bem diferentes. Eram um tanto deduzíveis, no entanto, com o pouco de informação que eu tinha: os pais dela eram presentes, o pai é o veterinário do Magic e a mãe é dona de uma loja de roupas de rife, mas eles nunca estavam em casa quando nós estávamos lá - umas duas vezes, apenas o pai, mas ele ficava no canto dele para não nos atrapalhar. Pareciam compensar a ausência ao dar liberdade a ela e pareciam acreditar no que quer que ela contasse a eles. Eu nunca cheguei a pensar que havia algum problema ali, mas parece que eles são mais ausentes do que eu pensava - ou haviam mais problemas que eu desconhecia.

Sem saber o que dizer, fiquei quieto por um tempo, antes de chutar seu tênis com o meu.

— Sabe, você anda falando menos e menos com o tempo — comentei, analisando-o minuciosamente. — Quer dizer, depende do que você tá falando — ponderei, lembrando que ainda cedo hoje ele passou meia hora no telefone me contando sobre como o primeiro computador foi criado. — Quando é sobre o que tá acontecendo com você mesmo, você anda bem quieto, Maze.

Ele se endireitou rapidinho, torcendo o nariz de maneira parecida, como se eu o houvesse exposto.

— Não sei do que você tá falando.

Suspirei.

— Eu te contei sobre o Alex, por que você não pode me contar sobre a Cris? — questionei, arqueando uma das sobrancelhas.

Mason cruzou os braços. — Você não me contou tudo — enfatizou, baixando o tom de voz para os outros não ouvirem. — Foi muito vago sobre uma tempestade, uma briga, um olho roxo e choro. — Fiz uma careta para o resumo dele. — E nada de detalhes. Francamente, Caleb, já que eu sou o único que sabe sobre vocês dois...

Shhh — reclamei, tapando a boca dele com a minha mão, ao relancear os outros. Resulta que o meu “shh” chamou mais atenção que o que o Mason dizia.

Ele retirou a mão sem muita delicadeza e se aproximou ao continuar em um volume mais baixo:

— ... você podia ao menos falar comigo sobre isso. Como é que eu vou ajudar se eu nem sei direito sobre o quê foi a briga dessa vez? — reclamou, balançando a cabeça e um lado ao outro como se falasse com uma criança.

— Você sabe sobre o que foi a briga — reclamei, puxando ele para fora da cozinha e arrastando-o para o pátio, de onde vinha a música.

Apenas Grace e Dan estavam ali, um em cada cadeira de madeira, bebericando alguma bebida, e nos relancearam com estranheza antes de voltarem-se um ao outro. Como eles estavam relativamente longe da gente, próximos ao muro e longe da porta pela qual acabávamos de passar, eles não ouviriam nossa conversa.

— Sobre o Alex ir embora? — tentou ele, desacreditado, quando me voltei para ele. — De novo?

Cruzei os braços no peito, desconfortável, e relanceei a janela da cozinha, onde podia ver o Alex tentando cozinhar algo.

— A gente nunca tinha brigado sobre isso. E foi mais do que isso! — me defendi, pensando que aquilo parecia um motivo superficial demais. — Ele... Eu.... Nós... — Mordi a boca, frustrado. — Você sabe que eu e o Alex, a gente estava em bons termos — repeti, jogando o “juntos” para fundo da memória, para cair no esquecimento como se nunca houvesse acontecido. — E ele apareceu e estragou tudo, quando ele tinha me feito acreditar que...

Suspirei.

Alex me havia feito acreditar que o que acontecia no nosso universo era real e que juntos, "a gente daria um jeito", daquele jeitinho tão Alex de ser. Em toda aquela beleza, com seu violão e suas roupas escuras, pousado em paisagens, queimadas as imagens tão perfeitas dentro da minha memória. Tudo a respeito de promessas e declarações; de acreditar no que o outro sentia; de que eu valia a pena para que ele ficasse até o fim do ano e que mesmo longe, ele ficaria comigo; de que "morrer de amor" existia tanto quanto músicas de amor e desenhos de amor; tudo soava irreal agora.

— Ele não foi um bom amigo. E de novo, ele quis ir embora antes do tempo quando ele prometeu que ele.... — Bufei, vendo as sobrancelhas loiras do Mason arquearem em surpresa. — Ah, Mason, você sabe o que ele fez!

No entanto, pensei por um momento e cheguei à conclusão de que ele não sabia. Eu realmente havia deixado os detalhes de lado, sobre estarmos em bons termos, sobre ele haver tentado me levar junto, sobre haver me ignorado por dias quando a gente devia estar...

Em bons termos.

Mason ficou estranhamente quieto, como se debatesse sobre algo, antes de me olhar com significância.

— Caleb...

— O quê? — Ele ficou muito sério, sequer piscou, como se repensasse sobre me contar ou não. Repeti: — O que foi?

Mason balançou a cabeça, olhando para longe.

— Nada. — Quando continuei encarando-o para incentivar que dissesse, ele ergueu as orbes azuis para mim e confirmou: — Nada, deixa.

Encarei-o com desconfiança por um instante antes de desistir.

— A gente reclama sobre você falar bastante, mas nenhum de nós se incomoda com isso — decidi comentar, imaginando que ele havia tentado contar algo pessoal. — Se você quiser, um dia, falar muito sobre você ao invés de outras coisas, eu vou estar aqui pra te ouvir, Maze.

Ele assentiu, talvez por tempo demais, antes que o óculos deslizasse para baixo com o ato e ele o empurrasse para cima outra vez.

— Obrigado. Um dia, eu vou...

Antes que ele finalizasse, todavia, nossa atenção foi chamada pela correria que todos fizeram para onde a gente estava. Uma gritaria desesperada se instalou, junto de gargalhadas, ao passo que o pessoal se embolava para fora da casa. Só entendemos do que se tratava quando Alex veio para o pátio por último, carregando a lixeira da cozinha, em chamas.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Arregalei os olhos, tentando entender a comoção, meus olhos presos no fogo que subia os prováveis setenta centímetros da lixeira e parecia erguer-se cada vez mais. Alex a largou no pátio, sacudindo a mão em seguida, uma careta engraçada, enquanto os outros meio que se agitavam em torno, sem saber o que fazer.

Dan foi mais rápido que qualquer um de nós. Em um instante estava longe da casa e no instante seguinte ele já havia pegado um balde do pátio, enfiado na piscina e jogado a água na lixeira para apagar o fogo.

A gritaria cessou no mesmo instante.

— Opa — interrompeu o silêncio o Alex, com um sorriso amarelo.

Uma belíssima coisa a se dizer depois de dar um susto em todo mundo.

E então uma sucessão de vozes amontoadas se fizessem ouvir: perguntas, xingamentos, zombaria e os risos. Eu estava perdido demais para ter qualquer reação, tentando ouvir o que Cristina, Mary Jane e Alex explicavam acima das vozes dos demais e da música que não havia cessado. Ian voltou correndo de dentro da casa, os olhos arregalados, e Emma o seguia de perto da mesma maneira, o rosto inchado de sono.

Enquanto explicavam, os três tiveram uma crise de riso e não conseguiram terminar pelo que pareceu meia hora - mas eu provavelmente exagerava. Algo nas vozes arrastadas dos três dava a entender que Alex quis fazer uma torrada na frigideira. Para ligar o fogão, usou o isqueiro para acender um papel toalha, porque segundo ele, havia se acostumado a ligar o fogão assim já que, no local onde ele andava dormindo, o botão do fogão não funcionava. Logicamente, com a cabeça chapada e alcoolizada, ele jogou o papel acendido na lixeira ao invés da pia, e o lixo inflamável dentro dela resultou no caos que víamos.

Como se não bastasse, quando questionado o porquê dele usar um papel, sendo que podia usar apenas o isqueiro - ou o botão perfeitamente funcional! -, Cristina, MJ e ele se olharam com cara de patetas antes de cair na gargalhada outra vez.

— Tá aí o porquê de não se deixar gente chapada sozinha na cozinha — comentou Korn, gargalhando.

Bex apontou, com uma sobrancelha arqueada: — Eles estavam com a gente.

— E você não fumou? — questionou ele, as mãos na cintura.

Bex fez uma careta, apontando para o trio maravilha. — Não tanto quanto eles.

— E vocês tavam na cozinha com os três e não viram nada? — julgou Grace, embora os olhos estivessem divertidos, ao encará-los.

— Depois que a Cris quebrou o copo do Batman com cerveja dentro, achei que nada de pior podia acontecer — defendeu-se Korn, erguendo as mãos ao gargalhar.

— Você quebrou meu copo do Batman?! — interferiu Ian, a boca aberta, para a ruiva.

Ela fez uma careta. — Disgurpa.

Mary Jane e Alex caíram na gargalhada outra vez, quebrando a pose arrependida dela quando ela riu outra vez. Ian suspirou, dirigindo o olhar para a irmã que parecia bem acordada outra vez e que ria sem sequer entender. O restante gargalhou outra vez com a careta de decepção do Ian sobre o copo do Batman.

— Eu compro outro para você — garantiu Cristina, novamente séria, ao se aproximar dele.

— Cara — reclamou Grace, cutucando Dan —, eu devia ter fumado também. Queria estar nessa onda deles. Olha a cara de patetas — apontou ela, especialmente para o Alex, que lhe mostrou a língua.

Dan apenas riu.

— Você se queimou? — perguntei, os olhos presos na mão que Alex havia sacudido antes.

Acredito que tenha sido a primeira vez que Alex dirigiu os olhos para mim durante a noite toda, e eu não sei o que exatamente vi ali. Ele olhou para a própria mão, massageando, quando os demais se aproximaram, chocados que ele pudesse haver se queimado, mas ele negou.

— Não foi nada — garantiu, os olhos voltando-se para mim e, em seguida, para os demais em um tom mais alegre: — Só apagou as digitais desses três dedos.

Torci o nariz, incomodado, e olhei para longe.

Talvez eu apenas estivesse amargurado demais para achar graça da situação toda quando todos pareciam se divertir com ela, inclusive Bex e Korn, que sempre pareciam ter mais maturidade que todos nós juntos. Eram eles que costumavam puxar orelha quando fazíamos besteira. Então eu realmente supus que eu fosse o logotipo da amargura.

Mas eu sentia que, quando o Alex havia largado o foda-se para mim porque estava chateado, ele também havia largado o foda-se para ele. Novamente estava ali afogando as mágoas em substâncias duvidosas, mesmo que não fumasse cigarro dessa vez, e eu senti como se houvesse sido transportado para o início desse ano, quando ele estava dessa forma.

Sentia um misto de preocupação, frustração e rancor.

Eu sentia que, por mais que eu tentasse salvar o Alex do que quer que o assombrasse, eu jamais conseguiria se ele não tentasse também. E ele não parecia querer nem quando estava bem, nem quando estava sorrindo, nem quando parecia estar minimamente feliz.

Que dirá quando não está.

O que todos viam como algo divertido, eu via como um alerta vermelho.

E, ali, enquanto debatia internamente sobre o quanto eu podia estar exagerando, sobre o quão ridículo eu sou por me preocupar com alguém que tanto me machuca e sobre o quanto eu deveria sequer prestar atenção nele porque ainda estou puto, acabei me aproximando sem querer. Queria gritar com ele, ou pegá-lo pela mão e ter uma conversa daquelas nossas sobre o que estava se passando com ele, ou forçá-lo a ouvir umas verdades sobre nós dois.

Ao mesmo tempo, eu olhava para os rostos tranquilos dos demais e pensava que eu realmente só podia ser um exagerado ridículo, que está atrapalhando um aniversário divertido por motivos bestas. Acabava voltando os olhos ao rosto alegre do Alex, ponderando se ele realmente podia estar bem e feliz.

Tudo o que escapou contra a minha vontade, todavia, em um tom não exatamente simpático, foi: — Você podia ter se machucado.

Alex focou os olhos em mim, o sorrindo morrendo aos poucos, e pareceu tentar ler o sentido do que eu havia falado. Meu tom de voz não favoreceu, porque ele fechou a cara e respondeu com a mesma tonalidade:

— Acontece que me machucar com as minhas loucuras não é nada de outro mundo — resolveu apontar, com a voz amarga. — Pensei que soubesse disso, Caleb, sabe, sendo eu o fodido — enfatizou — que sou.

Fechei a cara também, permitindo que, de todos meus pensamentos e emoções, se intensificasse o quanto eu estava chateado com ele por tudo. Chutei a culpa para longe quando ela tentou instalar-se no meu peito ao ouvir as palavras que remetiam às minhas dirigidas a ele uns dias antes.

— Que bom que você sabe e não se importa com isso — retruquei, vendo-o estreitar os olhos. Cruzei os braços na frente do peito, sentindo-me exposto: — E se tivesse machucado os outros, também não ia importar?

— Ah, pronto, começaram — comentou Bex, com um suspiro pesado, mas eu não desviei o olhar do dele.

— Tava demorando — concordou Mary Jane, se afastando no mesmo instante.

Alex deu dois passos em frente, se aproximando mais de mim quando Mary Jane e Bex saíram do caminho. — Muito obrigado pela preocupação, Caleb — ironizou ele, com escárnio. — Da próxima vez que eu tentar tacar fogo em uma casa de propósito, vou repensar antes.

Balancei a cabeça de um lado ao outro, desacreditado.

— Não, você não faz nada de propósito — acusei, sentindo o rancor aumentar no peito. — As coisas simplesmente acontecem com você. É incrível! — exclamei, devolvendo o deboche.

Alex soltou um som pelo nariz, também não cedendo.

— Engraçado ouvir isso de você, já que você nunca faz nada de errado e nunca tem culpa de nada — alfinetou, e eu tentei não deixar transparecer nada. — Eu também acho isso incrível, sabe?

Me sentindo ainda mais na defensiva, reclamei, apontando o dedo para ele: — Então eu devia pedir desculpas pelo que você fez?

— Que memória seletiva a tua — retorquiu, quase que imediatamente. — Que tal pedir desculpas pelo que você fez?! — Apontou de volta, os olhos tornando-se feridos outra vez quando questionou, a voz baixando algumas oitavas: — Ou você acha que palavras não tem peso nenhum?

Engoli em seco, sentindo o ímpeto de dar um passo para trás, mas os firmei no chão.

— Eu acho que preciso de mais bebida — alguém comentou e mais alguém respondeu um “acabou”, mas eu não consegui prestar mais atenção em nada que não fossem os olhos chateados em mim.

Não, quis responder, elas têm o peso que eu estava carregando antes de pronunciá-las. Mas eu não consegui, sabendo que minhas palavras realmente haviam o magoado tanto quanto eu me sentia magoado. Só que eu não conseguia achar aquilo pior do que o Alex havia feito.

— É claro que não — retruquei, depois de hesitar, o volume da voz mais baixo. — Mas o que eu disse não anula o que você fez.

— E o que eu fiz não anula o que você disse, Caleb! — objetou ele, perdendo a paciência, a expressão tornando-se um tanto torturada. — Aliás, essa é a diferença entre nós. Você me ataca — acusou, e eu engoli em seco. — O que você me disse você disse para mim. O que eu fiz eu não fiz para você. — Quando eu franzi o cenho, ele ainda explicitou: — Eu não fiz nada para você ou para te machucar.

Senti as mãos fecharem em punho.

— E você acha que eu falei aquilo pra te machucar? — perguntei, sentindo meu coração se encolher um tanto no peito. — Eu falei porque é verdade!

A expressão dele tornou-se sombria novamente, e antes que houvesse dito o que queria, fechou a boca outra vez.

Quis me encolher com o olhar doído que pareceu durar uma eternidade, mas não o fiz. Eu até pensei em explicar que, o que eu quis dizer é que o que eu estava sentindo era verdadeiro naquele momento, e que colocar para fora foi natural porque eu estava acumulando chateações - e não que fosse realmente verdade o que eu falei.

Mas de que importava?

Ele sequer reconhecia a gravidade do que fez.

— Bom saber — conseguiu murmurar apenas, a expressão amargurada, os olhos avermelhados da maconha parecendo brilhar por um instante.

— E quem quebrou uma promessa foi você — apontei, baixinho também, quase me recusando a demonstrar o quanto aquilo havia me machucado.

Alex piscou algumas vezes, parecendo entrar em um conflito interno, mas a mágoa não cedeu, mesmo que momentaneamente aparentasse culpa.

— Eu não quebrei a minha promessa — reforçou, pronunciando cada palavra devagar para que eu entendesse de uma vez por todas —, é você quem tá me impossibilitando de cumpri-la agora.

Ele simplesmente não consegue entender!

Neguei, franzindo o cenho. — Você quebrou da maneira que importava.

Alex soltou um som pelo nariz, dando as costas, mas se voltou mais uma vez para evidenciar: — Você também quebrou algo da maneira que importava, Caleb, só que você se recusa a admitir.

Senti os olhos pinicarem ao vê-lo entrar na casa a passos largos, piscando muito ao olhar para cima e dar as costas para que ele não visse. Apenas então percebi que eu estava sozinho no pátio: eu, a piscina e as caixas de som com a música retumbando uma emoção contrária à minha. Eu cheguei a ver, mas não prestei atenção quando todos pareceram sair de fininho com a nossa discussão.

Inspirei e expirei fundo algumas vezes, tentando colocar as emoções e os pensamentos em ordem antes que eles voltassem, e não me permiti chorar por essa bobagem.

É uma festa, me convenci, então sorria.

*

Quando percebi que havia ficado tempo demais sozinho é que me bateu o questionamento de onde estava todo mundo, já que não os via e sequer os ouvia de onde estava. Entrei na casa, dando uma olhada ao redor, mas não encontrei ninguém e até mesmo Alex havia desvanecido. Entrei na cozinha e percorri todo o térreo da casa até ouvir a porta da frente ser escancarada.

Dei meia volta e logo vi Alex vindo na minha direção lá da frente, a porta já fechada, com uma expressão irritada.

— Cadê todo mundo? — questionei, à contragosto.

Ele passou reto por mim, em direção à cozinha, antes de resmungar um: — Foram buscar bebidas.

Eles nos deixaram sozinhos?!

— Todos? — perguntei, me forçando a segui-lo.

Alex suspirou, aproximando-se da bancada da cozinha para revirar as sacolas com salgadinhos dentro - ou o que sobrara dos salgadinhos com o ataque dos três chapados da casa.

— MJ, Emma, Grace e Bex estão lá na frente enchendo o saco — reclamou ele, fazendo um gesto vago em direção à frente da casa.

Quase soltei um suspiro de alívio.

Definitivamente que eu não queria ficar sozinho com o Alex.

Me apoiei no batente, me recusando a chegar mais próximo dele, ao deliberar sobre aquilo por um instante. Não sabia o que estavam fazendo lá na frente, mas torci o nariz para a decisão dele de voltar para perto de mim quando podia ter ficado lá ou ido com os demais.

— Por que você não foi junto?

Alex parou o que fazia no mesmo instante antes de espalmar uma mão no balcão e virar na minha direção. Me dirigiu um olhar desacreditado, parecendo querer levar as mãos ao meu pescoço.

— Você gostaria mesmo disto, não é, Caleb? — reclamou, soltando um som pelo nariz, antes de voltar-se ao balcão e revirar as sacolas. — Eles não me deixaram ir junto e ainda disseram que eu devia conversar com você. Como se isso fosse possível — cuspiu, irritado, ao me relancear.

Ah, pensei, já havia imaginado que eles houveram vazado por causa da nossa discussão, mas também fazia sentido que Bex e as meninas ainda estivessem enrolando lá na frente para que a discussão continuasse. No segundo seguinte, prestei atenção no restante do que ele havia dito.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— O que isso quer dizer? — questionei, perdendo o que restava da minha compostura ao elevar a voz.

Ele se virou na minha direção, as sobrancelhas arqueadas, como se não acreditasse que tivesse que explicar aquilo.

— Quer dizer que você ergueu seu muro de pedra novamente, Caleb — explicou ele, muito calmamente, como se estivesse ensinando a constituição de Caleb Augustine Jones para mim, como um professor ridículo. A amargura na voz, no entanto, ainda estava presente. — E quando faz isso, é impossível conversar com você. Você só sabe atacar!

Frisei os lábios, tremendo de raiva, mas não consegui atacá-lo - como ele diz - naquele momento. Ele conseguiu realmente me deixar sem palavras, e eu me senti agressivamente atingido com aquilo, até que eu as catasse de alguma forma para não deixá-lo ganhar a discussão.

— E você só sabe querer conversar depois que faz merda — apontei, o cenho vincado. — Palavras nem sempre consertam o que ações causam. Eu tô cansado de ouvir os teus pedidos de desculpas.

Ele sentiu minhas palavras, porque eu vi a expressão tornar-se ainda mais tenebrosa.

— Pois eu não tenho nenhum pedido de desculpa para dar dessa vez, não — negou, franzindo os lábios, ao balançar a cabeça de um lado ao outro. — Só tenho pra ouvir. — Bufei. — Parece que você se acostumou tanto a estar na outra posição, que sequer percebe quando faz merda também!

Soltei um som pelo nariz, frustrado.

— Eu não tenho nada pra falar.

Alex deixou escapar um riso, mas era azedo demais para ser genuíno.

— Agora, né? — alfinetou ele, empilhando os salgados em uma bandeja, na ausência de qualquer delicadeza. — Às vezes você tem muito pra falar.

Trinquei a mandíbula.

— Digo o mesmo.

Ele sorriu, a graça jamais chegando aos olhos, antes de finalizar, os olhos retornando para os salgados: — Pois eu não tenho nada pra falar agora também.

Desta vez, quem deu as costas fui eu, sentindo os punhos doerem.

Pensei em marchar até a frente da casa, mas eles só me fariam perguntas sobre nossas discussões - ou pior: fariam com que eu entrasse em casa novamente para conversar com o Alex, como fizeram com ele. Meus pés deslocaram-se para o pátio novamente, odiando que não houvessem árvores para que eu me enfiasse no meio delas, reprimindo o ódio.

Fiquei na área da piscina, deixando-o sozinho na cozinha.

Ao contrário da casa do Alex que tinha um formato parecido com a do Ian - formato de casas de rico -, ali eu podia vê-lo do lado de fora. A cozinha ficava de frente para o pátio traseiro, embora não exatamente de frente para a piscina mas para as mesas redondas, e os vidros das janelas enormes encaravam o lado de fora. Torci o nariz para as costas dele, ainda apoiado no balcão, ao furtar os salgados de aniversário na provável larica que não havia passado ainda.

Quando me dei por conta do silêncio que estava, percebi que a música devia ter parado de tocar uns dez minutos atrás e só então percebi, dando um chute leve na grande caixa de som para que ela voltasse a funcionar, retumbando música eletrônica por todo o pátio.

Ansioso, caminhei em torno da piscina, esperando os outros voltarem.

Aproveitei meu tempo extra - torturando-me em pensamentos e a ponto de ter uma crise existencial - para catar as latinhas e copos plásticos que eles deixaram por ali. Vi que Alex olhava por cima do ombro quando relanceei pela janela, mas ele logo franziu o cenho e tornou a se apoiar no balcão, de costas para mim.

Bufei, virando as costas também.

Ele parecia, orgulhoso como eu, também ponderar se devíamos tentar conversar outra vez. Mas, como eu, ele devia saber que isto não iria funcionar, porque não havia nada que pudesse ser dito para consertar o que aconteceu. Nenhum de nós iria ceder e, sinceramente, eu começava a pensar que nenhum de nós devia.

Eu não queria mais desculpas, mais explicações, mais nada dele.

Eu só queria que tudo ficasse bem.

E o pior de tudo é que eu sabia que não iria.

Então, eu só podia ficar ali, fingindo-me de ocupado ao limpar o pátio antes mesmo de que a festa chegasse a um fim, torcendo para que, quando os outros retornassem, fossem todos juntos. Assim, eles retomariam a festa e as conversas mirabolantes e não teria ninguém focando em mim ou no Alex, ou forçando um entendimento entre nós outra vez.

Eu me abaixei para juntar a última latinha antes de subir para o quarto do Ian para me esconder, deixando-o titubear sozinho naquela cozinha.

No entanto, eu não vi que a latinha de cervejacaiu ao lado de uma poça de água. O líquido incolor havia escorrido até uns trinta centímetros para longe da latinha, e eu pisei em cima sem ver. Quando a juntei e me ergui, meu pé escorregou para frente e, antes que eu pudesse me equilibrar, meu corpo se foi para trás.

Esperei a batida da bunda no chão, mas ela não chegou.

A parte traseira das minhas coxas bateram na beirada da piscina, mas a minha bunda tocou na água. Quando eu percebi o que havia acontecido - e perto de onde eu estava -, soltei o que segurava no desespero para tentar me apoiar em algo antes de afundar, mas foi tão rápido que eu sequer consegui entrar em pânico totalmente antes da minha cabeça submergir na água.

Não consegui fechar a boca a tempo, mas, apesar de engolir um bocado de água clorada, consegui trancar a respiração assim que afundei. Minhas mãos não encontraram nada além de fluido como apoio, não importava o quanto eu me debatesse. A água estava tão gelada que eu senti que fosse congelar junto dela antes de ter a chance de me debater, mas isso não aconteceu. As bolhas à minha volta, que se multiplicavam mais e mais e mais, impediam que eu enxergasse onde exatamente estava a borda da piscina.

Mas uma coisa era certa: eu não estava nem perto da superfície.

Parecia que, quanto mais eu tentava chegar nela, mais ela se afastava de mim, o que fazia crescer o desespero no meu corpo. Quando finalmente senti o fundo da piscina bater na minha bunda, percebi que estava mais do que fodido.

A piscina do Ian era mais funda que a piscina do Alex, droga de família de gigantes!

Eu devia ter continuado as aulas de natação.

Tentei reproduzir o pouco que havia aprendido com o Alex, mas o desespero não me permitia desempenhar nenhum movimento que não fosse caótico.

Eu tentei usar o fundo para apoiar meu pé e, em um impulso, subir - foi o que eu fiz, alcançando a superfície logo depois e puxando um bocado de ar para dentro dos pulmões. Mas de que adianta chegar na superfície, se não consigo permanecer lá?

Não importava o quanto eu debatesse as pernas e os braços, minha cabeça sempre ia pra debaixo da água. Fora d´água, dentro d’água, fora d’água, dentro d’agua. Isto aconteceu vezes o suficiente para que eu me desesperasse ainda mais e, na tentativa de gritar por socorro pela milésima vez, acabei me afogando com a água outra vez quando entrou pelo nariz e acabei afundando outra vez.

Quando senti que não conseguiria sair dali nem tentando nadar ou me debater - com o afogamento, tudo ardia e eu não conseguia segurar a respiração por muito tempo, o impulso de tossir tomando conta -, eu entrei em um desespero ainda maior.

Toda vez que subi à supefície, eu apenas enxergava um pátio vazio com uma música bem irônica festiva. O desespero da constatação de que eu estava sozinho acabou me fazendo afundar de novo, mais e mais embaixo, ao passo que tentava chegar mais e mais acima. Minha cabeça parecia que ia explodir com o tempo que segurava a respiração, os pulmões e as narinas ardiam, o coração pulsava muito - o que os forçava a querer, mais e mais, processar o oxigênio que não chegava a eles.

Um pensamento terrível se instalou: eu vou morrer.

O som estava alto, ninguém estava ali, o pessoal que não havia saído estava lá na frente e não ouviria e o Alex estava de costas para a janela - mesmo que não estivesse, ele não enxergava a piscina dali a não ser que se inclinasse por sobre ela -, o som da música repercutindo pela casa toda.

Sentindo que minha cabeça ia explodir, ainda tentando chegar à superfície mas me afastando cada vez mais dela outra vez, abri a boca por instinto. Era óbvio que eu me afogaria, mas não havia como não tentar respirar. Tossi, acabei expirando mais água, tossi outra vez, até o ponto em que nem tentando respirar, coisa alguma entrava pela minha garganta, nem mesmo água. A minha visão começou a escurecer, o pulmão arder e a cabeça parecer ser pressionada com o peso do mundo.

E então tudo apagou.

*

Quando a minha consciência retornou, eu já estava cuspindo a água que havia entalado na garganta. Ela ardia tanto que eu tossi algumas vezes, mas não aliviou, e minha visão demorou uns cinco segundos para se tornar nítida ao passo que eu sentia meus pulmões encherem de ar, a despeito da dor.

E como doía!

Minha pele estava gelada e meu corpo tremia, eu sentia as gotas de água com cheiro de cloro escorrerem dos meus fios de cabelo para o rosto minhas pernas latejavam pela batida, meus pulmões reclamavam e minha garganta e minha cabeça ainda doíam.

Aos poucos, o som retumbante da música retornou aos meus ouvidos: era a mesma música eletrônica, como se zombasse da minha cara, daquelas eletrônicas que pareciam durar uma eternidade. Pisquei, vendo que apenas uma pessoa estava comigo, então era de deduzir que havia sido ele a me salvar.

Depois da música, o próximo que ouvi foi a voz desesperada.

— Você tá bem?! Caleb, você tá bem?!

Alex estava pálido, como se qualquer resquício de cor houvesse sumido do seu rosto. Os olhos pretos estavam alargados, percorrendo cada pedaço de mim como se eu estivesse quebrado, a boca também sem cor, como se houvesse sido sugada dele. Seus cabelos também pingavam, sua roupa grudada no corpo, e ele também tremia da cabeça aos pés, mas eu soube que não era de frio, dado o puro terror que eu via nos seus olhos.

Me apoiei, enfim, nos cotovelos e me sentei, gemendo no processo.

— Você consegue respirar?! — perguntou outra vez, apressado, os olhos quase saindo das órbitas. — Você tá bem?!

Tentei processar o que acontecia quando me caiu a ficha: eu havia quase morrido, de fato. Não havia ninguém mais ali, então era óbvio que, se o Alex houvesse dado as costas e ido lá para a frente, ele nem teria me visto. Eu teria literalmente morrido.

A constatação terrível fez ficar mais difícil de respirar de novo, sentindo o sangue pulsar nos meus ouvidos, e meu corpo passou a tremer ainda mais. Eu quase morri. Piscando um tanto, os olhos arregalados, eu vi as gotas caírem incessantemente dos cabelos escuros do Alex para a minha roupa.

Foquei nele e assenti, rapidamente, para que ele se acalmasse um pouco, suas mãos percorrendo meu corpo como se para se certificar que eu realmente estava bem.

— Caleb, você tá bem?!

— Tô bem — consegui formular em uma voz falha, as narinas e a garganta ardendo. Tossi mais algumas vezes, mais forte do que eu, mas não pareceu ajudar com a sensação horrível de afogamento. — Eu tô bem.

Apenas quando a música trocou para outra é que eu pude ouvir sua respiração, pesada e alta, quase ao lado do meu ouvido, e foquei os olhos nele. Ele tinha uma mão espalmada no meu peito, como se para se certificar de que meu coração batesse. Repetiu, feito um disco arranhado: — Tem certeza?! Caleb, você tá bem?

— Tô bem — reforcei, esfregando a garganta.

— Tem certeza?! Você consegue respirar?!

— Consigo. Eu tô bem — reforcei, e ele assentiu repetidas vezes.

Não parecia querer tirar a mão do meu peito, mas ele o fez relutantemente, a cabeça movendo-se para cima e para baixo.

— Você tá bem. Você tá bem — murmurou, quase como em um mantra, ao repetir de novo e de novo, se deixando cair sentado ao meu lado. — Você tá bem.

Esfreguei a garganta, ainda a sentindo ruim, os dedos duros de tanto frio - embora eu soubesse que era mais por estar molhado da cabeça aos pés, e recém processei que estávamos ao lado da piscina. Encarei-a como se fosse um precipício da morte, querendo nunca mais chegar mais do que dois metros dela outra vez. Fixei os dedos no chão, como se para me certificar de que estava seguro ali e não cairia na piscina outra vez por algum movimento gravitacional esquisito.

Ali me ocorreu que a poça que havia sido formada havia escorrido de onde estava a lixeira, devido à água que Dan jogou nela para apagar o fogo.

Eu reclamei do susto que Alex me deu e acabei, por um carma bem debochado, dando um susto maior nele.

— Droga — resmunguei, tentando quebrar o clima tenso para acalmá-lo também, sabendo que ele estava nervoso. — Eu sou mesmo um idiota. Não devia estar tão próximo da piscina — falei, sabendo que aquilo podia ter sido evitado. Quando ele continuou em silêncio, a respiração pesada ao meu lado, completei o que havia passado pela minha cabeça lá dentro: — Eu devia ter aceitado suas aulas aquela vez.

Virei para ele, com um meio sorriso, mas que logo sumiu ao vê-lo.

— Alex?

A respiração pesada havia se tornado algo a mais enquanto também caía a ficha dele do que havia acontecido. Seus olhos escuros estavam foscos outra vez, como na semana passada, e suas mãos tremiam, descansadas em seu colo, como se ele estivesse hipotérmico. Coloquei a mão em seu ombro, vendo-o desviar os olhos para mim, um desespero aterrador refletido neles.

— Alex, o que houve? — perguntei, mas ele se desvencilhou de mim e levantou. — Alex!

Ele parecia tonto e ziguezagueou em direção à casa, apoiando-se nas paredes, a respiração piorando tanto que podia se ouvir mesmo com a música alta. Era quase como se ele não conseguisse respirar - como se fosse ele quem estivesse se afogando desta vez.

Eu levantei, sentindo as pernas reclamarem, também tonto, e o segui.

— Alex, você tá me assustando — verbalizei, atordoado, ao colocar a mão no meu próprio peito para tentar acalmar meu coração.

Alex estava curvado sobre o próprio corpo, o rosto cada vez mais pálido, quando fez um sinal negativo com a mão. Era como se dissesse: isso não é nada, antes de se apoiar e escorregar pela parede de dentro de casa até o chão.

Eu quis voltar e desligar a música irritante, mas não queria deixá-lo sozinho. — Alex?! — chamei, apavorado enquanto ele custava a respirar.

Parecia quase um ataque de asma, mas ele nunca havia tido problemas respiratórios antes. Ponderei se ele não havia aspirado água quando me tirou da piscina, mas apenas então percebi que gotas muito específicas escorriam pelo rosto dele.

Ele está chorando?

Algo estalou na minha mente e eu arregalei os olhos.

— Alex, você está tendo um ataque de pânico?

Ele ergueu os olhos avermelhados para mim - e que agora eu entendia não ser apenas da água clorada da piscina ou do que ele havia ingerido e fumado hoje, mas do choro ao tentar respirar. Fechou os olhos com força, as mãos em punho, mas assentiu.

Desesperado, imaginei se seus pulmões reclamavam para respirar tanto quanto os meus se sentiram minutos atrás. Quis aliviar aquilo para ele, e salvá-lo da mesma forma como me salvou, mas eu não sabia como. Gritei pelos demais, mas já sabia que a chance era mínima de ouvirem.

Eu correria até lá, mas não queria deixá-lo sozinho.

— O que eu faço? — perguntei, apavorado. — Alex, eu não sei o que fazer! O que eu faço?! — repeti, tentando não me desesperar, mas ele parecia concentrado demais em acabar com o próprio desespero.

Me agachei na frente dele, sentindo meus próprios olhos marejarem.

— Isso já aconteceu antes? — perguntei, mas ele não pareceu ouvir, da mesma forma que não parecia me ver. Dei uma sacudida nele e os olhos foscos em mim pousaram. — Já aconteceu antes? — Ele assentiu, voltando a olhar para qualquer lugar. — Você sabe o que fazer?

Alex une ainda mais as sobrancelhas, parecendo perturbado demais com os próprios pensamentos para me ouvir por completo. Repeti a pergunta algumas vezes até que ele ouvisse, a respiração ficando falha junto do choro, e ele ergueu os olhos inchados para mim.

— Eu... Não... — conseguiu formular, entre soluços. — Eu espero... Espero.... Passar.

Antes que ele dissesse mais alguma coisa, levantei e corri para o meu celular e aproveitei para desligar a música. Gritei pelos demais outra vez, mas ninguém apareceu e, tremendo de nervosismo, tive que forçar o touchscreen mais de uma vez porque minhas mãos ainda estavam úmidas.

Já estava de frente a ele de novo quando pesquisei o que fazer.

Agachei-me na frente dele, instruindo os métodos que a internet me informava, mas ele não parecia me ouvir. De alguma forma, ele parecia estar preso dentro da própria mente e eu não conseguia puxá-lo de volta. Ele tentou falar alguma coisa, mas as palavras saíam aos pedaços, como se ele se engasgasse com elas.

Era praticamente um outro nível de ataque de choro.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Alex — chamei, nervoso, ao apontar para mim. — Eu tô bem. Você tá vendo? — perguntei, em meio ao choro dele, sentindo meus próprios olhos marejarem. Me senti culpado, de alguma forma, por haver causado isso. — Você me tirou da água e eu tô bem. Tá tudo bem, Alex, eu juro!

Eu nunca havia presenciado ou passado por um ataque de pânico, então eu não sabia o que isso significava. Alex parecia não conseguir respirar, ou não conseguir falar, ou não conseguir fazer nada além de chorar e soluçar e puxar o ar com força como se não tivesse a habilidade de desempenhar tudo ao mesmo tempo.

Sentindo-me desesperado também por não conseguir acalmá-lo nem com as instruções da internet, eu levantei e corri até a frente da casa, mas não havia ninguém lá. Comecei a sentir que eu próprio estava prestes a ter um ataque de pânico também, se não conseguisse acalmá-lo, e voltei correndo até ele.

Alex estava praticamente grudado na parede, o peito subindo e descendo em um choro descomunal. Me agachei e peguei suas mãos geladas nas minhas, mas Alex parecia me olhar sem me ver.

Pedi tantas vezes que ele tentasse contar meus dedos - a instrução que parecia mais fácil pela internet - que em algum momento eu mesmo decidi contá-los para ele. Não sei quanto tempo demorou para que ele parecesse prestar atenção, os olhos refletindo tanto pânico e tanta dor que senti meu coração encolher no peito, até que ele repetisse o que eu dizia.

Ele repetiu um por um, e a respiração pareceu se acalmar aos poucos quando ele se forçou a focar em mim, mas eu ainda o sentia longe dali. A cabeça parecia estar à mil, não parecia me ouvir direito, e os olhos marejados desviavam de um lado ao outro sem fixarem-se em nada. Eu me peguei gritando para que ele desviasse a atenção dos próprios pensamentos para a minha voz. Pareceu funcionar por um instante, até que, em algum momento, ele acabou fixando os olhos em algo atrás de mim.

Os olhos escuros arregalaram outra vez, a respiração pareceu entalar na garganta, e se alguma cor estava sendo recuperada ao seu rosto, ela se esvaiu completamente outra vez.

— Alex?

Fiquei apavorado, afinal, demorei uns cinco minutos para conseguir acalmar um pouco do seu ataque para ele logo piorar em dobro em menos de cinco segundos. Como vi que os olhos dele fixos em algo, sentindo o coração retumbar no meu corpo, virei para trás com brusquidão.

Não havia nada.

Tornei a olhar para ele, me sentindo estremecer ao lembrar do que ele havia dito naquele dia, sobre ver coisas e estar enlouquecendo, e tentei controlar o tremor das minhas próprias mãos. As orbes escuras ainda estavam fixas na parede vazia, como se enxergasse algo que eu não podia ver. Eu tentei à todo custo não pensar em fantasmas, mas a quantidade de filmes de terror que assisti na vida não me ajudaram muito.

— Alex, qual é o problema? — consegui sussurrar, vendo-o quase se unir à parede para se afastar de algo invisível aos meus olhos. — O que você tá vendo?

Só que o ataque de pânico parecia piorar, em um misto de choro e desespero, ao passo que ele tentava se afastar dos seus fantasmas. Alex literalmente engatinhou para longe do que via, a respiração tão horrível que achei que estivesse morrendo, tossindo e soluçando de maneira assustadora. Não conseguindo mais testemunhar aquilo, eu o puxei para mim e o abracei, vendo-o debater-se um tanto, ainda querendo fugir do que via.

Com o intuito de ajudá-lo, tapei os seus olhos com a minha mão e o abracei forte, deixando beijinhos no seu rosto e cabelo molhados, contando um após o outro como o fazia com os dedos antes. Um, um beijo. Dois, dois beijos. Três, três beijos.

Quatro, cinco, vinte, cinquenta.

Afaguei suas costas, vendo-o acalmar-se aos poucos, e não ousei destapar seus olhos. Beijei seu rosto todo e contei os beijos e murmurei palavras acalentadoras o tempo inteiro, até que sua respiração acalmasse por completo. Nós dois ainda tremíamos, desta vez, de frio, mas eu não ousei me mover nem respirar diferente por segundo algum, com medo que voltasse a acontecer.

Eu quis desabar no choro quando vi que o pânico cessou e aquele ataque de choro engasgado que se manifestou em um volume alto reverberado de seu peito reduziu-se apenas a um choramingo silencioso.

Não sei quanto tempo ficamos ali, abraçados, antes que os demais chegassem.

Aparentemente, os que estavam lá na frente resolveram dar uma passeada enquanto nós “nos entendíamos”, já que era sexta-feira e havia fila no boteco quando os demais foram buscar bebida, logo, eles demorariam.

Todos retornaram ao mesmo tempo para continuar a festa, apenas para se deparar com nós dois acabando com ela. Tive dó do Ian, mas ele estava tão preocupado com a gente que sequer importou-se com a própria festa. Logo, nós dois fomos cercados de cuidados, carinho e apoio. Emma, em algum momento, agachou-se e abraçou nós dois, deixando beijinhos no rosto choroso do Alex, o que o fez esboçar o primeiro sorriso desde o ataque, antes de nos deixar.

Como eu não quis largar o Alex, eles trouxeram cobertas ao invés de roupas secas e nos cobriram, uns indo fazer chá e café para nos esquentar e outros ligando para a emergência para ver o que fazer a seguir. Foi determinado, logo em seguida, que eu precisava ir para a emergência, ao menos, para checar se não havia ainda água nos meus pulmões.

— Alex — chamei, baixinho, enquanto os demais se ocupavam de organizar as coisas e ver quem iria nos levar. Ele estava ainda meio deitado para se apoiar no meu ombro e resmungou um “hum”. — Você pode me fazer um favor?

Alex ajeitou-se para sentar normalmente ao meu lado, grudado em mim, e focou as orbes - vívidas novamente - nas minhas. Engoliu em seco, mas assentiu, sem saber o que seria.

— Sempre.

Senti meu coração recuperar um tanto seu tamanho normal e quis suspirar de alívio, mas apenas o contemplei.

Acredito que o fato de uma experiência de quase morte mudar bastante as coisas não é totalmente inesperado, mas me senti grato ainda assim. Mesmo que as coisas entre nós não estivessem tão bem e que haviam ainda muitas quebras entre nós, eu não podia negar saber que o Alex se importa comigo tanto quanto eu me importo com ele. Ao menos, como amigos eu tinha certeza de que sim e de que sempre havia sido assim. Então, ainda que nada estivesse consertado, eu não podia deixar de fazer o que podia por ele.

Eu sei que ele o faria por mim.

— Agora que o Korn me levar no hospital — ditei, mordendo os lábios —, você vai comigo?

Alex franziu o cenho, mas acabou assentindo, embora aparentasse confusão com o pedido. Seus olhos eram questionadores quando sustentou meu olhar, então não precisou falar nada.

Inspirei fundo, tomando coragem, e pedi: — E promete que, quando estiver lá, você vai pedir ajuda para você?

A compreensão chegou aos seus olhos quase que imediatamente e ele os fechou, balançando a cabeça de um lado ao outro. Manteve-os fechados, como se não quisesse olhar na minha cara, e murmurou:

— Caleb, muita gente tem ataques de pânico ao menos uma vez na vida — argumentou, baixinho, e quando abriu os olhos foi para encarar nossas roupas úmidas.

Eu já sabia que devia esperar a resistência dele quanto a isto, visto que o “eu não sou louco” daquela noite ainda estava bem vívido na minha memória quando sugeri que buscasse ajuda.

— Então essa foi a primeira? — perguntei, já sabendo a resposta. Ele suspirou. — E muitas dessas pessoas também enxergam coisas que não estão lá?

Ele ergueu os olhos para mim e eu os vi marejarem no instante seguinte, o lábio inferior tremendo. As orbes escuras pareciam implorar por clemência, como se aquele fosse o pior pedido do mundo para ele.

Eu repassei aquilo milhões de vezes na cabeça, mas nada fazia sentido.

Alex havia parado de fumar cigarro, mesmo com a maconha eventual. Ele não costumava mais beber tanto também, como no início do ano, então talvez haver misturado muito álcool e muita erva no dia de hoje não tenha dado muito certo. Mas, ainda assim, não justificava alucinações. E, pela maneira como havia falado comigo na sexta passada, dava a entender que isso aconteceu mais vezes.

Estava fora do meu alcance ajudá-lo, mas quem sabe se eu conseguisse levá-lo até alguém que tivesse em seu alcance a capacidade de ajudá-lo, isso pudesse contar por algo.

— Eu quero tanto que você fique bem — admiti, em um sussurro, renunciando meu orgulho por completo.

Os olhos brilharam, as lágrimas parecendo tornarem-se pesadas demais para o espaço que ocupavam, ao passo que seu lábio inferior tremia. Me sentindo impotente e culpado por isso, fechei os olhos e deixei minha testa apoiar-se na dele.

— Caleb — murmurou, enfim, soando desolado —, eu não posso procurar ajuda.

Abri os olhos outra vez e pisquei, analisando-o de perto, mas seus olhos estavam fechados. Franzi o cenho, fazendo carinho em seus cabelos, e querendo encontrar alguma lógica naquilo.

— Por quê? — insisti, limpando as lágrimas que caíam do rosto dele, como um instinto.

Sua respiração ficou falha enquanto ele tentava segurar o choro.

— Porque vai doer pra caralho — sussurrou, e eu limpei seu rosto outra vez. Ele descolou a testa da minha e abriu os olhos, apontando-os para mim. Meus movimentos pararam ao passo que me sentia paralisar com a dor que eu via ali. — E eu não sei se aguento mais dor.

— Alex... — sussurrei também, sem saber o porquê, sentindo meus olhos embaçarem.

Desta vez, ele próprio limpou o rosto, desviando o olhar para longe, tão fixos em algo específico que me senti segui-los até encontrar a fonte da sua atenção. Emma estava sentada no tapete da sala, jogando alguma coisa no celular, parecendo pequena no casaco de adulto que boiava no seu corpo porque havia esfriado.

Ele ainda tinha os olhos presos na garotinha quando pronunciou-se outra vez: — Terapia vai me fazer cavar coisa que eu não quero e nem vai ajudar — constatou, ainda em um murmúrio, antes de voltar os olhos para mim. — E vai doer pra nada.

Balancei a cabeça.

— Você não sabe disto — insisti, baixinho. — E se ajudar? — perguntei, mas vi o ceticismo no olhar. — E se doer agora pra nunca mais doer tanto outra vez? — Fiz carinho no seu rosto inchado. — Você não vai saber se não tentar. Por favor — pedi —, não desiste do que pode te fazer bem.

Alex sustentou meu olhar, parecendo querer ler minhas intenções ou meus motivos, como se não fosse óbvio que eu ficava feliz quando o via feliz. Hesitou, levando uma mão para o meu rosto também, pegando-me desprevenido ao acariciar-me também.

— Caleb... — murmurou, mas pareceu incapaz de dizer mais.

Os olhos pareciam tão límpidos quanto haviam estado durante as duas semanas inteiras que estávamos juntos, e o meu nome saiu dos seus lábios de maneira tão parecida com a qual o seu nome havia saído dos meus naquele primeiro dia, que eu fiquei sem reação. Engoli em seco, sentindo meus próprios olhos voltarem a embaçar.

Desviei o olhar, quebrando a conexão que parecia me quebrar e juntar os pedaços ao mesmo tempo. Aquele não era o momento para que eu sentisse o que sinto pelo Alex, era o momento de convencê-lo a sentir algo por si próprio também, mesmo que apenas um pedacinho do que eu sentia por ele.

— Eu prometo que não vou sair do seu lado — prometi, segurando sua sua mão na minha, e ele sustentou as orbes escuras nas minhas. Quando percebi que parecia ceder minimamente, apertei sua mão. — Se você odiar as sessões, você vem até mim e me faz ouvir tudo o que aconteceu, e eu vou estar ali, esperando por você. Mas me promete que vai buscar ajuda?

Alex suspirou, encarando nossas mãos enlaçadas, e deixou um meio sorriso escapar, embora não tenha chegado aos seus olhos.

— Pensei que não acreditasse mais nas minhas promessas — murmurou, e eu sorri dolorosamente também.

— Nessa, eu vou — sussurrei, tentando não implorar, mas imagino que minha expressão tenha feito isso por mim. — Promete?

Ergui o dedo mindinho, mas não esperei muito antes que ele o enlaçasse com o seu. — Prometo.

— Eu prometo também.

E foi ali, diante do caos que nossos amigos fizeram para acalmar o nosso caos, que uma espécie de trégua se fez outra vez. Ali, debaixo da coberta que deixava apenas nossos rostos de fora - como se estivéssemos em nosso próprio mundinho de novo, mesmo que cercado de gente, que nos prometemos coisas que não tínhamos certeza se iríamos cumprir.

Porém, depois que nos deslocamos para o hospital, cercados de amigos que nos amavam, Alex se arrastou até o balcão e pediu por informações que dissesse respeito a ele.

Eu não precisei ouvir a conversa, eu soube que era isto que ele fazia.

Ele me olhou por cima do ombro, e havia uma espécie de cumplicidade ali que deixava meu coração quentinho de alguma forma, e ele me sorriu. Eu devolvi o sorriso, sentindo-me aquecido totalmente desde a queda, e então eu soube que, como ele, eu também cumpriria a minha promessa.