Made of Stone

XL. O anjo que me visita à noite - Parte I


Apesar dos pesares, viver era tão bom.

Pular na cama era apenas consequência disto.

Na época, eu não tinha nenhum pensamento filosófico sobre o que estava ocorrendo. Eu não pensava “como é bom viver” ou “isso é a personificação da felicidade”, eu estava envolvido demais no momento para que qualquer análise dele se fizesse presente. E eu era novo demais para analisar coisa que fosse.

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Quem sabe seja por isso que muitas pessoas, quando pensam em momentos felizes, lembram da infância. Quem sabe fosse ser novo e ingênuo, incapaz de interromper o momento para analisá-lo ou publicar uma foto conceitual com uma frase bonita na internet, o motivo da felicidade transbordante. E era transbordante - como se escorresse por nossos poros, como se não coubesse em um pequeno corpo humano.

Quiçá fosse esta a chave da felicidade - ser incapaz de entender o quanto você está feliz porque a felicidade simplesmente não se faz entender, se faz sentir.

O rangido da cama era quase padronizado, quando nossos pés colidiam com o colchão em sintonia, uma vez e outra e outra. Eu segurava a mãozinha suada dela na minha, não só para que não caísse, mas para que sempre estivéssemos juntos quando lá em cima e quando lá embaixo.

Havíamos nos esgueirado até o quarto dos nossos pais, eu pedira silêncio com o dedo indicador na frente dos lábios em um silencioso “shh” e ela levou a mãozinha a boca para abafar o risinho alegre. Fechamos a porta com um clique baixo e escalamos a cama, alta demais para que ela subisse sozinha, e começamos a pular.

A lógica infantil me foge à memória, porque hoje sei que de nada adiantava o silêncio inicial, já que a cama se fazia ouvir do andar de baixo, e as gargalhadas, quem sabe, do outro bloco da rua. Essas começaram com ela, o risinho descontrolado na primeira vez que o corpo foi impulsionado para cima, e que logo se abriu para tornar uma gargalhada gostosa.

Ela ainda tapava a boca com a mão livre, como se isso ajudasse a abafar o barulho que fazíamos. E eu, é claro, gargalhava com ela, ciente de que isso a faria rir ainda mais.

Viver era tão bom.

Eu sinto falta.

*

— Como está se sentindo hoje?

Durante a minha vida inteira, desde que me conheço por gente, evitei este momento.

Eu fugi, como o diabo foge da cruz, de sessões de terapia desde que era criança - quando fui obrigado a passar por isto durante o pior e mais dolorido episódio da minha vida.

A morte de um ente querido, durante a infância, é potencialmente um evento traumático, ainda mais nas circunstâncias em que ocorre. Foi com isso em mente que meus pais me levaram a um psicólogo assim que me recuperei da pneumonia, e os pesadelos, a insônia e o terror noturno começaram.

O homem que fez as sessões comigo fez perguntas básicas, como o “como está se sentindo hoje?” que a Morgan acabava de me perguntar neste momento. Ele tirou pouca coisa de mim, porque eu ficava a maior parte da sessão calado, encarando a janela e abraçando os joelhos contra o peito. Assim que comecei a ter uma melhora significativa das parassonias, ele confirmou que havia visto evoluções em mim, e isto foi o suficiente para que eu fosse liberado.

Acho que hoje eu posso dizer, com toda a certeza, que ele não era um profissional muito bom. No entanto, posso afirmar mais ainda que meus pais também não foram muito bons pais. Quando ele me liberou, disse que o pior havia passado, mas me recordo com bastante nitidez que ele também havia aconselhado que as sessões continuassem, ao menos, todo mês. E que, obviamente, deveríamos recomeçar caso meus sintomas retornassem. Isso não foi cumprido.

Acho que meus pais relaxaram comigo, já que tinham tanto com o que lidar, que quando um peso foi retirado das suas vidas, eles não ligaram de que podia pesar de novo. Até porque, se eu não abrisse a boca - e eu precisaria, já que eles deixaram de prestar atenção em mim -, eles nunca saberiam que este peso existe e o peso jamais seria deles. Seria todo meu, sempre meu.

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Foi assim que passei a carregar por aí uma bagagem emocional que não parava de crescer nas costas. E, como um tumor que começa a crescer no corpo, no fim das contas, ele começa a afetar todas as áreas onde encosta. Suponho que seja por isto que venho evitando a terapia desde que me conheço por gente. Existe um medo de que, quando você faça os exames de sangue, as tomografias, o raio-x, o que encontrar nos resultados vai ser um tipo avançado de câncer e nem a retirada do tumor originário de tudo pode te salvar, porque as células cancerígenas já estão por toda a parte.

Então, para ser sincero, eu não tinha certeza do porquê estava ali - podia jurar que nem mesmo os olhos verdes seriam capazes de me convencer a me colocar nesta situação de novo.

Mas eu estava errado.

E acho que já está na hora de eu admitir que, às vezes, eu posso estar completamente errado.

— Muito intrigado — respondi, com uma careta pensativa. — Peguei ônibus hoje, sabe, pra chegar aqui — contei, esparramando-me um pouco mais na poltrona quadrada, os braços cruzados. — Na minha frente, tinha dois caras sentados, discutindo política e falando besteira ao mesmo tempo, sabe, daquele jeito que os caras de meia idade fazem. Em um minuto falavam de algo sério, no outro riam até tossir feito cachorro. E a quantidade de vezes que eles fizeram piadinhas sobre viados é incrível, e os contextos mais incríveis ainda — comentei, vendo que ela também parecia intrigada sobre onde eu queria chegar com aquilo. — Nem mesmo eu e meus amigos LGBTQIA+ falamos tanto sobre dar a bunda, chupar rola, e as outras coisas ridículas que saíram das bocas daqueles dois. É engraçado, porque são estes mesmos tipos que matam os próprios filhos quando eles saem do armário.

No entanto, nem eu nem ela rimos disto, a vibe do consultório se tornando especialmente pesada. Ou talvez fosse impressão minha, mas algo me dizia que eu fui o causador.

Ops.

— Eu também fiquei pensando que — continuei, depois de sorrir para a maneira como ela me analisava como se sua vida dependesse disso —, são estes tipos de homens que também gostam de se vestir de mulher em reuniões bêbadas com amigos para tirar sarro, subir um no colo do outro pra fazer graça em frente das esposas, mas depois também se perguntam onde erraram quando o filho diz que é gay. Quando na verdade, eles deviam saber exatamente onde erraram pra que o filho demorasse tanto pra dividir isso com eles. E a resposta é sempre bem óbvia.

Ela assentiu, anotando algo rápido, e me encarou.

Arqueei as sobrancelhas, esperando pelo comentário. Ela sempre tinha um comentário.

— É algo bem constante no meu trabalho, na verdade — comentou, olhando-me nos olhos. Ah, ali estava. — A perpetuação da heteronormatividade tem base nesta ideia de que homens tem um papel específico na sociedade, além de que...

Ela ainda estendeu o comentário, mas eu não consegui prestar atenção, minha cabeça ainda estava cheia, apesar de decidir arrastar meu corpo mais uma vez até o consultório.

Hoje foi um dia particularmente difícil para que eu chegasse até aqui - levei uma semana inteira pensando em desistir da terapia.

Esta era a minha quarta sessão de terapia, elas aconteciam de dez em dez dias. O nome da minha terapeuta era Morgan Sahores, ela tinha uma pilha de diplomas e cursos intensivos que, sinceramente, entrou por um ouvido e saiu pelo outro - o único que peguei foi que ela é formada em psicologia. Ela foi simpática, fez perguntas básicas como o óbvio “o que o trouxe aqui?” e “o que espera das nossas sessões?” antes de passar para o também óbvio “me fale mais sobre você”. O que eu não esperava - quem sabe eu apenas não me lembre ou realmente não tenha vivenciado isto com meu terapeuta na infância - é que ela não ficaria apenas calada me escutando. Ela conversava comigo, e eu admitia que isto tornava muito tentadora a ideia de abrir minha boca e vomitar palavras.

Confesso que isso também deveria ser óbvio, mas por algum motivo eu esperava diferente. O consultório também era bem mais arejado e vivaz do que eu me lembrava - mas talvez meu medo de infância de falar sobre minhas dores tenha influenciado na maneira como eu enxergava tudo monocromático nas memórias. Ou quem sabe as coisas na área da psicologia fossem diferentes dez anos atrás. E havia outra coisa que eu estranhei depois que ela conversou um pouco comigo e que foi uma das primeiras coisas que comentei: “cadê o ‘como você está se sentindo hoje’ que vejo nos filmes?”. E a resposta também é óbvia, porque devia ser de senso comum que filmes padronizados não refletem a realidade.

Morgan, no entanto, tem um bom senso de humor, porque desde então ela começa as sessões com a maldita pergunta e me arranca um sorriso toda semana. Meio que se tornou nossa piadinha interna.

Eu já tinha essa pré-concepção de que psicólogos não falam nada sobre si próprios, e se eu for parar para analisar, diria que realmente sei muito pouco ou quase nada sobre a mulher. Mas ela podia e falaria sobre o trabalho dela, sobre como podíamos fazer as coisas, como podíamos trabalhar juntos para que eu me sentisse mais à vontade. Eu quis dizer que só o fato dela falar tanto quanto eu já ajudava muito, mas sugeri que a poltrona onde eu sentava fosse mais grudada na janela e ela apenas apontou para ela, como quem diz: “fica à vontade para colocá-la onde quiser”. E eu fiz.

Quero dizer, a mulher faz um bom trabalho, não?

Lá estava eu, no final dos nossos primeiros sessenta minutos, sentindo-me confortável dentro da sala que representava o acesso aos meus piores pesadelos - literalmente -, sem haver externado quase nada, e saindo de lá bastante confuso. E como o bom menino sequelado que eu sou, na segunda sessão, quando cheguei e arrumei a poltrona onde me sentia à vontade, chorei feito um bebê por quase todos os sessenta minutos.

E a coisa piora, porque, passadas três sessões, eu ainda não faço ideia do motivo do choro da segunda. E por mais boa psicóloga que Morgan fosse, ou que qualquer um fosse, eu julgaria que nem ela soubesse.

Quando ela terminou o comentário, ela dirigiu um olhar de quem via além da minha casca, e perguntou: — Ainda não conversou com seu pai?

Óbvio que ela associou minha observação no ônibus com a briga com o meu pai.

Quis rir e fazer piada, mas meu humor se foi e eu só suspirei.

— Não. E não quero falar sobre isto.

Depois de arquear a sobrancelha, ela optou por dizer: — Muito bem. E sobre o que quer falar?

Ela provavelmente tinha perguntas e exercícios em mente, então para me perguntar isso, ela devia achar que eu realmente tinha algo a dizer. Uma parte de mim ficou maravilhada que ela fosse tão boa nisso, e outra ficou aterrorizada.

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Olhei pela janela, sentindo-me desconfortável outra vez. Nem mesmo a poltrona no solzinho da tarde permitia que o desconforto ficasse longe durante todo o tempo.

Quando comecei isto, achei que era seria rápido e raso, foi por isso que pedi à mulher da telefonia que me indicasse terapeutas que tivessem a abordagem de terapia cognitivo-comportamental, a tal da TCC. Li na internet que era a abordagem de terapia mais rápida e direta, que é o que eu precisava, em volta de vinte sessões mais ou menos. E tinha um extra muito bom que era uma exigência minha: que, por favor, não utilizasse um divã. Eu tinha pavor da ideia de deitar naquilo desde a primeira vez que vi em filmes, mas ainda bem que era algo mais restrito, no geral, à psicanálise, da qual eu também fugi por ler que podia nem ter fim.

Eu sei que eu disse ao Caleb que buscaria ajuda, mas não especificamos de que tipo: e, para mim, o melhor seria um tipo rápido, como arrancar um band-aid.

Mas, haha, como eu sou uma anta, eu pensei que rápido e prático significava pouca profundidade. Obviamente que eu estava errado, a profundidade estava ali, ela só era mais direta e prática, mas estava ali. Aqueles silêncios desconfortáveis e extremamente longos de filmes nas psicanálises não existiam aqui, Morgan sempre os quebrava - ou eu mesmo, por desconforto. E sempre haviam mais e mais perguntas, cada vez mais pessoais, e ainda lições de casa, exercícios e técnicas de relaxamento. Era uma coisa atrás da outra, sem tempo a perder, e ela ainda me ensinava coisas da própria terapia para eu aprender. E eu que pensava que eles não revelavam seus segredos...

Sinceramente, quem iria pensar que terapia é assim?

Eu me sentia em uma aula particular - e esta recém era a quarta sessão.

Na primeira delas, Morgan perguntou o que me trouxe até ali, qual era o meu objetivo e o que eu sabia sobre a abordagem. É idiota, mas eu fiquei meio desnorteado com as perguntas diretas, e percebi que não tinha respostas muito bem formadas. Expliquei meio por cima sobre a ansiedade e os ataques de pânico, e sobre o afogamento do Caleb e falei que meu objetivo era basicamente diminuir a ansiedade e os ataques de pânico. Bem simples e direto, como ela pediu, mas a verdade é que eu não estava botando fé nessa tal de terapia rápida. Soava como aqueles produtos que se vendem para alcançar um objetivo em trinta dias, mas que na verdade você não alcança porra nenhuma e ainda perde dinheiro.

E, depois que eu a respondi foi a Morgan quem falou: ela me explicou todo o processo de terapia, no que era baseada, como a gente trabalharia juntos do início ao fim. Ela mal tinha aberto a boca e eu já estava um pouco surpreso, afinal, quem diria que terapia era um trabalho conjunto, eu achei que iria sentar lá e passivamente contar meus podres enquanto ela resolvesse tudo sozinha. Morgan também me explicou que toda ação tem uma reação, toda situação recebe uma resposta - fisiológica, emocional e/ou comportamental -, mas entre um e outro, existem pensamentos automáticos. Ela disse que geralmente o problema de vários transtornos, como a ansiedade que eu já afirmei ter, está em pensamentos e crenças disfuncionais, o que levam a reações disfuncionais para as ações.

E beleza, fez total sentido, mas o meu ceticismo não vem de pensar que não há nada disfuncional comigo. Pelo contrário: eu sou disfuncional da cabeça aos pés, então é óbvio que eu tenho pensamentos disfuncionais, o que leva às óbvias consequências disfuncionais na minha vida. Meu ceticismo é mais na parte de: “eu posso te ajudar com isto”, porque são demônios muito enraizados em mim, não tem como uma simples terapia de vinte sessões me transformar em uma pessoa funcional. Francamente!

Logo, eu pensei em passar por isso no raso, sem me aprofundar, mas Morgan não é boba. Ela sabe onde cutucar, porque ela é boa no que faz e talvez porque eu seja muito ruim no que faço: eu devo ser muito transparente.

Mais para o fim da primeira sessão, ela me fez umas perguntas rápidas sobre uso de drogas e há quanto tempo acontece, possíveis terapias anteriores e medicamentos, sobre meus sintomas de ansiedade e ataques de pânico. Na segunda sessão, na qual eu a passei inteira chorando sem motivo aparente, quem mais falou foi ela, enquanto eu chorava feito um idiota. No fim, ela me deu um encaminhamento para um psiquiatra, sob sugestão de ansiedade e depressão, e disse que, se necessário, ela me encaminharia de novo para trocar os medicamentos.

Eu tenho tomado o ansiolítico e o antidepressivo fracos que o psiquiatra me receitou, uma semana depois, mas até agora não tive resultados.

Na terceira e última sessão, a gente conversou bem mais sobre mim do que nas duas primeiras, porque eu estava me sentindo confortável para falar. Contei sobre os meus pais, sobre ter saído de casa, sobre minha música, sobre minha sexualidade, sobre minha relação com a religião da minha mãe. Falei sobre meus amigos, sobre o colégio, sobre minha antiga cidade, sobre o ano ruim que tive porque acabei repetindo. Não me aprofundei tanto em nada, e por enquanto, ela também não fez questão, parecia que realmente só queria uma visão básica e bem ampla da minha vida.

O problema foi que ela começou a entrar em questões que eu não queria responder. Eu fugi de tantas que, em algum momento, eu tive que mentir em algumas para não expôr o tanto que eu estava me recusando a colaborar. E algumas eu acabei revelando, por exemplo, as minhas parassonias não mencionadas anteriormente.

Não é nada demais, são só uns probleminhas do passado que me perseguem — revelei, com um riso nervoso, e ela arqueou uma das sobrancelhas. — Umas parassonias básicas que acontecem aqui e ali desde que eu era criança, coisa pouca.

Isto também me fez acabar revelando uma mentira também: eu realmente já havia feito terapia antes, quando criança. Acabei contando sobre a negligência dos meus pais e do terapeuta, e que as parassonias nunca haviam cessado totalmente. Elas eram esporádicas dos meus nove aos dezessete, mas ainda aconteciam, até chegar este ano infernal e elas se multiplicarem feito células cancerosas. Com o ano repetido, os pesadelos e o terror noturno eram constantes, a insônia e o medo de dormir também. Meus pais nunca perceberam, mas eu percebi quando criança, às vezes acordando no meio da noite no começo de um grito que nunca chegou aos ouvidos deles, sem lembrar do que sonhava. Às vezes, acordava em outra parte do quarto sem saber como cheguei lá, por vezes em pé, encarando a parede - na primeira vez após à finalização da terapia na infância, eu acordei na cozinha no meio da noite, e desde então passei a trancar meu quarto antes de dormir para evitar que eles soubessem, para evitar retornar ao enfrentamento dos meus medos. E os pesadelos, sempre presentes, eram cada vez piores.

Quando Morgan ficou com uma expressão complexada, eu rapidamente adicionei que eu já tinha me acostumado com isto, não era tão ruim assim, que só se tornaram incômodos de verdade neste ano, quando deixaram de ser esporádicos. Ela me olhou estranho, como quem diz: quem é que se acostuma com algo assim? No entanto, eu expliquei que neste ano eu andava muito estressado e sobrecarregado e angustiado, havia acontecido tanta coisa, boa parte delas já expostas à Morgan no mesmo dia. E que esta última briga com meus pais e a saída de casa, no dia da tempestade, foi basicamente jogar a merda no ventilador. E tudo era gatilho para os meus probleminhas de sono e de pânico. Se ela só me ajudasse a diminuí-los, já seria de grande ajuda. Ela só suspirou, anotando em seu bloquinhos, como se eu não soubesse de nada e, em seguida, se pôs a me explicar várias coisas sobre o meu próprio comportamento para que eu passasse a absorver um pouco do seu conhecimentos.

Alex, duas coisas — dissera ela, erguendo um dedo de cada vez. — Uma, esses “probleminhas” não são “coisa pouca” e se estão ocorrendo, existe uma fonte para isso. Seu estresse e ansiedade, como você diz, são mesmo um gatilho para eles, são disparadores dos sintomas, mas não a fonte deles. E duas, como você chegou aqui um pouco perdidinho sobre qual é o problema e o seu objetivo aqui é mais abstrato do que direto, a gente vai traçar um objetivo correspondente também.

O objetivo se tornou um pouco mais sólido, a gente estabeleceu, mais ou menos, “que a gente encontrasse a fonte dos meus ‘probleminhas’ para que eu possa aprender a conviver, diminuir e/ou erradicar esses sintomas, para que eu tenha menos conflitos e melhor desempenho na minha vida”. Ela também acrescentou “e melhores noites de sono”, com um sorriso, e eu não pude deixar de concordar. Com o objetivo melhor moldado, ela me receitou algumas técnicas muito chatas de relaxamento muscular e de manejo de ansiedade, e firmou que era lição de casa.

Um pouco depois, a sessão chegou ao fim e eu saí de lá aliviado.

As coisas ficaram muito reais e pessoais na semana passada, a ponto de eu me esquivar de perguntas, mentir muitas vezes e revelar uma delas, e me abrir sobre algo que eu não gostaria de falar. As parassonias estão perigosamente associadas à morte da minha irmã, o que é um tópico que eu não pensava em discutir. Mas eu fiz uma promessa, e ela vai parecer vazia se eu não levar a sério.

Então eu soube que, se eu aparecesse para a quarta sessão, eu estaria levando a sério e eu teria que começar a discutir tópicos que eu profundamente não queria. Eis o porquê de eu haver pensando em não vir hoje - ou melhor, em não vir nunca mais.

Então, não, eu não quero falar sobre o meu pai e eu também não quero falar sobre minha irmã. Mas a Morgan está certa, ela perguntou sobre o que eu queria falar porque sabia que eu cheguei hoje para falar de algo específico, mesmo que eu não queira.

— Quem sabe, eu pergunto — sugeriu ela, quando eu fiquei tempo demais calado e não dei sinais de que responderia — e você responde, se quiser. Se não quiser, eu pulo para outra pergunta. Pode ser?

Ponderei por um minuto antes de sorrir, assentindo. — Pode.

Morgan era uma mulher na casa dos trinta, talvez quarenta, tinha cabelos crespos e escuros - sempre soltos e amassados, como se ela houvesse acabado de levantar -, era gorda e de pele alva, olhos castanhos e pintinhas pela pele. Vestia-se com roupas casuais, apesar dos tons pastéis que escolhia e, a despeito de estar sempre bem polida, dos pés à cabeça, os cabelos eram sempre um caos familiar - naquele momento, uma parte dele à direita estava elevada demais, alguns fios apontando para o teto.

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Me dava uma sensação de conforto saber que uma parte dela também era humana assim.

— Você chegou aqui, todo cheio de marra — comentou ela, com um risinho de canto — e me contou sobre pesadelos, insônia, terror noturno, sonambulismo, crises de ansiedade, ataques de pânico, tudo de uma vez, como se fossem nada. Eu gostaria de aprofundar um pouco mais nos sintomas desses “probleminhas” — brincou ela, com as aspas, e eu pensei: meu deus, ela nunca vai esquecer que eu os mencionei assim. Soltei um riso. — Se quiser, a gente começa pelos ataques de pânico, já que foi isto que o trouxe aqui. Hum?

Pensei por um instante e decidi assentir, embora já começasse a repuxar o tecido da minha calça em nervosismo - o mesmo que anuviou minha mente e deixou-a em branco.

Pisquei, me inclinando um pouco para frente.

— O que você quer saber sobre isso mesmo? — perguntei, com um sorriso nervoso. Ela riu.

— Podemos começar com o que aconteceu naquela noite — sugeriu, com um tom questionador, embora cuidadoso.

Mal começamos a sessão e eu já começava a entrar em conflito. Franzi o cenho, cocei o pescoço e me remexi, preferindo estar em qualquer outro lugar no mundo. No fundo, me repreendi por haver decidido firmemente estar ali enquanto, por outro lado, eu me repreendia por querer amarelar logo na primeira pergunta.

Quando ela estava prestes a sugerir outra coisa, eu me apressei: — Você sabe o que aconteceu — retruquei, dando de ombros, com uma careta. — Meu amigo escorregou e caiu na piscina, não sabia nadar, se afogou e eu tirei ele da água.

— Sim, mas estou falando dos sintomas, Alex — apontou. — Os sintomas que vieram após você tirá-lo da piscina.

Cruzei os braços no peito, mas me forcei a não recuar.

— Não foi grande coisa — revelei, torcendo o nariz. — Eu tive um ataque de pânico. — Ela incentivou com o olhar e eu revirei os olhos antes de falar em detalhes, coisa que ela vivia dizendo que eu tinha que fazer: — Dificuldade pra respirar, zumbido no ouvido, sensação de pânico, dor no peito, tontura, corpo trêmulo. Você sabe — falei, ainda assim, vendo que ela balançou a cabeça de um lado ao outro ao anotar, como se também já soubesse que eu ia teimar. — Mas eu li em algum lugar que ataques de pânico são bem comuns. Eu me assustei e tive uma reação. Não é algo que acontece com as pessoas?

Ela assentiu, reposicionando-se na cadeira, o olhar firme em mim.

— É claro, é algo que acontece com as pessoas — concordou, dirigindo-me um olhar curioso. — Mas estou falando agora do que aconteceu com você, Alex, com a pessoa que é você. — Como eu não disse nada, ela acrescentou: — Nós temos esse costume de, sabe, minimizar o que aconteceu com a gente por ser algo “comum”, por conhecer pessoas que passaram pelo mesmo e que estão bem, mesmo quando nós não estamos bem com aquilo. O que aconteceu com você, mesmo que tenha acontecido com outras pessoas, tem grandes chances de afetá-lo de maneira diferente das demais. E não tem nada de errado com isto. Não somos todos iguais, Alex, e então eu quero saber sobre você, sobre sua experiência, sobre como você se sentiu.

Desviei o olhar e mexi com a cortina, mas acabei não respondendo.

— Eu sei o que você quer saber de verdade — decidi apontar, vendo-a arquear as sobrancelhas. — Eu não quis responder antes, mas você ainda quer saber.

— O quê? — perguntou ela, e eu dei de ombros.

— Se foi a primeira vez que eu tive um ataque de pânico ou se tenho desde a infância, como as parassonias. Mas você também já sabe que não foi a primeira, mesmo que eu não responda.

Aquilo pareceu diverti-la, mas ela tentou não demonstrar. — Sei?

— Sim — concordei, e então sorri abertamente —, confio nas tuas habilidades psicológicas ou seja lá como se chama. — Inclinei o rosto para o lado. — Aposto que sabe ler as pessoas muito bem, mas não pode colocar lá na prescrição que soube que eu sou louco porque me leu feito um livro. Não. Você tem que seguir as regrinhas, fazer as perguntas padronizadas pra chegar na mesma conclusão que já tinha chegado sem elas. É igual matemática — concluí, dando de ombros.

Morgan riu, apoiando-se na mesa para me olhar com diversão.

— Adoraria concordar com você, Alex — aponta —, mas tenho que discordar. As regras padronizadas existem justamente porque podemos pensar que estamos lendo-os feito livros, como você diz, mas no fim das contas só estamos nos deixando influenciar pela nossa própria perspectiva de vida. Nosso “manual padronizado” — diz ela, fazendo as aspas com os dedos — é o que nos ajuda a manter uma visão neutra sobre o paciente e sobre o que ele precisa. Mas eu gosto da ideia de que temos superpoderes, sim, gosto mesmo!

Ri também, mostrando a língua. — Você é tão sem graça!

— Sou nada — limitou-se a dizer, dando de ombros, com um sorriso. — Então, por favor, me dê todos os detalhes quando sentir que está pronto, porque eu infelizmente não sou uma máquina de ler mentes. Assim seria muito fácil.

Meu sorriso vacilou.

— É, seria — murmurei, mordendo o lábio inferior por tempo demais, pensativo. — Seria mesmo. — Então, ergui os olhos para ela. — Eu vou ter que ir pelo caminho difícil, não vou?

Os olhos dela brilharam com alguma coisa que não pude entender porque, afinal, eu também não sou uma máquina de ler mentes. Mas me senti melhor ao imaginar que ela também soubesse o peso que isto tinha sobre mim e que respeitava meu tempo.

— Eu tinha nove anos — murmurei, os olhos voltando para a janela. — Meu primeiro ataque de pânico.

— Você se recorda do contexto? — questionou, a expressão neutra.

Se eu me recordo do contexto...

Estalei a língua, mas quando fui despejar as palavras, minha boca sequer abriu. Eu podia haver concordado em estar aqui, começar e continuar com a terapia, mas meu corpo nem sempre estava no mesmo barco que minha mente. Por vezes, eu tinha que forçá-lo a estar.

— Eu tava no hospital — murmurei, revirando-me na cadeira outra vez, tentando ignorar o nódulo que começava a se formar na minha garganta. Pigarreei. — Foi logo que eu acordei depois de muito medicamento pra tratar uma pneumonia. Não sabia direito como cheguei lá.

Morgan assentiu, anotando algo, antes de questionar: — Assustou que estivesse em um hospital?

Senti meu corpo começar a tremer subitamente, mas engoli em seco, e respondi com mais dureza do que pretendia: — Não. Assustei que minha irmã tivesse morrido e estava a sete palmos do solo.

Percebendo o assunto delicado, Morgan tomou alguns segundos a mais para falar algo. Deixou de anotar, os olhos voltando a mim: — Isto foi informado a você quando acordou?

Assenti, o estômago já começando a embrulhar pelo simples fato de tocar no assunto.

— Sinto muito, Alex, deve ter sido muito difícil.

Foi a pior coisa que me aconteceu na vida, e esta é uma das piores memórias, um dos piores demônios.

Aquele momento, aquele quarto de hospital, aquele som insistente de maquinário, aquele cheiro agudo de antiséptico - um misto de cheiro de álcool puro de limpeza, de doença e de morte -, aquele cenário branco, aquelas expressões dos meus pais que diziam o suficiente, mas aquela voz chorosa da minha mãe ao me contar.

Fazia tempo que eu não me permitia lembrar. Quando o vislumbre de qualquer um dos detalhes daquele momento me vinha à mente, eu o chutava com toda a força para o fundo dela. Mas estava ali, como todos os demoninhos que me perseguiam, presente, gritante, ocupando todo o espaço que não os pertencia.

Meus demônios eram como um monstro no cômodo. Eu podia não olhar para ele, dar as costas; podia inclusive colocar um fone de ouvido para não ouvir os ruidos que produzia, trancar a respiração para não sentir seu cheiro podre, vestir um casaco com capuz para não senti-lo respirar no meu cangote, fechar a boca para que o gosto amargo de trauma não a atingisse. Porém, eu ainda sabia que ele estava lá. Mais do que isto, eu estava mais ciente da sua presença do que jamais estaria usando todos os meus sentidos.

Eu tinha consciência disto.

Mas sempre foi preferível saber que ele estava ali, quietinho, do que enfrentá-lo, sabendo que eu iria perder.

— Quem sabe, pulamos de assunto? — perguntou ela, gentilmente, e eu fiquei em dúvida se deveria.

— Você não vai perguntar? — questionei, alguns segundos depois, tirando os olhos da cortina e dirigindo a ela.

Morgan arqueou as sobrancelhas. — O quê?

— Sobre ela — apontei, sentindo que a voz tremeu. — Você sabe que eu omiti a existência dela, eu te disse que sou filho único. Você deve saber que ela é importante pra mim. Você não vai perguntar sobre ela?

Morgan pareceu pensar por um instante, antes de devolver: — Você quer que eu pergunte?

— Não — respondi, um tom mais baixo, mas balancei a cabeça. — Não sei. Mas eu posso falar. Talvez eu queira falar.

Engoli em seco, olhando para os carros lá embaixo antes de continuar, sem esperar que Morgan dissesse algo:

— Posso dizer que ela era minha irmã mais nova, que ela era luz, que ela era sol, que não havia uma única alma no mundo que a conhecesse e não a amasse. Posso dizer que ela não foi luz por muito tempo, porque ela só tinha seis anos quando morreu. Posso dizer que ela nasceu prematura, que ela mal deu o primeiro respiro nesse mundo antes dos pulmões falharem com ela, que passou por cirurgias antes mesmo de aprender a falar, mas que pareceu que se recuperaria sempre. Teve asma crônica pelo resto da curta vida, baixou hospital algumas vezes por infecção pulmonar, mas sempre se recuperou, até a última — minha voz falhou, e eu apertei os dentes como se isso fosse impedir que os olhos marejados deixassem as lágrimas cair. — A pneumonia foi silenciosa, sorrateira, cruel. Antes tivesse levado a mim, mas escolheu levá-la de mim.

Morgan ouviu tudo em um silêncio compreensivo, e esperou pacientemente para ver se eu não diria mais, mas eu olhei para ela.

Dei um sorriso falso, murmurando então: — Acho que era só isso que eu tinha pra dizer hoje sobre ela.

Morgan sorriu, parecendo compadecida, mas também orgulhosa por algum motivo.

— Tudo bem. Obrigada por me contar — disse ela, enfim, e eu percebi que havia mesmo contado. Um alívio estranho se apoderou do meu peito, mesmo que a dor ainda estivesse se remexendo ali.

— Obrigado por me ouvir — murmurei, baixinho, e desta vez meu sorriso foi sincero.

— Eu estou aqui pra isto — garantiu, mais uma vez, antes de sugerir: —Quem sabe, então, saiamos do tópico de ataques de pânico?

Apenas quando Morgan perguntou que eu percebi que ela não pôde saciar todas as dúvidas, porque eu comecei a falar sobre outras coisas relacionadas.

— Não precisa — optei por dizer, me ajeitando na poltrona.

— Então, ao invés disso, me fale um pouco sobre os outros ataques — apontou ela, e eu assenti. Talvez por ter percebido que não era um problema para mim, continuou: — Você me disse que não são tão comuns quanto as parassonias, que são esporádicos, e que só aumentaram de frequência durante este ano, não foi?

Assenti.

— Me conta um pouquinho sobre o contexto dos ataques — pediu. — O que você percebe que dá gatilho para eles? São situações parecidas? O que você acha que os dispara?

Pensei por um instante, o cenho franzido.

— Foram oito — apontei, e ela arqueou as sobrancelhas. — Não lembro de todos, mas eu contei. Acontece geralmente quando eu tô sozinho e quando tô com insônia, como as crises de ansiedade — revelei, relembrando. — Os primeiros eram relacionados a minha irmã, depois eram mais relacionados a mim. Tive um deles depois de acordar de um pesadelo. Minha cabeça tá sempre cheia e meus pensamentos... — Hesitei, lembrando do que ela disse sobre pensamentos disfuncionais e em como ela me instruiu a prestar atenção neles. — São pensamentos muito negativos, eu acho. Com exceção da primeira e a da última vez, eu tava sempre sozinho.

Ela assentiu, anotando algo, antes de voltar a mim:

— Que tipo de pensamento negativo?

Me remexi, desconfortável, ao torcer o nariz. — Sei lá, depende, foram diferentes cada vez, eu acho.

Morgan pareceu um pouco cética, pensou um pouco e perguntou, a seguir: — A última vez que você falou, se refere ao acidente na piscina? Aquele que o trouxe até aqui — explicou, e eu assenti. — Já que você diz que são pensamentos diferentes cada vez, será que podemos focar no ataque mais recente então? Por que não conta o que houve dessa última vez?

Minha expressão deve ter vacilado, porque ela arqueou as sobrancelhas.

— Da última vez? — falei, em um murmúrio, me lembrando do momento em que percebi que Caleb estava no fundo da piscina. — Com o Caleb? — perguntei, a voz sumindo com o nome dele. Ela assentiu. — Mas você já sabe.

Um indício de sorriso surgiu no rosto dela, como quem diz: você sabe do que eu estou falando. Mas ela disse mesmo assim: — Eu me refiro aos seus pensamentos.

Torci o nariz, e ela sorriu mais, mas quase de uma forma carinhosa.

— Alex, nós conversamos sobre isto — apontou, quando percebeu minha relutância. — Os seus pensamentos tem um papel essencial no seu comportamento, nas suas reações. Um ataque de pânico é uma reação fisiológica a uma série de pensamentos, que geram outras reações emocionais e psicológicas também. Estudarmos os seus pensamentos, eu e você, é muito importante pra que a gente consiga alcançar nosso objetivo aqui. Agora, se você quiser deixar pra outro dia, tudo bem — continuou, erguendo os dois dedos polegares como dois "ok" —, não tem problema. A gente vai seguir o seu ritmo aqui dentro, mas uma coisa eu vou reforçar, Alex: na nossa primeira sessão, eu te expliquei como as coisas funcionariam, e eu te fiz uma pergunta no final. Não foi? — Assenti, feito uma criança que leva um sermão. — Qual pergunta foi essa?

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Torci o rosto em uma careta.

— Você perguntou se, mesmo sabendo como funciona a TCC, se eu queria continuar.

— Sim — confirmou ela, com um sorriso —, e também perguntei se você estava disposto a continuar. Eu percebi que, hoje, você chegou aqui mais disposto que nos outros dias. Não sei o que mudou pra você, mas fiquei feliz por isso. E, se você continuar a se sentir mais disposto, pouco a pouco, e mais confortável aqui comigo, isso funciona. A gente demora um pouco pra se adaptar um com o outro, e tá tudo bem. Mas eu preciso reforçar isto: a base da TCC está inteira nessa fórmula de: situação, pensamento e reação — relembrou ela, do que havia me explicado com tanto detalhe e em exemplos no primeiro dia. — A gente não aprofundou muito nesta parte, estamos nos conhecendo aos poucos, mas uma hora você vai ter que compartilhar comigo sobre o que pensa, sobre o que sente, e às vezes, a gente vai ter que aprofundar nisso. Não vai ser confortável, porque se expor nunca é, mas é importante e vai ajudar. Alex, vai ajudar — reforçou ela, os olhos presos em mim. — Então, eu quero me certificar que você está à bordo comigo, mesmo — enfatizou — que, às vezes, você prefira deixar para outro dia certo assunto ou outro. Você pode fazer isso — garantiu —, esta é sua terapia, no seu tempo, desde que fale, no fim das contas.

Abri um sorriso tenso e pensei por um momento antes de admitir: — Eu quase não vim hoje por causa disso — contei, e ela arqueou as sobrancelhas. — Eu realmente disse que tava disposto e à bordo com você quando não tava de verdade. E na última sessão — acrescentei —, eu percebi que, se eu continuasse vindo, eu teria que concordar com isso de verdade. E aqui tô eu.

Morgan demorou uns instantes para entender, então abriu um sorriso bem largo.

— Fico feliz que tenha me contado — disse ela, e eu percebi que era verdade. — Então estamos de acordo. Muito bem. Sobre aqueles pensamentos... — retornou ela, elevando uma das sobrancelhas, e me observou com um sorriso para ver se eu continuava. — Hoje ou outro dia?

Sorri, pensativo, e assenti. — Hoje, hoje.

Inspirei fundo, pensando um pouco a respeito, e olhei pela janela mais uma vez. Me sentia mais confortável em desviar o olhar dela, tanto para relembrar - tirar o olhar do cômodo para outro, e tirar minha mente do agora para o que já se passou - quanto para me sentir mais seguro sobre o que falo sem a pressão de ter alguém me analisando minuciosamente.

— Aquele dia... — murmurei, pensativo. Suspirei, antes de erguer os olhos para ela. — Falar sobre o último não é melhor do que falar sobre o primeiro ataque. Foi bem ruim, acho que foi até pior do que os outros. Caleb ficou assustado comigo — murmurei, mais baixo. — Eu tive muito, muito, muito medo de não conseguir trazer ele de volta. Mesmo quando eu tirei ele da água, ele tava mole, ele tava meio azul, e não importava o quanto eu gritasse, não tinha ninguém pra ouvir e ajudar. E eu...

Me impedi de continuar, trincando a mandíbula e apertando a cortina branca com um pouco mais de força.

— O Caleb, ele... Ele sempre me lembrou da Agatha, por alguma razão. São os olhos esbugalhados, eu acho, e o fato dele se importar tanto comigo — murmurei, encarando o pedaço de tecido da cortina. — Quando minha irmã era viva, eu me sentia vivo. E desde que ela morreu, eu sinto como se eu fosse um corpo morto me movendo, tentando seguir em frente. E o Caleb, ele... — Senti meu coração quentinho só de lembrar dele. — Ele me faz sentir vivo outra vez, e isso me lembra dela. Talvez seja por isto que aquele dia... Foi tão estranho... Foi tão pior...

Suspirei, sem saber como me expressar, e então olhei para ela. Foi quase instintivo, como um pedido de ajuda, e ela atendeu.

— De que forma foi estranho? — incentivou ela, a voz tão suave e tão ausente de caos como era a minha. E até ajudou.

— Aquele ataque de pânico foi um pouco diferente, eu acho, diferente dos outros — apontei, e então decidi comentar: — O que eu pensei também foi o que eu vi, e eu vi tudo de novo. Foi quase um paralelo.

Morgan pareceu confusa com as palavras que usei, mas assim que terminei de falar, sua expressão mudou.

— Um paralelo? — perguntou, interessada.

Fiz uma careta, sustentando o olhar dela.

— Eu não sei se sei explicar.

Morgan cruzou as mãos em cima da mesa, inclinando o rosto levemente para o lado, de forma que seus cabelos se moveram um pouco.

— Não tem problema — garantiu, tranquila —, eu posso tentar entender mesmo assim. Pode usar suas palavras, mesmo que soe confuso.

Assenti, inspirando fundo, o coração se encolhendo dentro do peito ao passo que me recordava. Em um minuto eu estava brigando com o Caleb e no outro ele estava desfalecido nos meus braços, como uma história repetida. Uma história que eu conhecia.

— Foi como se... — tentei, mas não encontrei as palavras certas, então decidi relatar: — Ele não conseguia respirar — sussurrei, relembrando. — Ele tava azul. E naquele momento, eu já não... Eu travei por um momento, depois de tirá-lo da água, eu travei. É como se eu tivesse em dois lugares ao mesmo tempo, no passado e no presente — expliquei, os olhos focando em algo que não estava lá. — Eu não consegui salvá-la — sussurrei, os olhos marejando contra a minha vontade, a voz falhando —, mas eu podia tentar salvá-lo. Então eu me mexi, eu fiz o RCP e eu o trouxe de volta, mas o tempo todo eu tava agindo no automático, minha cabeça tava em dois lugares ao mesmo tempo. E eu não conseguia sair — sussurrei, a mente longe. — Eu o trouxe de volta, mas o alívio não durou. Eu me senti pesado, agoniado, desesperado. Eu não consegui sair daquele estado. Quando eu vi que ele tava bem, e ele tava respirando, e os pulmões dele tavam funcionando, eu fiquei preso só no passado. Eu não consegui sair de lá. Era quase como se eu tivesse lá de novo, e sentisse tudo de novo, e era como um pesadelo de olhos abertos. Tudo o que eu tentei esquecer a vida inteira simplesmente voltou e eu tava preso lá sem conseguir sair, e os pensamentos estavam tão altos, e a dor era tão grande, e eu...

Quando eu foquei os olhos em Morgan outra vez, eu percebi que não conseguia enxergá-la direito. Meus olhos estavam produzindo lágrimas incessantemente, mas desta vez, eu sequer as percebi. Limpei o rosto, mas era inútil, porque já estava molhado. Então o esfreguei mais algumas vezes até secar.

Morgan anotava mais uma vez, mas os olhos estavam mais em mim do que em seu caderno, e perguntou com cautela: — Então, posso dizer que você sentiu como se revivesse este momento do passado?

Reviver, pensei, soltando um som pelo nariz. Era essa a palavra que eu buscava, e ela caía feito luva para aquela sensação.

— Exatamente.

— E quais eram, mais ou menos, os pensamentos altos que você tinha?

Encostei as costas na poltrona, desistindo de limpar o rosto.

— Depois que ele voltou pra mim — expliquei, baixinho —, eu pensei que foi por um triz. Eu quase tinha perdido alguém que eu amo, assim como perdi minha irmã. Ele não podia respirar, assim como ela não pôde, mas eu o trouxe de volta, consegui fazer por ele o que não consegui fazer por ela. Ele tava ali sozinho por minha causa — acrescentei, engolindo em seco, a culpa ardendo no peito. — Eu quase causei a morte de outra pessoa que amei. E de forma parecida. Eu tirei o ar dos pulmões dele e quase que eu não consigo devolver. Foi isto o que eu pensei.

Morgan parou de anotar e ficou me encarando por um tempo com uma expressão complexada, como se tentasse desvendar algum mistério.

— Alex... — começou, ajeitando-se em sua cadeira. — Desculpa por voltar um pouco, mas eu quero ver se entendi corretamente. Quando você disse que estava revivendo um momento do passado, você se referia ao momento, no hospital, em que soube que sua irmã havia falecido?

Sustentei o olhar dela por alguns segundos antes de desviar para a janela e observar os carros lá embaixo, o movimento apressado do final da tarde. Tentei manter minha mente em branco quando respondi:

— Não quero mais falar disto.

*

Sorri quando meu celular vibrou com uma mensagem do Caleb.

Ele havia mantido a promessa de que me ouviria caso eu odiasse as sessões de terapia, e eu até contei sobre a primeira para ele, mas depois disto eu o mantive no escuro. Quero dizer, a partir da segunda sessão - com minha crise de choro -, as coisas se tornaram bem vergonhosas para estar compartilhando com ele. E, apesar disto não se repetir sempre - o choro, no caso -, as coisas se tornaram bem pessoais bem rápido. Eu é que não ia estar me expondo dessa forma, tudo tem limite, ainda mais que é o Caleb e eu gosto mais da ideia de cuidar dele do que dele cuidar de mim. Apesar de que, em um geral da nossa história, é sempre ele que cuida de mim quando pode e consegue.

Ainda assim, ele sabia dos dias que eu ia até o consultório e em todos eles me perguntava se eu queria compartilhar, no caso de eu mudar de ideia.

Caleb émuito, é tanto, é demaispara mim.

Ele não é perfeito e suponho que alguns dos padrões de comportamento que ele segue têm sido bem ruins de lidar, mas se eu pensar a fundo, eu não posso reclamar. Apesar do Caleb realmente ter esse poder incrível e horripilante de me machucar na hora que ele quiser, eu sei que eu igualmente o machuco. Quem sabe, talvez, ainda mais do que ele machuca a mim. Mas, depois do que aconteceu e das promessas que fizemos, aquela última discussão morreu. E não é como se nunca houvesse acontecido, a gente ainda está pisando em ovos um com o outro, mas é bom que eu ainda o tenha na minha vida.

A única coisa é que de volta, lá estava eu, na irônica e já conhecida friendzone.

Bati na porta quando cheguei, esperando por alguns instantes antes que ela fosse aberta. Sorri para a mulher de pouco mais de um metro e meio, bochechas rechonchudas, cabelos loiros em um coque, olhos azuis contrastando com as rugas e nariz arrebitado.

— Você chegou, meu bem — cumprimentou ela, dando espaço pra eu passar. — Como foi a terapia? — questionou, mas antes que eu respondesse, ela acrescentou, animada: — Eu fiz bolo de chocolate!

Sorri para isto.

Apesar da terapia ter sido bem mais pesada hoje do que o normal e eu pensar que esse peso me seguiria até a próxima delas, logo que saí de lá, eu me senti estranhamente leve.

— Eu soube antes de entrar pelo cheirinho bom — comentei, inspirando fundo o aroma de bolo recém saído do forno.

Ela riu, alegre, antes de se aproximar e dar uma ajeitada nos meus cabelos. Quando percebeu que eu arqueava uma sobrancelha para o ato, ela sorriu nervoso, recuando a mão.

— Força do hábito — explicou, e eu soube que ela se referia ao filho. — Ele tá quarto, viu? Daqui um pouco mais, quando o bolo esfriar, eu levo pra vocês!

Assenti e subi as escadas de dois em dois degraus antes de me deparar com a porta fechada. A placa de “ocupado” tomava conta da porta de madeira e eu não tinha certeza do porquê, visto que ele parecia sempre trancá-la de qualquer forma, então não é como se alguém fosse incomodá-lo.

Bati algumas vezes, quem sabe forte demais, antes que ele destravasse as três trancas da porta e abrisse com uma cara de bunda.

Os óculos estavam quase na ponta do nariz, os olhos iguais ao da sua mãe não estava ocupando metade do rosto como o fazia por detrás das lentes de grau. Os cabelos lambidos para o lado, da mesma forma na qual sua mãe tentou mover os meus, me fizeram perceber que uma vida inteira ao lado dela o fez desistir de usar qualquer outro penteado.

A roupa de gamer boiava no corpo magricela do Mason.

Sorri de canto, recebendo apenas uma careta mal-humorada.

— Atrapalhei seus planos de dominar o mundo?

Ele apenas me puxou para dentro e bateu a porta.

*

Para ser sincero, eu odiei esse negócio de analisar pensamentos.

Certo que eu entendi que faz parte de toda a terapia, e que é base na abordagem que escolhi, mas isso era difícil para um cacete. Em dois sentidos: um, no sentido de ser complicado, desconfortável e dolorido remexer meus próprios pensamentos perturbadores e dois, no sentido de ser trabalhoso e dar uma dor de cabeça parar para pensar o porquê de eu estar pensando algo específico. E não bastasse fazer isso nas sessões, eu ainda tinha que tentar aplicar na minha própria vida e identificar os meus tais de “pensamentos disfuncionais”, além de que Morgan ainda fazia questão de me dar isso como lições de casa para que eu me obrigasse a fazer.

Algumas coisas eu entendia logo de cara, outras eu custava a entender, e tem mais algumas nas quais até agora eu estou boiando - e essas últimas eram a maioria.

Desta vez, ela sabia que eu evitava o tópico da minha irmã, porque eu ainda não estava preparado para me aprofundar nisto, e voltou sua atenção para outro lado. Acontece que, de todos os lados para os quais Morgan volta sua atenção, não existe nenhum sem motivo aparente. Ela sempre descobre o lugar certo algo para cavar e encontrar um tesouro demoníaco.

— Alex — chamou ela, revisando algo em seu caderninho antes de voltar os olhos a mim —, já sabemos que boa parte dos seus sintomas começou aos nove anos de idade e os demais apenas depois disto. Não é? — Soou retórica, mas eu assenti mesmo assim. — E você também me disse que os sintomas pioraram neste último ano. — Concordei mais uma vez. — Por que você acha que isto aconteceu?

Pensei por um instante, lembrando do dia em que tudo pareceu ir ralo abaixo e só piorou.

— Porque eu repeti de ano? — sugeri, sem saber se ela esperava por uma resposta específica.

— Você poderia elaborar? — Pisquei, com provável cara de peixe morto. — Por que você acha que repetir de ano piorou os seus sintomas?

Suspirei, lembrando do ano que se passou e estava quase chegando ao fim, faltando apenas um mês. Se eu for parar para pensar, a questão foi mesmo haver ficado travado na minha vida escolar por mais um ano, porque as coisas já estavam bem tenebrosas desde que repeti e, pelo resto do ano, apenas se mantiveram no mesmo ritmo ruim, e por vezes, ainda piorava.

— Porque era meu último ano no colégio — falei, pensativo — e eu coloquei a meta de que, quando eu finalizasse o colégio, eu sairia de casa e não olharia pra trás. Eu esperei a vida toda por esse momento — acrescentei —, aquele ano em que eu faria dezoito e seria finalmente independente, que eu finalizaria o colégio e poderia viver da música por aí, que eu me desligaria por completo daquela casa, daquela família e de toda aquela dor. E tudo foi por água abaixo — comentei, soltando o ar pelo nariz. — Não só repeti de ano, mas repeti porque o filho da puta do meu pai interferiu por causa de uma mísera matéria só pra me ver sofrer. Francamente — cuspi, desgostoso. — Eu não sei nem como começar a te explicar o quanto isso tudo foi fodido pra mim.

Quando ela viu que eu não falaria mais, disse, em um tom gentil: — Por favor, tente.

Suspirei, baixando a cabeça, remexendo os dedos.

— Eu coloquei uma meta porque eu sempre tive que aguentar muita merda nessa vida, muita merda das pessoas, principalmente da minha família — falei, sem me importar com o palavreado. Morgan também sequer pareceu notar. — E eu aprendi muito cedo que na vida, a gente tem que aguentar merda, sim. Não são tudo flores, principalmente quando você é criança e não é capaz de decidir por si próprio. Então a meta era um limite que me dei, era uma conquista: quando eu a ultrapassasse, eu não precisaria aguentar mais, eu abandonaria tudo e eu seria livre. Eu já tava no limite — reforcei —, sufocando com tanta coisa ruim, com tanto demônio, tanto pensamento e sentimento tenebroso, com tanta coisa guardada pra mim. Eu passei cada segundo esperando por aquele momento, pra me libertar, no último fio da paciência. Eu aguentei, aguentei e aguentei. E pra quê? — joguei no ar, sem esperar uma resposta. — Pra descobrir que precisava esperar mais um ano inteiro. Era como se eu tivesse uma corda no meu pescoço que, por tantos anos, apertou e apertou e apertou. E quando era pra ela soltar, ela me enforcou de vez. — Suspirei, cansado, antes de murmurar: — Sinto que eu vivi o último ano inteiro sem ar.

Morgan ficou pensativa por um momento, embora assentisse, e anotou mais alguma coisa no caderno. Voltou os olhos para mim e ainda se demorou me encarando antes de perguntar:

— Então você diria que colocou muita expectativa em algo e se decepcionou? — questionou ela, um tanto vaga.

— É.

Morgan me encarou por um momento antes de comentar: — Mas me parece que isso é muito maior do que colocar as expectativas em algo e se decepcionar — acrescentou, um tanto pensativa. — Porque sua saúde mental esteve bem ruim durante este ano. Não foi? — Assenti, engolindo em seco. — Você disse que esteve a vida inteira esperando por aquele momento. Você pode aprofundar o motivo? Por que significava tanto para você?

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Pensei por um momento, tentando pensar em algo elaborado ou em algo que, ao menos, parecesse firme ao invés de vazio. Pensei em não repetir tudo o que havia dito há pouco, porque se ela estava insistindo em saber, eu devia ter deixado algo passar. Tentei pensar em uma explicação coerente e detalhada, mas tudo o que consegui pensar foi:

— Porque eu seria livre.

Pareceu que os olhos brilharam como se estivesse olhando para uma descoberta incrível, mas podia ser impressão minha, já que a expressão dela se manteve neutra e estável.

Morgan, enfim, perguntou: — Livre do quê?

E eu não soube responder, mesmo que houvesse aberto a boca tantas vezes, ela também se fechou nas mesmas vezes sem vocalizar nada.

— Não precisa me responder agora — apressou-se em dizer, ajeitando-se na cadeira. — Aliás, me parece que seria quase injusto você responder essa pergunta assim, sem pensar muito, já que você não parece saber o que responder. Então vamos fazer assim: pensa nisso — instruiu — e me responda na próxima sessão. Vai ficar como lição de casa. Combinado?

Assenti, pensativo.

— Quanto a se sentir sufocado com seus próprios pensamentos e sentimentos... — Apontou ela, e eu olhei para o teto. Sabia que ela iria notar justo isto. — Eu não preciso dizer muito, né? Você mesmo disse nas suas próprias palavras: guardar tanta coisa ruim no peito não faz bem. Você tem feito isto por tanto tempo. Que tal se você compartilhar um pouco deles comigo? Quem sabe, assim, você possa se sentir um pouco melhor — sugeriu ela, em um tom ameno, antes de sorrir.

Remexi na cortina novamente, enrolando um pedaço dela no meu dedo antes de soltar.

— Não sei — murmurei, indeciso. — São pessoais...

Mas, assim que falei, percebi que soou ridículo.

O que havia ali que não era pessoal?

Estalei a língua, relanceando uma muito intrigada Morgan, a comissura da boca se erguendo como se evitasse rir. Ela não riria de algo assim, então devia ser da minha expressão. Ajeitei-me na poltrona, endireitando os ombros e relaxando a provável careta feia que eu fazia.

— Ok — concordei, voltando a olhar para a janela.

Que tipo de pensamentos tenebrosos eu tenho?

Ou melhor: que tipo de pensamentos tenebrosos eu tenho que poderia e teria coragem de expor desta forma?

Ponderei por um instante, mas todos soariam pessoais e patéticos e talvez preocupantes demais. Pensei em como soariam para uma psicóloga e se ela teria que tomar medidas precavidas no caso de me considerar suicida. Eu nunca tentei me matar, quis me defender, ponderando se devia contar em antecedência para que ela não se preocupasse demais quando ouvisse o que minha cabeça me informa.

Mas, pensando bem, não era totalmente verdade.

Torci o nariz.

Ah, foda-se.

— Tem alguns pensamentos que são diários — comecei, baixinho. — Outros que só enchem minha cabeça quando tenho algum gatilho. Eu gosto de chamar eles de “demônios” — brinquei, mas o sorriso não foi completo. — Sabe aquela ilustração que tem de que você tem um anjo e um demônio, um em cada ombro, te dizendo coisas? — questionei, e olhei para ela apenas para vê-la assentir, antes que eu voltasse os olhos para a janela, sem ver nada por trás. Suspirei. — Pois é, os meus são dois demônios, um é ruim de um jeito e outro é ruim de outro. Um me diz que eu não mereço nada e outro diz pra eu ser egoísta e tomar coisas que não mereço dos outros. Não são literais, tá? — Me apressei, olhando para ela com rapidez, para garantir. — Eu não sou tão doido assim, não é como se eu enxergasse e conversasse com eles, eu só... É só uma metáfora, tá? — perguntei novamente, temeroso, e ela sorriu, assentindo.

— Eu entendo, Alex — garantiu, dando um aceno para me incentivar a continuar.

Assenti também, relaxando mais um pouco outra vez, e novamente me virei para a janela.

— Estes são diários, sabe? — Mas não olhei para ver se ela assentia. — São como vozes na minha cabeça que me interrompem em vários momentos do dia, mais altas do que o que quer que eu esteja dizendo em voz alta. São pensamentos altos — verbalizei, pensando que assim descrevia perfeitamente. — São pensamentos altos que só aumentam quando eu tô sozinho e mais ainda quando tô com insônia. Se eu tô chapado, então, é pior ainda. Acho que é por isso que eu tenho as crises de ansiedade e mesmo os ataques de pânico — ponderei, no mesmo tom. — Porque eles ficam tão altos que eu não consigo nem ouvir minha própria respiração. Minha cabeça fica uma bagunça, como se vozes se multiplicassem nos meus ouvidos, mas eu sei que no fundo sou só eu mesmo me deixando louco sozinho, sem precisar de ajuda de ninguém — ri, sem humor, puxando um pedaço da cortina. — E chega o momento em que eu surto, daí só vai de mal a pior. Ou eu começo a chorar e não consigo parar, mesmo que eu me afogue nos meus próprios soluços — numerei, falando da crise de ansiedade, antes de especificar o ataque de pânico: — ou eu não consigo respirar, como se o ar fechasse em minha garganta e um zumbido soasse nos meus ouvidos até ser mais alto que até meus pensamentos. No fim, eu sempre acho que vou infartar e cair morto.

Morgan pareceu anotar algo e eu confirmei ao checar visualmente, vendo que ela também se ajeitava na cadeira, os olhos voltando a mim.

— E você sabe me dizer, mais ou menos, o que te dizem esses pensamentos altos? Eles te dizem pra fazer coisas?

Franzi o cenho, arqueando uma das sobrancelhas.

— Tipo, “Alex, se jogue da janela?” — questionei, uma pontada de humor, mas Morgan não o compartilhou comigo, limitando-se a assentir.

Fiquei sério também, e neguei.

— Não é assim — garanti, reforçando ao negar com a cabeça. — Eles são como aquele tipo de bullies que garantem que não são tão ruins quanto o líder deles, mas são — sugeri o exemplo. — Eles não me jogam da janela ou me dizem pra jogar, eles fazem da minha vida um inferno tão grande que eu considero me jogar da janela pra acabar com o que eles dizem. Sabe?

Morgan assentiu, ainda esperando por algo, e eu me pus a responder a primeira pergunta.

— É um monte de coisa — contei, sem saber identificar tudo. — No pior dos casos, o que minha cabeça gosta de me informar de novo e de novo é que eu tô sozinho e que tô perdido e que nada faz sentido. E que nada mais tem importância. Minha cabeça diz que eu fiquei tempo demais confortável, tentando viver a minha vida miserável, que eu esqueci de lembrar que nada disto importa. Esses pensamentos altos fazem o papel de me lembrar disso. Então eu penso que eu não devia estar vivo — acrescentei, sentindo minha voz falhar —, que eu não devia estar aproveitando minha vida e que, se eu estou em um momento ruim, é porque eu fiz por merecer. Esses pensamentos altos, no fim das contas, eles só gritam verdades. Sabem que eu apodreço tudo o que eu toco, que estar sozinho é só a maneira natural das coisas acontecerem, e que se meus pais não me amam, a culpa é minha — acrescentei, firme. — Sabem que eu só tô vivo ainda por ser egoísta, porque eu quero coisas que eu não mereço ter. Sabem que eu devia acabar logo com tudo, que eu não devia estar aqui nem por mais um segundo, que sabe-se lá que desgraça já acontece só pelo simples fato de eu existir. Eu penso que, cada segundo a mais que eu vivo, mais as chances de eu causar estragos por onde vou, por onde toco. E então eu me pergunto se vale a pena insistir e quantas pessoas eu vou desgraçar no caminho. Mas eu sempre escolho a opção egoísta, mesmo que as coisas acabem como no dia da piscina.

Engoli em seco, soltando um som pelo nariz em seguida ao perceber que, para quem não queria desabafar, bastante podridão do meu peito esguinchou para fora em forma de palavras. Voltei a olhar para ela.

— São basicamente esses os pensamentos altos que eu tenho — murmurei, dando de ombros, embora secretamente eu estivesse morto de vergonha pelas merdas que me passam pela cabeça e minha audácia de verbalizá-las ainda. Cara de pau, Alex. — Acho que dá pra me dar um laudo de louco já, não?

Morgan balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Desde a faculdade, eu odeio o termo “louco” e suas derivadas — comentou, estalando a língua. — Você não é louco, Alex, você é humano. E digo mais — acrescentou —, você não é o primeiro a me relatar estes mesmos sintomas e estes mesmos pensamentos altos e certamente não vai ser o último. São mais comuns do que as pessoas imaginam e não existe nada de “loucura” neles.

Por um lado, eu não estava surpreso, mas por outro, aquilo me tirou do eixo por um instante. É óbvio que eu já tinha ouvido falar sobre coisas semelhantes, inclusive, já havia visto diversos memes falando sobre isto com bom humor: as vozes na cabeça, a ansiedade, a depressão, e afiliadas. Eu sabia que não estava sozinho, apesar de nunca ter tido a certeza se realmente tenho a ansiedade que todos falam ou mesmo a depressão - até Morgan sugerir e o psiquiatra confirmar -, mas ouvir aquilo de um profissional, ainda mais dirigindo-se diretamente a mim, foi diferente.

Eu fiquei um pouco cético, porque apesar de saber que muitas pessoas tem as famosas “vozes na cabeça”, eu nunca pensei que elas poderiam dizer coisas parecidas com as minhas.

— Os mesmos pensamentos? Assim, sem tirar nem pôr? — questionei, tão intrigado que me inclinei levemente para frente.

Ela assentiu. — Exatamente os mesmos.

Exatamente os mesmos, eu pensei, me sentindo estranho. Assenti como resposta, desnorteado, e baixei os olhos para as minhas mãos, que se retorciam por algum motivo.

— Você não está sozinho — decidiu acrescentar ela, em um tom gentil, assim que meu silêncio perdurou —, e agora eu estou aqui com você. E nós dois, juntos, vamos aprender a colocar em ordem todos esses sentimentos, todos esses pensamentos, e aprender a responder a eles de maneira saudável e funcional. Eu estou aqui — reforçou, firme, ao passo que meus olhos começavam a produzir lágrima em uma velocidade impressionante — e eu vou te ajudar, Alex.

Minha respiração falhou e tremulou, e eu levei uma mão à boca, um movimento instintivo de cobrir os meus lábios trêmulos, e elas também não estavam firmes. Tentei acalmar o coração, mas o choro já havia iniciado, e os soluços logo o seguiram.

Eu não soube dizer o que aconteceu ali, mas acho que eu podia chamar de alívio. Talvez uma pontada de esperança e a sensação de pertencimento, de que eu realmente não estava sozinho.

Ainda, também, a sensação de acolhimento e de amparo, que eram tão esquisitas para mim. Não era apenas alguém que se importava comigo e queria me ajudar, afagando minhas costas, era alguém que sabia apontar exatamente o que eu tinha e como resolvê-lo. Eu não fui até ali com este tipo de expectativa, eu já não esperava nada de ninguém, então me pegou de surpresa.

Eu não consegui parar de chorar, então Morgan me entregou os lenços que tinha em sua mesa com uma mão e usou a outra mão para estendê-la para mim. Demorei a entender o que ela queria, mas me senti grato quando entendi, levando minha mão à dela. Ela a apertou em apoio e não a soltou até que meu choro houvesse cessado.

Pode soar estranho, mas aconteceu outra coisa comigo naquele momento: de alguma forma, de algum lugar, me veio o vislumbre da sensação de estar livre.

*

Aconteceu de forma repentina, brusca e cruel, como todas as tragédias.

Em um momento, estávamos alcançando o teto e, em outro, ela já não tinha mais forças para impulsionar. A garganta começou a fazer um som forte, que ia aumentando de volume ao passo que ela meio tossia meio inspirava com força, o rostinho avermelhando com facilidade pelo esforço. Parei de pular e dei a volta na cama, fazendo ela sentar ao passo que eu gritava por ajuda, esfregando o peito dela na inútil tentativa de acariciar os pulmões para que funcionassem direito, pedindo que ela tivesse "calma" como se ela tivesse a opção de escolher ficar.

— O que houve?! — minha mãe perguntou, quase rompendo com a porta do quarto ao abri-la, os olhos azuis arregalados.

Essa era a reação dela quando qualquer coisa acontecia e apenas mais tarde eu entendi que ela sempre esperava o pior devido à condição da filha. Ela mal vislumbrou a Agatha antes de sair correndo e voltar com uma bombinha em mãos.

— Aqui. Tá tudo bem, shh, vai passar. Você vai ficar bem, shh, vai passar, meu amor. Tá tudo bem, princesa, vai passar. Respira fundo.

Agatha já havia resvalado para o tapete no chão, minha mãe havia sentado junto dela, com a filha entre as pernas e as costinhas dela em seu peito. Minha mãe esfregava o peito dela de forma parecida com a que eu fiz, o queixo jazia na cabecinha loura, enquanto murmurava palavras de conforto. Desta vez, a bombinha já havia feito seu trabalho e jazia em sua mãozinha rechonchuda, após ela conseguir puxar o ar normalmente. Os olhos haviam avermelhado pela dificuldade em respirar, mas não era um choro de verdade, porque Agatha estava calma, como sempre, feito um anjo com a asinha machucada na espera de que melhorasse logo para voltar a voar.

E as orbes azuis alargadas não haviam desviado, por um minuto sequer, de mim.

— Abe? — minha mãe chamou, recém percebendo que eu estava estático em um canto do quarto. Eu não havia parado de colocar distância entre mim e a situação assustadora até sentir a parede nas minhas costas. Observei tudo de longe, sentindo o peito apertar como se o coração se debatesse em agonia. A expressão da minha mãe relaxou e ela me olhou quase com dó. — Abe, amor, tá tudo bem. Ela já tá melhor. Vem aqui, checa por conta própria. Tá tudo bem, foi só uma crise de asma.

Eu pisquei, enxergando com maior nitidez quando as lágrimas caíram, e balancei a cabeça de um lado ao outro, receoso de me aproximar outra vez. A parte lógica da minha cabeça dizia que eu havia causado aquilo por tê-la colocado naquela situação, pulando na cama, já que sabia que nossos pais brigavam e agora a briga parecia ter um motivo. A parte mais ilógica também pensava que eu havia causado aquilo com a minha energia ruim, como se houvesse infectado ela com uma maldição.

— A gente tava pulando na cama, mãe... — murmurei, a voz chorosa, e esfreguei o nariz, tornando a focar nos olhos grandes da Agatha.

— Pula, pula, pula — acrescentou Agatha, o fôlego quase totalmente recuperado, e esticou a mão para a cama, querendo voltar para lá.

— Eu sei, meu bem, mas tem que cuidar — explicou ela, em um tom gentil, ao acariciar os fios louros. — Sua irmã não pode fazer tanto esforço. Podem pular, mas fiquem com a bombinha dela por perto, e não fechem a porta. E não pulem tanto, façam pausas. Se você ver que ela tá cansadinha, não força mais, ela cansa mais rápido do que você, Abe. Nós já conversamos sobre isso — apontou ela, com um tom triste. — Mas não fica com medo, ela tá bem. Foi só uma crise, tá bom?

Eu não saberia dizer se ainda não havia presenciado uma crise de asma dela ou se eu apenas fiquei mais afetado nesta - o suficiente para me lembrar - por me sentir culpado. Mas aquilo ficou tatuado na minha memória, uma de muitas memórias ruins da minha lamentável infância.

Não me lembro de quem de nós teve a ideia de pular na cama primeiro ou de como tudo começou, nem sequer de quantas vezes pulávamos na cama por semana. Não lembro da primeira e nem da última vez, tampouco, mas isto não importa. O frio na barriga, as roupas flutuando, os cabelos armando, os risinhos inocentes e as gargalhadas gostosas que pareciam ter gosto de infância, elas vibravam no tempo. Eu ainda consigo ouvi-las, as duas crianças, como se eu fosse apenas um observador, como se eu não fosse uma delas.

Quiçá, eu já não seja mesmo.

Uma imagem poeticamente maravilhosa manchada por uma memória ruim. Foi o que me restringiu de querer voltar lá para cima, para o colchão de molas diferenciado dos nossos pais, e o que me fez alcançar o teto com certa cautela nas próximas vezes, sempre preocupado. Não alcançávamos o teto de verdade, mas nas minhas memórias chegávamos quase lá e era ali que morava a diversão: na noção tão pequena e ingênua e criativa de espaço e possibilidades, porque sim, toda vez que pulávamos alcançávamos o teto.

Agatha engatinhou até mim, para longe da mamãe, para sussurrar no meu ouvido, bem conspiratória: — Vamo de novo? — E quando eu não respondi, ela ainda acrescentou que devíamos esperar a mãe sair e - risinhos - depois pular de novo que a mamãe jamais saberia. Seria nosso segredo, apesar da minha mãe, ao fundo, esconder o riso porque o sussurro dela anunciava ao mundo.

A situação toda era pavorosa e assustadora, a ponto de fazer a magia tremular. Mas, mas quando ela sorriu, me mostrando aquelas fileiras de mini dentinhos, eu percebi que magia vinha toda dela.

Logo, alcançávamos o teto outra vez.