Made of Stone

XXXI. De todas as tréguas do mundo - Pt. II


"Há uma trégua e todo ponto reluz

A Luz abrange os olhares imaculados

Abruma em contingentes inebria seduz

Incólume é o verbo dos apaixonados"

(Sônia M. Golçalves)

*

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Naquela tarde, eu estava em torno dos meus amigos na minha sala de estar, esperando a minha vez de jogar contra um deles nos jogos de luta que Grace tanto gosta.

Perdido em pensamentos, ouvindo-os conversar aleatoriamente, eu pensava em como a semana havia se arrastado de forma melancólica e o quanto eu ficava aliviado de me reunir com eles no fim de semana, como se zerasse a melancolia. Ao menos, naquele momento.

Se eu fosse pensar de uma maneira mais geral, o mês todo havia se arrastado melancolicamente. Minha vida estava vazia, chata, triste, boa parte do tempo. Will insistia em dizer que a adolescência é assim para todos, mas eu sabia que não era apenas isto. Era a forma como tudo havia virado de cabeça para baixo, de novo e de novo, transformando minha vida em uma bagunça confusa.

O ano todo havia sido assim.

Eu vivia sendo atingido por um acontecimento inesperado atrás do outro, me derrubando toda santa vez. Mas eu havia jurado para mim mesmo que nada mais me pegaria desprevenido, que eu estaria preparado para as coisas se complicarem de novo caso assim fosse, que eu teria um maior controle da minha vida de agora em diante.

Afinal, tudo o que aconteceu nos últimos tempos serviu de aprendizagem, não é?

É assim que se começa a crescer, amadurecer e aprender com a vida, tomando cada um dos acontecimentos que nos abalam, positiva ou negativamente, como conhecimento.

Ao menos, esta é a linda teoria.

Na prática, a história é bem diferente.

Em um minuto, eu pensava sobre o quanto as desventuras da minha vida haviam me ensinado a ter um maior controle dela, preparado para o que viesse, seja para me erguer ou me derrubar, porque nada me abalaria. No minuto seguinte, eu sentia a língua do Magic basicamente entrar no meu ouvido, pegando-me desprevenido, ao me fazer dar um pulo no sofá pelo susto.

Esta é a verdadeira aprendizagem, me corrigi, mais tarde.

Este era o universo deixando claro, de uma maneira bem debochada, que acontecimentos inesperados e indesejados estavam à espreita o tempo todo e que estar preparado para eles era uma mera ilusão. Este era o universo me dizendo que eu não havia aprendido merda nenhuma, porque eu podia até controlar a mim mesmo - ou pensar que posso me controlar -, mas não posso controlar mais nada e nem ninguém à minha volta.

Esfreguei o ouvido, com uma careta.

Em seguida, dei um tapa na bunda do Magic, mas isto apenas o animou ainda mais, balançando o rabo de um lado para o outro de maneira quase violenta, quase acertando a cara do Mason, no outro sofá. Pulou em mim quando o encarei com repreensão por tempo demasiado, e não importou-se quando gritei, desgostoso, pela sua atitude desrespeitosa.

Grunhi quando suas patas nada delicadas quase esmagaram uma parte específica entre minhas pernas e tentei empurrá-lo para o chão, sendo desobedientemente contrariado com um latido alto e animado, como se pensasse que meu tom duro fosse para instigá-lo a brincar mais.

Magic havia crescido, depois de bem alimentado, e estava pesado.

— Nem seu cachorro aguenta mais essa sua cara, Caleb! — brincou Ian, e eu lhe mostrei a língua.

Magic latiu em resposta, para a minha indignação, e os demais riram.

— Isso mesmo, bom garoto! — elogiou Grace, com um tom que se usa com criança. Magic imediatamente respondeu à sua voz ao correr em sua direção com outro latido. — Venha cá, lindão! — E, quase em cima dela, lambeu-lhe o rosto. — Ai, que beijo gostoso!

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Bufei. — Traidor!

— Ele é de todos nós, se lembra? — perguntou ela, mas só tinha olhos para ele, que balançava o rabo de um lado para o outro em resposta. — Não é, Magic? Será que devo te levar para passar um tempo lá em casa?

— Não! — recusei, pensando que minha solidão seria aumentada a nível mil sem o meu cachorro bagunceiro comigo.

— Tá muito tedioso por lá, ultimamente — continuou ela, ignorando-me, enquanto Ian soltava um risinho. — Você podia me fazer companhia, né, garoto?

— Então eu também devo levá-lo pra passar um tempo lá em casa — acrescentou Cris, levantando-se do lado do Mason para sentar ao lado de Grace e acariciar Magic também. — Tá um tédio lá também!

Magic olhou para mim por cima do ombro e eu estreitei os olhos para ele, enquanto recebia atenção das duas garotas com muita animação. Jurei haver visto deboche estampado em seus olhos amendoados antes de me ignorar novamente.

— É que a gente já não anda saindo tanto, não mais — interrompeu Dan, que jogava lado a lado com Mason, sem tirar os olhos da tela.

— Verdade, eu sinto falta — concordou Grace, assentindo. — A gente tinha que combinar mais algumas saídas bacanas, não acham?

— Pra ontem! — concordou Ian, rapidamente.

Cristina, no entanto, fez a pergunta que deixou a todos desconfortáveis, em um tom desconfiado: — Todos nós?

Pisquei, vendo que me relanceavam, o assunto morrendo logo após.

Eu sabia o que eles estavam pensando: toda a instabilidade da nossa panelinha do ensino médio e o clima estranho que havia nos dividido era culpa minha e do Alex. Desde o meu aniversário e do vácuo no qual o deixei pelas duas semanas que se seguiram até o ato de simplesmente ignorarmos um ao outro desde que o desculpei apenas como uma formalidade.

Não era mentira.

Apesar de não sermos o grupo mais unido do universo, nossa briga acabou afetando a todos. Eu não sei em que momento começou, mas nossa panelinha se dividiu em duas, ao menos quando não estávamos no colégio, todos juntos.

Mary Jane, Ian, Korn e Bex andavam mais com o Alex neste meio tempo, enquanto Mason, Ian, Cris, Grace e Dan andavam mais comigo. Ian era o coringa nesta parte, porque ele próprio pareceu dividir-se em dois para ficar perto de todos.

Mason e eu estávamos no sofá em frente para a televisão, com Ian e Dan sentados no tapete à nossa frente. Grace estava no outro sofá, em diagonal com este, com Cristina, que anteriormente estava sentada entre eu e Maze.

Dan perdeu a jogada para o Mason e logo foi a minha vez de substituí-lo, então ele ergueu o controle pelas costas para que eu pegasse. Em seguida, levantou-se e sentou ao lado de Grace. Como se não se importasse que o assunto havia morrido por minha causa, basicamente, Dan resolveu trazê-lo à tona novamente.

— Hum, Caleb? — chamou ele, parecendo um tanto receoso, assim que Mason deu partida na luta. — Vocês ainda tão brigados?

Relanceei-o rapidamente, vendo que ele tinha os olhos melados em mim, mas voltei os meus para a tela à minha frente. Suspirei, mas optei por não responder, o que acabou sendo uma resposta por si só.

— Cara, já faz uns dois meses! — argumentou Ian, em estranha concordância com Dan. — É muito tempo! Foi uns dois dias da última vez que vocês discutiram. — Três dias, corrigi mentalmente. Mas quem está contando? — Da próxima, vai ser o quê, dois anos?

Suspirei mais uma vez, começando a ser massacrado pelo personagem do Mason na telinha, o que acabou me deixando irritantemente desconfortável.

— Não estamos brigados — deixei claro, sentindo um gosto amargo na boca quando Ian implicou que haveria uma próxima vez. — Ele pediu desculpas e eu aceitei.

Pude ver pelo canto do olho quando os três do sofá contrário se entreolharam e agradeci por não poder ver suas expressões.

— Vocês mal se falam — apontou Grace, entrando no comboio contra mim. — Vocês eram tão grudados!

Engoli em seco, me remexendo no sofá, já não mais conseguindo prestar atenção no jogo e me defender, ao mesmo tempo.

— É porque as coisas não são mais as mesmas — contrapus, incômodo, louco para que o assunto morresse mais uma vez —, mas eu já disse que ele tá perdoado.

— O que ele te fez, afinal? — insistiu Mason, ao meu lado, pela milésima vez, desde que eu contei sobre os motivos da primeira discussão.

— É verdade, eu não fiquei sabendo de que se tratava nenhuma das brigas — resmungou Ian, como se fosse uma ofensa pessoal, como primo, que Alex não quisesse compartilhar algo com ele.

— Ele foi um escroto — expliquei, sutil, para cortar o assunto pela raíz.

— Como? — perguntou Cris, apoiando-se nos joelhos como se para me analisar mais de perto.

Uni as sobrancelhas em irritação. — Sendo o Alex — resmunguei, não me importando em ser vago.

— E depois nós é que somos infantis, hein, Maze? — riu-se Ian, cutucando o amigo ali de baixo.

Quis tanto dar um chute em suas costas que, casualmente, estavam ao alcance perfeito dos meus pés. Mason resmungou em concordância dele, mais uma vez, unindo-se a todos contra mim.

— Será que vocês podem largar isto de mão? — reclamei, perdendo a paciência ao mesmo tempo que perdia a partida para o Mason. — Que saco.

— Na verdade — pronunciou-se Dan, fazendo-me olhar para ele assim que larguei o controle nas mãos do Ian, sem qualquer delicadeza —, não podemos.

Pisquei, focando os olhos em seu rosto, e franzi o cenho, tentando ler ali o que ele havia querido dizer com aquilo. Grace, ao seu lado, assentiu em concordância ao movimentar a cabeça para cima e para baixo algumas vezes, de forma fofa.

— É aniversário dele nessa semana — explicou, com um sorriso amarelo.

Arqueei as sobrancelhas, sentindo os olhos desfocarem. — Nessa semana? — murmurei, perdido.

— Uhum.

Alex faz aniversário quase dois meses após o meu, então isto queria dizer que todo esse tempo nós passamos praticamente sem falar um com o outro. Todo este tempo estivemos dividindo nossa panelinha, desviando o olhar quando se encontravam, sem saber como agir quando nos esbarrávamos, sem dirigir a palavra um ao outro.

Soltei um som pelo nariz.

Não é à toa que eu tenho estado miserável.

— É na quarta-feira — especificou Ian, aos meus pés. — Mas o pessoal já tá planejando festa para o sábado, na casa dele.

Claro que sim, pensei.

— E como faz tempo que a gente não se reune, vamos ir todos juntos — acrescentou Cris, sobre o que eles provavelmente estavam conversando e planejando quando eu não estava por perto.

— Pelo que entendi, a panelinha universitária vai tá lá também — contou Mason, ao meu lado, ao bater o ombro no meu.

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— É, vai ser divertido — concordou Dan, do meu outro lado, e eu estreitei os olhos para as falas de todos.

Grace me olhou tão profundamente, ao seu lado, que entendi que aquele era o objetivo de toda essa conversa: — Mas pra isso vocês tem que fazer as pazes né?

Franzi o cenho, sentindo-me estranhamente cercado e jogado contra uma parede.

Eu bem que achei estranho que todos tivessem aparecido aqui em casa ao mesmo tempo!

— É, cara, já chega disso — concordou Dan, passando um dos braços em torno de Grace como se para representar o que dizia: — Aqui todo mundo é bom amigo, não é?

Para finalizar, Magic, que estava sentado aos pés do sofá deles, também me dirigiu um olhar julgador.

— Por que tão dizendo isto pra mim e não pra ele? — reclamei, achando tudo muito injusto.

Foi ele quem deu tanto significado para a festa de quinze só para arrancá-la da minha, foi ele quem sugeriu que eu ficasse em um bordel no meu aniversário, me cercou e me beijou, e foi ele quem ofereceu-se para que o usasse, na frente de prostitutas.

E foi o Alex quem basicamente me acusou de ser um péssimo amigo apenas para fazer isto quando, enfim, fizemos as pazes.

Grace revirou os olhos. — Você sabe o porquê.

Desviei o olhar, sabendo exatamente a que ela se referia.

— Acho que mais do que aprender a pedir desculpas — continuou, em um tom manso mas sério, e eu não pude evitar encará-la novamente —, as pessoas também tem que aprender a desculpar.

— Mas eu...

— De coração.

Se aquilo não me calasse por completo, nada o faria.

Uma pontada de culpa instalou-se em meu peito, enquanto eu relembrava de todas as vezes que Alex tentou se aproximar de mim nas primeiras semanas e que eu o recusei.

Isto me lembrou nossa primeira discussão, em que eu também me senti culpado por não havê-lo buscado durante meses para desempenhar minha amizade de forma genuína. Ainda mais sabendo que ele não estava em seu melhor estado de espírito durante aquele tempo. Ou durante este, acrescentei mentalmente, sentindo uma estranha vontade de chorar.

Como eu posso exigir que ele seja bom amigo para comigo se eu não sou bom amigo para com ele?

No fundo, eu sei que o vazio nos meus dias era devido a falta ridiculamente imensa que eu sentia dele. Durante todo o tempo em que estive ciente do que sentia, desde a primeira vez que nos beijamos, eu quis fugir do que havia acontecido, do que sentia, da verdade, mas no fim, acabei fugindo dele por completo.

Mais uma vez brigados, mais um período afastados, para eu finalmente entender que eu prefiro mil vezes ser apenas seu amigo do que não tê-lo na minha vida de forma alguma. Eu prefiro mil vezes as coisas como eram antes de tudo se complicar do que viver brigado com ele. Eu prefiro nossa amizade de sempre do que esta bagunça dolorosa de agora.

Mas o Alex não torna nada fácil tampouco.

Eu ainda me sinto humilhado pelo que o ocorreu, mas não é este o problema. Ao contrário do que eles pensam, ao montar todo esse esquema para que eu fosse ao aniversário dele e fizesse as pazes, não tê-lo perdoado por completo não é uma questão de orgulho ferido. É uma questão de autoproteção.

Estar perto do Alex já não é mais seguro para mim, em todos os sentidos, e escolher recomeçar mais uma vez minha amizade com ele não é uma escolha fácil.

Não importa o que meu coração queira, ele tende a ser burro.

*

Suspirei pesadamente.

A mandíbula trancada, os pés travados no chão, as mãos cerradas, mas os olhos presos na mansão familiar. Balancei a cabeça de um lado para o outro, estalando a língua, em completa guerra mundial interna, desaprovando minhas escolhas e as parabenizando ao mesmo tempo.

É óbvio que eu cederia.

Ele fez questão de estragar meu aniversário, eu não tenho por que ir no dele — havia dito, em resposta a Grace no fim de semana passado, feito o trouxa que eu sou.

E agora eu me encontrava em frente à sua casa.

Onde mais eu estaria?

A casa estava barulhenta, sinal de que a festa realmente já havia começado há um tempo, com relação à vozes, música e movimentações. No entanto, apenas umas cinco pessoas estavam perdidas ali na frente do pátio, a porta estava fechada e, se eu bem conhecia as festas do Alex, todos estavam no pátio traseiro da casa, em torno da área da piscina.

O carro dos pais não estava ali, o que me fazia ponderar como é que ele havia os convencido a não estar em casa e permitir a bagunça que eu podia ouvir ali de fora. Talvez ele houvesse convencido sua mãe, que parecia ser mais flexível.

Me remexi no lugar, vendo meus amigos se deslocarem para a porta, tentando ordenar meus pés estancados no chão a moverem-se para lá também, até que eles me obedecessem.

Retraído, fiquei atrás deles, quando vi Alex abrir a porta.

Ele abriu um sorriso logo ao deparar-se com o restante de sua turminha, rindo quando brincaram com ele sobre estar velho, sobre não mais precisar de identidade falsa e sobre se cuidar para não ser preso. Usava uma roupa escura, para variar, apesar da camiseta ser de uma cor azul estranhamente clara. Estava agitado, tinha os olhos já avermelhados e brilhantes, e as bochechas parcialmente coradas.

Não quero nem saber há quanto tempo ele está bebendo.

Encarei-o de longe, tomando coragem para me fazer de idiota, até que restasse apenas eu. Um por um, meus amigos foram abraçando-o e entrando na casa. Eu quis poder fazer o mesmo, entre eles, para que eu passasse desapercebido, mas eu não podia simplesmente entrar na sua festa de aniversário sem ao menos cumprimentá-lo, devido à situação atual.

— Caleb — murmurou, meio sem graça —, você veio.

Um sorriso cauteloso era visível em seu rosto, mas eu pude sentir todo o carinho acumulado em seu tom de voz, acertando-me na barriga que passou a formigar contra a minha vontade.

Para com isso, resmunguei, internamente irritado com meu corpo.

Talvez por isto minha voz tenha saído impaciente: — Me obrigaram — resmunguei, vendo que o sorriso diminuiu instantaneamente, mas continuava ali.

Subitamente, todas as palavras sumiram da minha mente. Pareceram haver sumido da sua também, devido ao silêncio - tão silencioso quanto podia diante de música eletrônica e gritaria às suas costas - que se instalou entre a gente.

Eu quis, ao menos, desviar os olhos dos seus, mas as orbes escuras eram como buracos negros que gritavam por atenção. Ainda mais quando me encaravam com tanta intensidade depois de tanto tempo evitando sequer deparar-se comigo.

Não me olha assim, quis pronunciar, mas nada saiu.

Talvez minha tentativa inútil de falar alguma coisa o tenha tirado do transe, porque soltou um som pelo nariz, piscando demasiadamente ao responder: — Me alegro que tenham te obrigado.

Então, como se ele recém lembrasse que eu estava parado no batente de sua porta, abriu-a e deu espaço para que eu passasse, evitando olhar nos meus olhos outra vez. Eu soube disto porque não evitei o mesmo, pela primeira vez em muito tempo me permitindo analisar cada minucioso detalhe de seu rosto perfeito.

Por algum comando inconsciente, minhas pernas moveram-se para que eu entrasse no local e, assim que o fiz, meus olhos foram tirados de Alex de forma súbita.

— Caleb! — exclamou uma voz conhecida, e eu tive que olhar na direção dela.

Arqueei as sobrancelhas ao deparar-me com Bruno, um segundo antes dele tombar o corpo no meu em um abraço de urso. Grunhi, quase sufocado, ao passo que ele ria no meu ouvido antes de se afastar e pegar-me pelos ombros.

— Quanto tempo! — comentou, embora a intimidade com que me abraçava fazia parecer que nos vimos ontem. — Olha só pra você, como cresceu! — disse, feito um tio distante.

Revirei os olhos, mas não pude evitar sorrir para ele, agradecendo internamente pela quebra de tensão do momento anterior. Alex também pareceu agradecido, antes de sermos puxados pelo mexicano para o restante do pessoal sem precisarmos dirigir mais nenhuma palavra um ao outro.

Outros rostos conhecidos estavam espalhados pela casa do Alex, mas não pude vislumbrar todos da antiga panelinha do ensino médio dele, talvez por estarem espalhados no meio de tanta gente ou por não haverem comparecido por completo.

Eu quase corri na direção dos meus amigos, tanto para não me sentir deslocado no meio de tanta gente quanto para escapar do clima estranho entre nós dois.

Bex me abraçou assim que me viu, afastando Korn para que eu sentasse entre os dois, e continuou com os braços em meu entorno. Já acostumado com os dois, sabia que Korn não se importava.

— Parece que a gente nem se vê ultimamente — comentou ele, do outro lado, com um sorriso de canto. — Fizeram as pazes?

Fiz uma careta, dando de ombros. — Eu vim no aniversário dele, não vim?

Bex e Korn entreolharam-se em uma comunicação silenciosa antes de Korn soltar um riso e levantar-se, como se me largasse de mão. Caminhou na direção de Mary Jane, que oferecia copos para as duas cervejas que carregava em uma das mãos pequenas, e nos deixou apenas os dois.

— Sabe — falou Bex, e eu foquei os olhos nos seus —, Alex tem sentido muito sua falta.

Senti meus olhos alargarem um tanto com o comentário e todo o sangue do meu corpo decidir dar um passeio em meu rosto. Pisquei, tentando disfarçar, e tentei afastar-me um tanto para afastar-me da conversa, mas Bex manteu as mãos firmes em meus ombros, mantendo-me bem ali.

— Fica! — Riu-se, parecendo se divertir muito com a minha reação, enquanto eu soltei um riso nervoso. — Tá fugindo de quê?

— Não tô — retruquei, rapidamente, ao remexer-me no lugar. — Por que tá me dizendo isso?

— Hum — resmungou Bex, o tom debochado, antes de continuar: — Porque ele não vai dizer — respondeu, enfim, ao dar de ombros. — Ele tá respeitando teu espaço, não quer te incomodar com mais desculpas.

Uni as sobrancelhas em incômodo, desconfiado: — Alex pediu pra que você me dissesse isso?

Bex sorriu, mexendo nos meus fios de cabelo com certa ternura.

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— Não — respondeu, o tom soando sincero. — Mas eu não sou só amigue dele, sou de você também. Quero ver vocês de bem de novo. Todos nós queremos — acrescentou, referindo-se aos outros.

Olhei na direção deles quase por instinto, encontrando pelo menos três pares de olhos em nós, que desviaram instantaneamente. No susto, todos voltaram a conversar entre si, como se nenhum estivesse prestando atenção na gente.

Revirei os olhos para o ato quase cômico, e vi quando Bex riu também.

— Caleb — chamou, tornando a seriedade amigável —, Alex gosta muito de você. Se eu tô dizendo isto é porque acho que comparecer no aniversário dele — aponta, especificadamente — pode não ser o suficiente. Entende?

Mordi os lábios, desconfortável, mas assenti em desistência.

Fiquei me questionando se Bex arrancou tais informações do Alex, se ele as compartilhou por conta própria ou se aquilo era uma mera interpretação pessoal sua. Mais ainda, se ele realmente havia contado sobre o que aconteceu ou se ele foi vago a respeito, como eu era com os demais.

No fundo, eu acho que sempre soube que é verdade.

"Alex gosta muito de você", no entanto, pareceu estranhamente específico. Sem falar que seus olhos castanhos pareciam tão analíticos quanto os de Mason e eu me senti subitamente desnudo e exposto sob eles. Era quase como se Bex soubesse do que eu sinto pelo Alex e que eu cederia no fim das contas, tanto em vir em seu aniversário quanto em escutar suas palavras para ir atrás dele e fazer as pazes de verdade.

Se eu pensasse a respeito, poderia jurar que Bex foi a única pessoa entre meus amigos que não pareceu nem um pouco surpresa em me ver ali, no aniversário dele. Bom, Bex e seu namorado.

Korn retornou para sentar ao lado de seu amor, agora mantendo-o entre nós dois, e deixou um beijo estalado em seu rosto. Sorri para isto, recém percebendo que os olhos delineados de Bex em uma chamativa cor rosa pareciam espelhados nos olhos puxados de Korn atrás dos óculos, na mesma cor, como uma maquiagem de casal.

— O que é isto? — questionou Korn, apontando para o plástico que eu segurava entre meus dedos desde que saí da minha própria casa.

Suspirei, apertando-o mais na minha mão, ao me dar por conta de que eu realmente devia buscar por ele para entregar seu presente.

*

O quarto do Alex sempre foi muito aconchegante, a única parte daquela casa toda que exalava essa sensação de conforto. Desde a decoração que era a cara estampada do Alex, os pôsteres de bandas, as aparelhagens de som e o violão - quando estava à vista na ausência do pai - e o cheiro incrustrado de Alex em cada canto do cômodo.

Busquei por ele no andar de baixo mas não o encontrei, então decidi subir para deixar seu presente em cima da cama, imaginando que os demais estivessem ali.

Não me incomodei de ligar a luz do quarto, já que a luz fraca que vinha da varanda iluminava o suficiente para que eu não tropeçasse em nada. Deixei o desenho, envolto em plástico transparente para que não sujasse ou amassasse, em cima da sua cama, no espaço vazio contrário à cabeceira.

Pensativo, dei uma olhada em volta.

Haviam outros presentes ali na cama, embrulhados ou não, enquanto outros em cima da sua mesa. Não haviam tantos, mas certamente eram mais sofisticados que um simples papel com um desenho a lápis, reforçado em grafite. Eu quis comprar um presente para ele, como o boné ou o urso acomodado ao lado do seu travesseiro, mas eu não pude pensar em nada que ele quisesse ou precisasse de mim.

O desenho, ao menos, eu sabia que ele havia pedido por diversas vezes. Alex quis que ficasse comigo, depois que o desenhei, mas eu achei que estava na hora de devolvê-lo.

Relanceei a cama, lembrando-me do que havia debaixo dela, e senti o ímpeto de espiar.

Queria ler mais alguns argumentos, queria saber o que se passava de novo em sua mente, queria entender o que estava além da minha compreensão. Mas me impedi antes mesmo que a ideia se concretizasse na minha cabeça. E, um segundo depois, ouvi passos rápidos no corredor para, em seguida, ver a porta ser escancarada com brusquidão.

Alex adentrou no quarto, acendendo a luz quase com irritação antes de caminhar diretamente em direção à mesa, em frente à porta. Remexeu em cima de suas coisas, atrás de algo, mas não encontrou nada. Em seguida, locomoveu-se para o bidê ao lado da cama, sem olhar na direção dos pés dela, onde eu estava. Abriu as três gavetas e, uma por uma, as vasculhou até encontrar um maço de cigarro.

— Já foi um inteiro? — perguntei, tendo a satisfação de vê-lo dar um pulo e soltar uma espécie de grito agudo ao virar-se na minha direção, com a mão no coração.

O rosto estava pálido e os olhos escuros, arregalados, antes que a expressão relaxasse e os olhos se fechassem em um alívio cômico. Era quase como se realmente esperasse se deparar com um fantasma ali ao invés de uma pessoa. A cor lentamente retornou ao seu rosto, ao passo que respirava com dificuldade, a mão ainda no peito e os olhos, agora abertos, em mim.

— Caleb, quer me matar do coração?! — Riu-se, um tanto nervoso, a voz soando incrédula, ao recompor-se. — O que fazia no escuro?

Assim que consegui reprimir o riso, dei de ombros, apontando para a cama na minha frente.

— Queria deixar seu presente.

Depois de tomar um respiro, ele arqueou as sobrancelhas, com um meio sorriso, como se realmente o surpreendesse que eu houvesse trazido algo comigo. Caminhou até sua cama, parecendo esquecer do que quer que havia ido fazer ali. Enxergou o plástico no meio de bagunça de imediato, pegou-o em mãos e o analisou por um instante.

Eu não soube dizer o que se passou pelo seu rosto.

— Meu desenho — murmurou, tentando sorrir mas forçando-o, antes de me relancear com rapidez. — Eu tinha deixado pra você, Caleb — constatou, em um tom baixo, perdendo totalmente o sorriso ao analisá-lo com mais atenção.

— Eu sei, mas era seu — falei, desviando o olhar, inquieto. — Você pediu tanto que eu fizesse, achei que devia ficar com ele.

Ele assentiu, deslizando um dedo pelos traços que desenhei.

— É...

— Eu o retoquei algumas vezes pra ficar mais bonito — expliquei, baixinho, antes de engolir em seco. — Desculpa por não ter comprado algo.

Alex piscou, balançando a cabeça, como se descartasse a ideia.

— Não, não tem problema — corrigiu, rapidamente, deixando o desânimo de lado e forçando uma postura empolgada, como sempre. — Obrigado, eu adorei — mentiu.

Assenti, sentindo o coração encolher um pouco no peito, o que me levou ao que eu devia estar fazendo aqui em primeiro lugar.

Com um suspiro, me locomovi de onde estava, caminhando até ele como se caminhasse para a morte. Não queria fazer isto, mas era necessário, para que deixasse mais uma discussão para trás e tudo ficasse bem.

Estendi a mão para ele, vendo-o arquear as sobrancelhas para isto.

— O quê?

— Estou propondo uma trégua — expliquei, de forma rápida, indicando minha mão ao balançá-la na sua frente com desconforto. — Aceita — ordenei, porque ele não tinha motivo para recusar.

— Uma trégua?

— Sim.

Alex piscou, perdido, antes da expressão tornar-se divertida.

— Pensei que já tivesse me desculpado — apontou, com um tom brincalhão, de quem diz que "eu sabia que não tinha me desculpado coisa alguma".

Remexi-me no lugar, a mão ainda estendida, com desconforto gritante.

— Sim, mas a trégua é pra que eu pare de fantasiar todo tipo de morte sua — resmunguei, vendo-o rir, um pouco mais relaxado. — Aceita.

Alex perdeu o riso logo após, quando percebeu minha seriedade, e pigarreou. Assentindo, sua expressão tornou-se um tanto melancólica, antes que pegasse minha mão na dele com um aceno lento.

Só que ele não a soltou, apertando-a com um pouco mais de força quando fiz menção de puxá-la de volta, e encarou-as unidas com um sorriso mínimo. Prendi a respiração, sentindo minha pele arrepiar, no ato seguinte de deslizar o polegar, de forma carinhosa, pelo meu. Em pânico, tive que puxá-la de volta a despeito de sua vontade, ao ouvi-lo suspirar.

Alex focou os olhos, pretos como carvão, em mim. Havia uma seriedade quase dolorida de ver ali, e incômoda por se tratar do Alex, além de uma desistência que eu não sabia a que se referia. Os ombros estavam caídos, os braços também, ao lado de seu corpo, e sua expressão estava estranhamente neutra.

Os olhos, no entanto, pareciam concentrar tudo o que era importante.

— Bom, então era isto — pronunciei, rapidamente, no desespero para escapar dos dois buracos negros que me olhavam. — Eu vou indo.

Girei nos calcanhares como se minha vida dependesse disto, aliviado pela quebra de intensidade dos seus olhos, e me pus a caminhar em direção à porta. Aquele abismo cheio de palavras não ditas entre nós estava começando a me assustar de verdade.

Eu já havia feito as pazes com ele, propus uma trégua bem válida, e ele aceitou. Nós apertamos as mãos, eu entreguei seu presente, e conversamos quase com naturalidade. Eu demonstrei que estava tudo bem entre nós dois e não fui estúpido como tenho sido nas últimas semanas.

Minha missão estava cumprida.

Mas a dele, não.

— Pensei que gostasse de mim.

Sua voz invadiu meus ouvidos como se os arranhasse, em um tom baixo que, se estivéssemos no corredor ao lado, um tanto mais barulhento que seu quarto, eu sequer ouviria.

Senti meu coração subir à boca no mesmo instante, ao passo que tentava processar a informação antes de reagir como se houvesse sido pessoalmente atacado por uma arma. No entanto, em alerta de perigo, meu corpo foi mais rápido que minha mente, e minha boca também.

— Eu não gosto de você — contrapus, ao me virar com rapidez, na defensiva.

Minha mente começou a trabalhar à mil, e todos os pensamentos anularam-se, porque nada fez sentido naquela bagunça barulhenta.

Alex, quase no mesmo instante em que me ouviu, soltou um riso que parecia não demonstrar achar graça de nada ao desviar o olhar para longe.

— É, eu sei.

Franzi o cenho ao piscar, confuso.

— Você acabou de...

— Eu pensei que você gostasse de mim, por causa de tudo o que aconteceu, mas então no dia que a gente conversou, você disse... — Suspirou, e eu remexi minhas mãos em nervosismo. É, eu lembro do que eu disse. — Eu fiquei... Eu senti... — Mais um suspiro. — Eu fiquei chateado porque, se você não gosta de mim, então isto significava que só tinha me usado, como uma experiência ridícula.

Alex disparava as palavras com os olhos fixos no tapete do seu quarto, abaixados como se sequer ousasse me olhar na cara.

Senti o lábio inferior tremer, a defensiva crescendo no meu peito ao mesmo passo que a culpa.

— Eu já pedi desculpas. — Sentindo-me culpado pelas palavras não gentis, acrescentei, com rapidez: — Não foi minha intenção — insisti, porque não havia sido mesmo.

Ele assentiu, repetidamente, com um sorriso forçado.

— Eu sei — murmurou, os ombros caídos. — Mas foi a minha.

Pisquei, confuso.

— O quê?

— Eu fiquei chateado com você, mas não tanto quanto me chateei comigo mesmo, por pensar que você pudesse gostar de mim. Que imbecil! — soltou, e eu engoli em seco, enquanto ele soltava um som pelo nariz.

Meu coração encolheu tanto que senti o ímpeto de pôr a mão no peito para checar se ainda estava ali, mas não o fiz, paralisado pelo choque.

Como é que ele pode sequer ficar chateado com a ideia de que eu não gosto dele, como se ninguém gostasse?

Eu posso apostar que Alex tem uma legião de pessoas apaixonadinhas por ele, dentro e fora do colégio, que dariam qualquer coisa para estar com ele pelo menos por um dia. Por que ele pensa tão pouco de si mesmo?

Eu não pude completar o pensamento, porque eu fui alvo das orbes escuras mais uma vez. Senti a nuca arrepiar, e mais uma vez naquela noite me senti exposto, como se ele pudesse ler o que se passava aqui dentro.

Bastou um passo na minha direção, os olhos nos meus, para que todos os meus pelos eriçassem.

— Mas toda vez que você me olha, parece que... — Interrompeu-se e eu senti meu coração parar de bater, tentando não demonstrar nada mas falhando miseravelmente. Alex soltou outro riso fraco, balançando a cabeça. — Não importa, porque isto não tem nada a ver com amor, não é?

Amor, diz ele.

Tem tudo a ver com amor, Alex, todo ele é destinado a você.

— Você deixou isto bem claro — especificou, o sorriso não chegando aos olhos. — Então tem a ver com algo mais, não? — Fiquei mudo. — Porque você continua me olhando assim — insiste, dando outro passo na minha direção, fazendo-me franzir o cenho para o ato, na defensiva. Assim como? — Eu pensei que, tudo bem, se você quer me usar como experiência, eu posso fazer isto por você. Se é isto o que quer de mim, eu posso oferecer isto. Se é o único que irá querer de mim na vida, ainda assim eu posso te entregar o que você quiser.

Que merda de raciocínio é este?

Fechei as mãos em punho.

Quanto mais ouço, mais fica absurda cada palavra que sai da boca do Alex, e mais eu me sinto ofendido. Não só porque ele repetia o mesmo comportamento e pensamento daquele dia que tanto me humilhou como porque parecia ainda pior agora que eu já havia proposto trégua entre nós.

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Que história é esta dele querer me oferecer experiências, de novo?

Ele tá maluco?

Alex apressou-se a corrigir quando percebeu a careta que eu devia estar portando no mesmo instante.

— M-me desculpa! — pediu, antes que eu dissesse qualquer coisa, e eu senti minha testa vincar ainda mais. — Eu não digo isto pra ofender, Caleb — insistiu, receoso de que eu ficasse com ainda mais raiva. — Foi culpa minha, foi tudo culpa minha. F-fui eu que ofereci amizade colorida desde que praticamente te conheci — vomitou as palavras e eu arregalei os olhos —, fui eu que sempre te tratei diferente dos demais, fui eu que te beijei duas vezes. Não é sua culpa que tenha me usado como experiência. Nunca foi sua culpa, Caleb, desde o início, fui eu que causei tudo isto.

Pisquei, confuso mais uma vez.

Amizade colorida?

Quanto mais eu unia suas palavras e as separava mentalmente, tentando tirar alguma explicação delas, menos elas faziam sentido. As palavras-chave foram gatilhos de raiva, mas a confusão por elas não fazerem sentido juntas foi mais forte.

O quê?

— O quê? — verbalizei, feito um idiota.

Não é possível que esse garoto pense que ele causou o que quer que eu sinta por ele, só porque ele foi um esquisito do caralho desde o início e agiu diferente comigo. Afinal, ele é um esquisito por natureza. Nada do que eu sinto pelo Alex é devido a maneira como ele tratou e tudo é devido a quem ele é.

Quanto vento tem nessa cabeça?

Não é possível que ele pense que, mesmo dentro desse personagem ridículo que eu criei de que beijei meu próprio amigo só porque ele é gay, ainda assim ele tem alguma culpa por eu tê-lo beijado.

Então quer dizer que quando me beijou e me disse para usá-lo feito um objeto, na verdade ele estava se submetendo àquilo ao pensar que era o que eu queria? E queria fazer o que era da minha vontade por se culpar de eu ter qualquer vontade relacionada a ele?

Bom, isto não torna nada melhor.

E não faz o menor sentido!

Eu já sabia que o Alex é um maluco, e um idiota, e um esquisito. Mas era novidade para mim que ele fosse tão burro.

Alex suspirou, talvez percebendo minha confusão.

— O que eu quero dizer é... — Faz uma pausa, antes de murmurar, cada palavra soando mais baixa que a anterior: — Eu sempre soube que isto tudo começou comigo, mas ainda assim eu consegui me enganar ao pensar que, mesmo sabendo do que eu causei, você pudesse gostar de mim de verdade.

Pisquei, toda a minha linha de raciocínio se quebrando no mesmo instante.

— Não gosto de você — repeti, no automático, feito um idiota.

Alex fechou os olhos por um instante, inspirando fundo como se quisesse manter a paciência.

— Sim, mas será que pode parar de repetir isto? — pede, abrindo-os novamente, sem conseguir olhar na minha cara. O tom havia sido baixo e grosso, e havia dito palavra por palavra quase com agressividade, como se aquilo o chateasse.

Parecia, de fato, chateado.

Mas por que isto o chateia?

Senti meu coração bater mais forte no peito, conforme uma ideia estúpida crescia na minha cabeça. Quero dizer, tem que ter um motivo para que ele fique chateado ao pensar que eu não gosto dele.

Senti as pernas tremerem por um instante.

— Por quê? — sussurrei.

— Porque saber disto machuca.

Por quê?, quis repetir, mas meu cérebro começou a liquefazer-se.

Alex abre os braços, parecendo irritado, e começando a agitar-se de uma maneira muito parecida com a qual se comportou na nossa primeira discussão.

Eu soube que ele vomitaria mais palavras antes que o fizesse.

— E é este o ponto, sabe? Porque você não gosta de mim, mas ainda assim, você sempre... — Bufa. — Você até me pediu desculpas, mas você continuava... Você continua — corrigiu — a me olhar desta forma e deixa as coisas tão difíceis pra mim — insiste, apontando para mim, e eu quis tirar qualquer expressão do meu rosto imediatamente para contrariar suas palavras. — E eu sei que cavei minha própria cova, que seja!, não torna nada mais fácil — resmunga, consigo mesmo, antes de voltar a falar comigo: — Caleb, naquele dia, você me olhou e por um segundo, eu quis... Eu quis tanto te beijar — declarou, simplesmente, ao coçar a nuca. — E você parecia querer também.

Eu quis tanto te beijar.

Senti meus ombros encolherem, de maneira automática, para suportar o arrepio que correu por toda a minha espinha.

— Foi só por um segundo, mas quando eu percebi, eu já tava te beijando. Eu sei que eu cruzei uma linha naquele dia, uma que a gente já tinha estabelecido, mas é porque eu pensei que eu pudesse ignorar o que sentia, que eu pudesse entregar tudo de mim só pra poder ter um pouco de você — resmungou, tão baixo que fez parecer que se envergonhava disto. Meus olhos começaram a desfocar e minha mente ficou em branco. — E eu tava errado. Da última vez, foi toda uma confusão mas você pediu desculpas, e eu meio que te coloquei na mesma situação de novo por puro egoísmo. Eu estraguei tudo de novo.

— Estragou — murmurei, sentindo meu cérebro virar gelatina.

Mas Alex me olhou com intensidade, quase como se estivesse incrédulo por encontrar uma ausência de empatia em mim. Deu um passo em frente. — Mas eu o fiz porque tava magoado, Caleb — firmou, e eu franzi o cenho. — Será que não entende?

Eu não entendo absolutamente nada, quis responder, mas nada veio.

Uma coisa era certa e eu tive certeza ali mesmo, ainda que não conseguisse raciocinar nada e pensar em nada, era uma sensação. A sensação de que eu entendi tudo errado, que havia um grande mal entendido e que eu provavelmente havia reagido errado também.

Não importava que eu não entendesse tudo o que o Alex dizia, e que provavelmente estava interpretando algumas coisas de maneira errônea, porque já estava certo que em algum momento, em algum aspecto, eu havia errado. Eu sentia que sim, junto da culpa por haver agido da forma que agi sendo que eu nem conhecia a história toda, e nesta história, podia ser que Alex não tivesse culpa de nada.

Podia ser que eu fosse o único errado aqui.

— Você me beija, me usa, me larga de mão e depois que me pede desculpas, ainda fica me olhando daquela forma? — acusa, com mágoa. Pisquei, franzindo ainda mais o cenho. — Você me beijou de volta, Caleb, nas duas vezes! Você me beijou também! — acusou, magoado, e eu senti todo o sangue do meu corpo subir para as minhas bochechas.

Pisquei, me sentindo encolher com as palavras, sentindo a vergonha queimar cada pedaço de pele do meu corpo.

Ele não precisava dizer aquilo em voz alta com todas as palavras né?

Alex percebeu minha reação e sua expressão amenizou um tanto. Em seguida, ele engoliu em seco, piscando muito, antes de baixar a voz para um tom mais ameno, como se quisesse ensinar uma criança que ela não pode enfiar o dedo na tomada.

— Você não pode me beijar de volta — instruiu, os ombros caídos, quase como uma súplica. — Não significa para você o mesmo que significa para mim. Entende?

Engoli em seco, vendo-o se aproximar, incapaz de me mover do lugar.

— E você não pode me olhar dessa forma também — pediu, novamente, os olhos tristes. — Isto me confunde, me ilude, torna muito difícil a tarefa de agir apenas como seu amigo.

Me encolhi ainda mais, se possível, quando outro arrepio subiu pelas minhas costas e atingiu a minha nuca. Meu rosto queimava tanto que eu comecei a transpirar.

Mas se ele acredita que eu não sinto nada por ele, por que acha que eu o olho dessa maneira?

— Esse negócio de amizade colorida que eu basicamente forjei desde o começo não funciona mais pra mim — repetiu, agoniado, ao balançar a cabeça de um lado para o outro. — Não funciona, Caleb. E eu sei que isto começou comigo e eu não faço ideia de como desfazer tudo, mas eu sei que eu não posso mais fazer isto. Chega — pediu, balançando a cabeça. — Eu quero ter o que a gente tinha antes, eu quero ter o meu melhor amigo de volta.

Pisquei, sentindo um nódulo formar-se na minha garganta.

Sabendo o quanto Bruno significa para ele, e o tanto de tempo que faz que a gente não tem o que tinha antes, como ele havia mencionado, aquilo atingiu forte no meu peito. Por um motivo estranho, eu quis chorar.

— Então, para o nosso bem, chega disto — murmurou, sério, antes de enfatizar, com tanta firmeza quanto eu não possuía em mim: — Nada de experiências, nada de beijos clandestinos, nada de fingir que tá tudo bem.

Deu outro passo em frente, me olhando tão fixamente que pensei que faria um buraco em mim. Percebi que era para enfatizar a importância do que diria em seguida, para que eu não desviasse a atenção:

— Nada de me olhar desta forma — pediu, enfim, balançando a cabeça negativamente. Me senti tonto, mas não desviei o olhar. — Não mais. Eu sei que é minha culpa, eu sei que não significa que goste de mim, Caleb, é só que... — Piscou, finalmente desviando os olhos pretos dos meus, ao finalizar, em um murmúrio frustrado: — Eu não pensei que eu fosse gostar mesmo de você.

A declaração, que saiu em tom baixo e frustrado, como se ele próprio não acreditasse que houvesse chegado ao ponto de ter que me contar isto, fez com que eu começasse a tremer dos pés à cabeça.

Meu sistema operacional, contrariando meu corpo que tremia feito gelatina, pareceu congelar em uma tela azul por tempo demasiado. Minhas orelhas ardiam, meu peito queimava, minhas mãos suavam, meus ouvidos imploravam para que ele repetisse as mesmas palavras mágicas para garantir que eu não estivesse ouvindo coisas.

Todas as minhas linhas de pensamento foram terminantemente invalidadas, porque se ele realmente me dizia o que eu estava pensando que ele me dizia, meu mundo virava de cabeça para baixo e nada do que valia antes continuava a valer agora.

Nada do que eu supus era verdade, e eu teria que relembrar de tudo e vivenciar tudo na minha cabeça mais uma vez para que eu pudesse ter qualquer pensamento funcional a respeito do que ele acabava de me falar.

Estaria ele mentindo?

Estaria ele usando as palavras erradas para expressar outra ideia?

Estaria ele enganado?

Uni as sobrancelhas em análise, tentando encontrar uma resposta ou qualquer pista nele, mas nada encontrei. Alex ainda tinha os olhos no chão, para longe de mim, e uma expressão um tanto encabulada tomava conta de seu rosto. Seu tom de voz havia saído do contrário, frustrado e receoso, e um tanto desesperançoso.

Para ser sincero, eu não entendi completamente tudo o que ele havia vomitado e tampouco entendia o que ele queria pedir de mim. Algo sobre não olhá-lo mais da mesma forma que o olhei desde sempre para que ele não tivesse mais tanta dificuldade em manter nossa amizade do mesmo jeito de antes?

Eu não saberia dizer de certeza, porque o eco repetitivo de suas últimas palavras ainda soava na minha cabeça, me indisponibilizando de concluir qualquer pensamento.

Eu não pensei que eu fosse gostar mesmo de você.

Eu não pensei que eu fosse gostar mesmo de você.

Eu não pensei que eu fosse gostar mesmo de você.

— Não gosto de você — repeti, débil, pela milésima vez, assim que o pane do meu sistema destravou-se segundos depois.

Pisquei, sentindo os olhos ainda alargados em choque, dando-me por conta de que minha cabeça ainda não havia voltado a funcionar normalmente. Minha boca aberta estava seca, minhas mãos retorcidas em movimentos aleatórios e meu coração retumbava com tanta gana que eu podia jurar que meu peito vibrava com toda e cada uma de suas batidas.

Alex focou os olhos, antes com tanto receio mas agora tomados de incredulidade, na minha pessoa. — Caleb! — repreendeu, o tom chateado chegando até mim.

Desculpa, pedi internamente, ao me dar conta de que eu não estava habilitado para esta conversa.

— Desculpa — verbalizei, no mesmo instante, vendo-o piscar em uma confusão magoada. Assenti mecanicamente, sentindo que estava prestes a ter um surto pessoal e interno, e comecei a dar alguns passos para trás de forma automática. — É bom... — murmurei, não fazendo muito sentido nem para mim mesmo. — É bom que a gente tenha esclarecido isto.

Meu próximo passo, que alcançaria a porta semiaberta, dando vazão para que eu desse as costas e fugisse dali, não frustraria apenas o Alex mas a mim também. Mesmo antes de tomar essa decisão por impulso eu já sentia o arrependimento bater na minha pele, e uma raiva de mim mesmo começar a ressoar junto enchendo o vazio no peito.

A verdade é que eu não poderia explicar os meus motivos para contrariar todo e qualquer desejo pessoal meu, porque eu sequer os entendia.

No fundo, o que eu queria fazer de verdade após ouvir as palavras que aqueceram meu coração de uma maneira que eu jamais pensei ser possível, não era desconhecido para mim. Eu sabia o que eu queria e talvez o que eu devesse fazer naquela situação, e também sabia que era exatamente o mesmo que a maioria das pessoas gostaria de fazer no meu lugar.

Eu também gosto mesmo de você, Alex.

Talvez este fosse um começo apropriado, dizer que eu sinto o mesmo, e talvez ainda abraçá-lo ou beijá-lo naquele momento. Talvez, ainda mais do que isto, declarar todo esse sentimento que não cabe em apenas uma frase, deixar claro tudo o que eu senti, sinto e ainda sentirei quando relacionado a ele.

Era o que eu queria fazer, ao invés de repetir que não sinto o mesmo diversas vezes, ao invés de ficar quieto e parado feito um paspalho, ao invés de dar as costas e correr para longe.

Aquilo me remoeria por dentro, me manteria acordado durante as noites e me faria andar em círculos dentro do meu próprio quarto e da minha própria mente. Eu me arrependeria das minhas escolhas, tanto quanto já me arrependia no minuto anterior a escolhê-las, e eu me odiaria, me culparia, me machucaria por isto.

Mas eu não voltaria atrás, não naquele momento, não sem uma boa dose de desespero e de agonia.

Porque apesar de remoer o que havia acontecido, manter-me acordado e torturar-me com aquilo, eu também faria o mesmo ao ponderar sobre a veracidade e a intencionalidade do que havia dito o Alex. Eu também me torturaria, desprovido de arrependimentos, ao pensar em todos os contras da situação.

Alex não quis dizer o que eu interpretei das suas palavras. E mesmo que quisesse, ele poderia estar mentindo. E mesmo que não estivesse, ele poderia estar enganado. E mesmo que não estivesse, não era possível que ele gostasse tanto de mim daquela forma. E mesmo que gostasse, também sentia o mesmo por Dean ou talvez por outros. E mesmo que não sentisse por mais ninguém, ele não saberia sentir isto por mim.

E pessoas instáveis que não sabem sentir isto acabam transformando o mesmo sentimento em algo ruim, como uma arma apontada para a pessoa, da qual ela não vai conseguir e nem querer escapar. Eu vi acontecer com os meus próprios olhos. Alex acabaria me magoando, de uma forma ou de outra, como ele tem sido consistente nisto pelos últimos anos.

Era por este motivo que, toda vez que eu me remoía com arrependimento, este logo ia embora. Então retornava, junto de todas as vezes que eu repassava suas palavras na minha cabeça, pensando que haviam sido perfeitas e que eu as havia jogado fora sem motivo algum. E então ia embora de novo, assim que um diabinho interno debochava da maneira trouxa na qual eu acreditava em palavras perfeitas e finais felizes.

Este tipo de coisa não é real, afinal, e eu precisava ser lembrado disto.

E o círculo de tortura recomeçava.

Me desculpa, quis pedir a ele, por magoá-lo outra vez.

Parece que a balança sempre pesa de um lado e jamais se equilibra de ambos, porque quando o caos não provém dele, provém de mim. E quem sabe, no fim das contas, a trégua da qual eu mais precisasse fosse de mim mesmo.