Made of Stone

XXII. De todas as inspirações do mundo


Às vezes, parece que absolutamente tudo na nossa vida está acontecendo da maneira equivocada. Como se ela houvesse virado do avesso, e tudo estivesse dando errado.

O que isso quer dizer?

Depois de muito refletir a respeito de como minha vida me trouxe até aqui, eu só consigo chegar à conclusão de que tudo, absolutamente tudo, ocorreu da maneira equivocada que tinha que ocorrer.

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Isto só podia significar que não houve equívoco algum.

Confuso?

Todas as melhores coisas são.

*

Era a minha primeira semana livre de castigo, então todos os dias dela me certifiquei de fazer algo diferente depois da escola. Naquela quinta seria a primeira vez da semana em que eu repetiria o caminho do castigo, direto para casa, mas por vontade própria.

Não posso dizer que minha mãe estava errada e, no fundo, preciso admitir que foi bom ter um pouco de limite. Foi quase acalentador, visto que, se dependesse do Alex, bom...

Todos sabemos.

“Alex” e “limite” em uma mesma frase não combinam.

Relanceei-o.

Por enquanto, estávamos os cinco caminhando lado a lado até a parada de ônibus, mas Alex iria comigo até em casa. Minha mãe o acostumou muito mal, já que ele vivia por lá agora, e entrando pela porta da frente!

Não vou dizer que as madrugadas vividas no bairro, só nós dois, haviam acabado - inclusive meu castigo não as abordou, porque minha mãe não me vigiava por 24 horas -, mas certamente haviam diminuído de frequência.

Era estranho.

Alex havia estado perto de mim em maior quantidade no último mês, aparecia mais na minha casa, ficava por mais tempo. Mas, de alguma maneira, havia se distanciado. As conversas não eram mais íntimas, pessoais e cúmplices. Eram, em sua maioria, vagas. E ele já não me olhava da mesma forma.

Eu não queria ser paranoico, mas aquilo só podia ter a ver com o beijo. Eu só não sei se ele estava chateado por eu havê-lo beijado ou por eu haver fingido que nada ocorreu. Ou ainda, por ambos.

Chutei uma pedrinha.

Eu só espero que esta mudança entre nós me ajude a superar esta besteira de olhar para o Alex com outros olhos se não os de amigo. Porque isto não levaria a nada. Ao menos, a nada que prestasse.

— Eu não aguento mais! — reclamou Ian, com um suspiro. — Eu sei que falta menos de dois meses pras aulas acabarem, mas parece que faz 84 anos que falta menos de dois meses!

— Nem me fala — resmungou Alex, perdido em pensamentos desde que saímos do colégio. Não que eu estivesse o observando desde lá...

— Eu tô só pelo ensino médio, finalmente — exclamou Grace, não tão animada quanto pretendia.

— Não é lá grande coisa — retrucou Alex, rindo, após piscar e sair pela do transe pela primeira vez.

Grace o encarou. — Prefere o fundamental?

Alex sacudiu os ombros como se tivesse um calafrio.

— Nem a pau! — respondeu, por fim, fazendo-a rir.

— Exatamente!

Mason, que digitava rapidamente no celular, ergueu os olhos para nós.

— Qual a diferença? — perguntou, como se o assunto o perturbasse. — Somos perdedores no fundamental, seremos no médio também! A única diferença é que estaremos mais velhos e vai ser ainda mais vergonhoso sermos perdedores estando a um passo de sair do colegial, o que vai dizer muito sobre o tipo de futuro que teremos.

— Animador — debochou Grace, entre suas falas, e eu sorri para isto.

— Não, mas é verdade — continuou ele, empurrando os óculos para cima. — E outra, a história de que o Bruce trocaria de colégio no ano que vem foi fake news. Fiquei sabendo esses dias — contou, como sempre ficava sabendo de algo — que ele insistiu em ficar aqui, mesmo que os pais estejam se mudando para os Estados Unidos! Dá para acreditar em uma coisa dessas?

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— Não mesmo — concordou Ian, indignado.

— Dá — discordei, porque daquele garoto esperava qualquer coisa.

— Se duvidar, ele ficou só para fazer da nossa vida um inferno — acrescentou Grace, me relanceando.

— Da minha, você quer dizer. — Mason resmungou, estalando a língua.

— Se ele faz da tua vida um inferno, faz da nossa também — retrucou Grace, em apoio. — E juntos, nós fazemos da dele.

— Muito bonito na teoria, Grace, mas na prática é outra história! — interrompeu Ian, toda a magia de sua fala. — Nós apanhamos, lembra? Sem falar que...

Eu já não os ouvia.

Parei de caminhar ao franzir o cenho, encarando com atenção, pela primeira vez, uma das casas pela qual passamos todo dia.

Era uma casa comum, embora um tanto pobre, com um pátio meio sujo e portão enferrujado. O que me chamou a atenção foi algo que vi entre as grades do portão, ao longe, já que o pátio era extenso para trás.

Um cachorro amarelado coçava as orelhas sem muito ânimo, já que moscas deviam rodeá-lo o dia todo. O pelo estava sem vida, sujo, e marcava com mais nitidez do que eu gostaria os ossos salientes do seu corpo anêmico. Estava acorrentado a uma grade, com dois potes imundos e vazios ao seu lado.

Senti o coração apertar no peito.

Tive dois cachorros na infância e por pouco tempo cada um. Os dois morreram "misteriosamente" e eu nunca mais quis colocar uma pobre alma dessas para dentro da minha casa amaldiçoada.

Meu pai odiava cachorros. Teria que dividir o dinheiro da minha mãe - usado exclusivamente para álcool - com os custos de ração do cachorro. Na época, o pensamento nem me cruzou à cabeça mas hoje em dia é nítido que ele foi o responsável pela morte dos meus dois vira-latas. Um deles era um filhote, inclusive, e eu jamais vou perdoá-lo por isto.

— O que houve?

Percebi que os quatro haviam parado alguns metros à minha frente e me encaravam de longe. Também olharam para a casa ao lado mas sei que de lá não podiam enxergar o que eu estava enxergando.

— Um cachorro — falei, simplesmente, pensando no que fazer a respeito.

— E daí? — questionou Alex, confuso, se aproximando junto dos demais.

— E daí que precisamos fazer algo, olha! — falei, apontando para o ponto específico de onde podia vê-lo.

Alex se aproximou, estreitando os olhos até enxergar. Então, sua expressão mudou para uma irritada.

— Miseráveis! — reclamou, a respeito dos donos. — O ser humano tem que se foder mesmo — resmungou, estalando a língua. — Ian, me empresta o celular que eu vou denunciar por maus tratos.

Só que denunciar não era o suficiente.

Franzi o cenho, tornando a encarar os olhos tristes do cachorro, que agora parecia intrigado com a movimentação em frente à sua prisão - porque aquilo certamente não era um lar.

— Podemos pegá-lo — verbalizei, enquanto Alex pesquisava o número direto para a denúncia.

— Você quer dizer “invadir”? — tentou Mason, traumatizado das nossas traquinagens anteriores.

— Invasão de domicílio para salvar um animal de maus tratos é permitido por lei*, Mason — informou Grace, dando de ombros. — Só temos que filmar a coisa toda para a denúncia.

Alex soltou um riso, deixando o celular de mão.

— Você não acabou de sair de um castigo? — questionou, achando graça.

Dei de ombros, sorrindo. — É por uma boa causa.

— E o que fazemos com o cachorro depois? — perguntou Ian, olhando de um para o outro. — Se eu chego com ele em casa, meus pais me matam.

Alex sorriu, me encarando.

— Caleb vai levá-lo — afirmou, como se me conhecesse do avesso. — Não é?

Sorri sem graça, voltando os olhos para a carinha esperançosa do cachorro, que choramingava baixinho por ajuda ao nos encarar de longe.

— Nem que eu tenha que dividir a minha comida com ele — declarei, baixinho, sobre o que eu fizera com os outros dois quando criança.

A partir daí, criamos dois planos para adentrar na casa, um para o caso do local estar realmente vazio e outro para o caso de que houvesse alguém e fôssemos pegos. Mas tivemos sorte, pois só o primeiro foi necessário.

Pulamos o portão com certa dificuldade, porque ele era alto, e tivemos que quebrar a fechadura de um segundo portão, que levava para os fundos da casa. Mason filmava do lado de fora, enquanto Ian filmava do lado de dentro com o restante de nós. Grace tirou fotos o tempo inteiro.

Quando me aproximei do amarelinho, jurei internamente protegê-lo do mundo. Ele não seria uma história repetida dos meus outros dois, eu já não era mais criança e aquele cara horrível já não mais encostaria neles. Cuidaria dele como se minha vida dependesse disto.

Tirá-lo de lá pelo portão foi mais complicado, mas conseguimos desempenhar a função em equipe.

Demos água de uma garrafinha da Grace, mas tivemos que caminhar até um mercadinho - um que não fosse o Ruggiero, nunca mais! - para comprar uma ração e dá-la a ele.

Jamais vou esquecer do agradecimento estampado em cada detalhezinho do olhar amendoado.

*

Minha mãe não gostou muito quando cheguei em casa com um vira-lata fedido e doente, mas assim que contei a história, ela se sensibilizou.

Mason contou a respeito do amarelinho para a Cristina, e ela conseguiu marcar consulta, vermífugo, vacina e castração dele com seu pai veterinário, com valores acessíveis que, no fim, foram pagos pelos pais do Ian. A denúncia foi feita por Alex, por ser o mais velho, e o decorrer dela foi muito satisfatório, apesar da multa ainda não ser grande coisa quando se trata de maus tratos de animais no país.

Foi difícil escolher um nome para o bichinho, porque todos opinaram juntos e cada um queria um nome diferente. Eu quis levar em consideração toda a nossa panelinha, mas não era tão fácil assim.

O nome, enfim, escolhido por nós foi uma brincadeira com nossos nomes. Eu quem quis resgatá-lo e eu quem o trouxe para cuidar, mas todos haviam ajudado, então ficou estabelecido que aquele cachorro era de todos nós.

Mason. Alex. Grace. Ian. Cristina.

M. A. G. I. C.

Se houvesse sido planejado, não teria dado tão certo.

Eu achei apropriado, porque Magic realmente só trazia muito de magia para dentro de casa. Tudo era tão parado antes dele que já me deixa angustiado pensar na ausência do nosso vira-lata amarelado.

Magic me acorda todo dia com lambidas no rosto. Eu, particularmente, acho que me daria melhor com um gato: quieto, antisocial e conveniente. Mas ele me olha com tanto amor que eu deixo essa ideia boba para lá.

Tudo que consigo pensar é que:

— De todos os animais do mundo, tinha que ser você — verbalizei, culpado pelo pensamento anterior. Magic lambeu meu rosto como resposta. — Você mesmo, garoto.

Ele havia ganhado peso, o pelo estava macio e já não mais era opaco, o rabo ia de lá para e de cá para lá praticamente o tempo inteiro e os olhos amendoados, sempre cheios de amor, já não mais eram tristes.

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Me acompanhava até o portão quando eu saía e era lá que Magic estava quando eu chegava. Arrumei uma casinha para ele do lado de fora, e uma caminha para ele dentro do meu quarto, mas ele gostava mesmo era do sofá. E sob os gritos irritadiços da minha mãe, eu tinha que tirá-lo de lá várias vezes por dia.

Mas quando ela não estava, eu deixava que ele lá se sentasse e ainda sentava com ele.

Era assim que estávamos, um mês depois resgatá-lo, com a televisão ligada no Animal Planet para que ele assistisse - sim, eu havia chegado neste nível de “pai” babão - enquanto eu o desenhava no meu caderno de desenhos.

Ficamos um tempo assim até que a movimentação do meu irmão começou.

Ele saía do quarto cinquenta mil vezes e retornava, para se olhar no espelho gigantesco que foi posto ao lado da sala, de corpo inteiro. Usava roupas diferentes toda vez, inclusive umas com etiqueta e as analisava no reflexo do espelho.

— Onde você vai? — perguntei, intrigado com a sessão se moda que acontecia dentro da minha casa. Provinda de Will, que usa camisetas da promoção e calça jeans gastas no dia a dia, aquilo era estranho.

Will se encarava, concentrado, ao analisar a camisa social com etiqueta e calça jeans escura, enquanto os cabelos apontavam para todas as direções, resultado de enfiar diversas roupas pela cabeça o dia todo.

— Vou visitar o Turner — explicou, dando de ombros. — Jay vai me buscar daqui um pouco.

Arqueei as sobrancelhas.

Eu gosto do amigo do Turner desde que o conheci. Jay é um artista, mas ao contrário de mim, ele trabalha com pinturas e nunca foi muito de desenhar. Me dera um quadro dele de presente uma vez, e eu o pendurei em meu quarto.

— Ele vai junto?

— Sim — resmungou, fazendo uma careta antes de começar a desabotoar a camisa. — Turner tem um evento importante na universidade nesse fim de semana e nós vamos acompanhar.

Antes que eu dissesse mais alguma coisa, a campainha tocou. Will tirou a camisa e retornou para o quarto, não antes de pedir que eu atendesse.

Surpresa a minha me deparar com o vazio assim que abri a porta.

Estranhei, dando uma olhada ao redor para ver se não era correio, mas não havia nada. Ia comentar a estranheza com o Will, mas assim que alcancei a sala ouvi Magic latir e encarar meu quarto com desconfiança, seguido de um barulho provindo de lá.

Com o coração na boca, arregalei os olhos e esperei o que viria.

Alex se materializou em frente à porta do meu quarto e Magic perdeu a desconfiância, latindo e abanando o rabo ao dar pulinhos em torno dele. E o dito cujo do Alex sorriu para mim, como se aquilo fosse perfeitamente normal.

— O quê? — perguntou, assim que percebeu minha expressão incrédula, fazendo carinho em Magic. — Você demorou pra atender!

Revirei os olhos, desacreditado. Como eu ainda ficava surpreso com atitudes assim, eu não faço a menor ideia.

E eu também não sei o que é pior: tê-lo por perto o tempo inteiro, com o comportamento distanciado ou não tê-lo perto por tanto tempo, mas sempre próximo demais.

Ou ainda, tê-lo por perto o tempo inteiro e próximo demais, porque este parecia ser o caso desta vez. Ele estava ali em pleno dia de semana e me encarava da mesma forma de antes do beijo pela primeira vez em mais de dois meses.

Alex sentou-se no sofá e puxou meu caderno de desenhos após discursar sobre o motivo profundo e poético de estar ali sem ser convidado: porque queria. Foi o que me despertou do devaneio, e corri para puxar o caderno de sua mão, fechando-o no desenho do Magic.

— Enxerido.

Alex revirou os olhos, apoiando os cotovelos nos joelhos ao me encarar.

— Você prometeu.

Ele estava falando do desenho dele, percebi, que me infernizou durante mais de ano já para fazer. Hoje, no intervalo das aulas, ele conseguiu que eu prometesse desenhá-lo sim, e tudo para que ele parasse de incomodar.

— Eu não disse quando — apontei, cruzando os braços.

— Então eu digo: agora — ordenou, dando de ombros ao se recostar no sofá, com um meio sorriso.

Balancei a cabeça negativamente. — Não.

— Por favor — pediu, com olhinhos de cachorrinho abandonado.

— Não.

Emburrado, observei a cara convencida do Alex, sentado no sofá contrário ao meu, enquanto eu deslizava o lápis pelo papel.

Havia cedido feito um idiota, e tudo para que ele parasse de me olhar daquela forma, pidão, me constrangendo. E agora eu tinha que encará-lo e todo detalhe que o envolvia, de burro que sou. Meu outro caderno, com os esboços dele, estava em meu roupeiro, escondido entre as roupas, para me provar que esta tarefa não seria tão difícil quanto parecia. Eu já havia pegado mania de desenhá-lo.

Mas assim era diferente.

Pedi para que ficasse quieto e ele assentiu, ficando parado, mas com os olhos em mim. Em mim!

Remexi-me no lugar algumas vezes, querendo coçar a barriga que havia gelado, mas me detendo pelo óbvio. Dobrei uma das pernas e trouxe meu joelho para o peito, para que eu apoiasse o caderno.

Alex ficou sério, os olhos seguiam os meus, parecendo me desenhar tanto quanto eu o desenhava. Ou melhor, me estudava. Puxou um assunto ou outro, enquanto eu os esticava o máximo que podia para que não caíssemos no silêncio outra vez, tomado de olhares.

Odiei meu talento limitado, incapaz de reproduzir a enigmática profundidade dos olhos escuros do Alex no papel. Nem tampouco os detalhezinhos de seu rosto, de seu cabelo, de sua postura, que o completavam.

Enquanto traçava o máximo de detalhes que conseguia - jamais suficientes -, ele retomou o assunto que deixara quieto por semanas: a festa. A partir daí, só fingi desenhar enquanto na verdade retocava o que já havia traçado, sem prestar atenção, a mão trêmula.

— Você mal podia andar — comentou ele, com um meio sorriso. — Teve que se apoiar em mim.

Pigarreei, procurando uma posição confortável no sofá. — Sim, eu tava mal — limitei-me a dizer, forçando um sorriso.

— Você não queria que eu fosse embora — acrescentou, assim que eu fechei a boca, arqueando uma das sobrancelhas. — Não lembra mesmo?

Pisquei, os olhos no papel.

Eu lembro de cada detalhe, Alex.

— Não — murmurei, dando de ombros.

Evitei olhá-lo até que se fez necessário, e ele esperou que eu o fizesse para assentir. Era como se dissesse: “entendi”, mas não que houvesse entendido que eu realmente não lembrava, e sim, que eu realmente não queria lembrar.

Engoli em seco.

— Como estão as aulas de violão? — usei, na tentativa de mudar de assunto o quanto antes.

Alex demorou-se um pouco, mas forçou um sorriso.

— Boas — contou, agradado. — Ben não é tão bom professor mas ele se vira. — Assenti, forçando outro. — Também é ruim aprender quando se tem só um violão.

Arqueei uma das sobrancelhas.

— Ele te ofereceu um — apontei, lembrando de quando ele comentou a respeito.

Alex fez uma careta.

— Não é presente que se aceite — retrucou, com uma careta. — Eu vou comprar o meu próprio, mas agora não posso gastar com isso.

Parei os olhos nele, também lembrando de quando comentou a respeito da poupança que guardava para quando saísse da cidade.

Em pouco mais de um mês.

Um mês, porque era basicamente o que faltava para o ano letivo acabar. Quase dois meses para o ano de 2018, em si, acabar. Alex ainda seria menor de idade, mas ele teria o diploma do ensino médio e entraria para qualquer curso que conseguisse passar, longe dos pais.

Longe dos pais, longe daqui, longe de nós, longe de todo mundo.

Longe de mim.

— Ainda tá guardando pra...?

— Sim — respondeu em um murmúrio, assim que percebeu que eu não continuaria, engasgado do jeito que fiquei.

Assenti por mais tempo do que deveria, angustiado.

— Por que ainda esconde as aulas de violão do seu pai? — perguntei o que veio à minha cabeça.

Alex mudou de expressão e pude ver o indício de irritação só à menção de seu pai.

— Porque ele é um filho da puta — resmungou o que parecia ser sua resposta para tudo que envolvia o cara. Elaborou melhor quando percebeu meu silêncio: — Porque ele não quer música para o meu futuro.

Franzi o cenho.

Já sabia disso, mas não era o que me intrigava.

— É, mas você não parece se importar muito com o que ele quer ou deixa de querer — tentei, devagar, por não saber se isso iria irritá-lo também. Alex uniu as sobrancelhas, tentando entender onde eu queria chegar. — Então por quê?

Alex pareceu compreender e a ruga em sua testa sumiu aos poucos, embora transparecesse uma melancolia. Os ombros murcharam um pouco de forma desanimada quando ele desviou o olhar, mas sua expressão era quase raivosa, ao que me pareceu.

Cogitei se ele não responderia quando a resposta veio: — Não gosto de como ele me faz sentir.

O murmúrio baixo foi triste, e senti um aperto no peito.

— E como é? — perguntei, antes que pudesse conter.

Alex ergueu os olhos escuros para mim, perdidos.

— Impotente.

Subitamente, alguns flashes de memória me vieram à mente junto daquela palavrinha que eu não costumava ouvir no vocabulário do meu dia a dia.

Impotência.

A palavra perfeita para descrever o que eu sentia perto do meu pai. Tenho poucas lembranças dele, mas nenhuma era muito boa e a que mais eu tinha vívida na memória era particularmente horrível.

Envolvia meu irmão encolhido em um canto da sala, um cabo de vassoura que o atingia repetidamente e as palavras gritadas pelo meu cambaleante pai. Mamãe não estava por perto e eu havia acordado com a gritaria. Eu era muito novo, talvez uns cinco anos, por isso a memória turva. Fiquei com medo de espiar além da porta do meu quarto e quando Will me viu ali, sorriu disfarçadamente para me encorajar de que tudo estava bem, apesar da lasca de pele que desencadeava no sangramento em seus braços, no processo de erguê-los para proteger o rosto.

Impotente, voltei ao meu quarto com medo e esperei até que Will entrasse, mancando, com o rosto inchado pelo choro, mas um sorriso no rosto ao dizer que estava tudo bem quando nada estava.

— É, eu sei — sussurrei, perdido em pensamentos, antes de tornar a desenhar, afastando a memória.

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Alex pareceu intrigado pelo comentário.

— Sabe?

Mas eu apenas dei de ombros, sem querer entrar em detalhes desnecessários. Em silêncio fiquei até finalizar a “obra de arte”, amadora até a medula, o que me deixou até constrangido de mostrá-la para ele, a fonte da inspiração para tal.

— Acho que tá pronto.

Alex despertou de algum devaneio, subitamente animado, antes de levantar do sofá. Apressou-se e sentou ao meu lado após espreguiçar-se, puxando o caderno das minhas mãos.

Um sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto o analisava.

— Uau — diz, impressionado não sei com o quê, com minha falha de habilidade artística. — Eu sou um deus!

Reviro os olhos, em parte aliviado que o assunto pesado houvera chegado a um fim. — Agora você pode se admirar o quanto quiser — optei por dizer, debochado.

Alex girou o rosto para mim, me estudando com estranheza antes de soltar: — Por que eu faria isso? — questionou, me confundindo. — Não vai mantê-lo com você?

Uni as sobrancelhas.

Ele me infernizara por anos para desenhá-lo e agora queria que eu ficasse com o desenho?

— Por que eu faria isso? — repeti o que ele havia dito.

Alex deu um sorriso preguiçoso. — Para me admirar!

Encarei-o por um tempo antes de rir, vendo-o fazer o mesmo.

— Fala sério!

Rimos por um tempo até que ele tornasse a admirar meu desenho, os olhos o percorriam tanto quanto os dedos o faziam.

Eu o desenhei do peito para cima apenas, e já era muito para a minha escassez de habilidade. Era apenas um rascunho, mas eu não sei se algum dia, mesmo em um desenho milimetricamente pensado, eu seria capaz de colocar toda a essência do Alex em um papel.

Me parece uma missão impossível.

— Você me vê assim mesmo? — perguntou, me olhando de canto com um sorriso.

Apesar de não estar perfeito, qualquer um que o conhecesse poderia dizer que aquele era ele. Uma versão meio aleijada dele, na minha opinião, mas ainda assim.

— Alex, você é assim — esclareci, como se ele fosse um palerma.

— Lindo? — testou ele, mordendo os lábios para não rir.

Revirei os olhos, dando de ombros ao encarar Magic adormecido e fazer carinho nele.

— Se você acha...

Alex largou o caderno ao seu lado, estreitando os olhos para mim, antes de me dar um empurrãozinho. — Ah, eu não acredito que você não vai admitir!

Ora, pelo amor de deus!

Alex tem uma horda de adolescentes, sejam eles meninos, meninas ou até mesmo menines, babando o ovo dele e ainda precisa que alguém o elogie para inflar seu ego?

Tenho certeza de que ele possui um espelho em casa.

— E eu não acredito que você precisa que alguém admita — resmunguei, me recostando no sofá de qualquer jeito.

Ele sorriu amavelmente.

— Não “alguém” — explicou, batendo o ombro no meu, com tanto carinho que embrulhou meu estômago —, você.

Engoli em seco, não querendo sustentar seu olhar, mas não conseguindo do contrário.

“Lindo” nem começa a explicar a obra de arte que você é, Alex.

— Espera — disse ele, mudando de expressão subitamente para uma convencida. — Isto foi você admitindo! — acusou, rindo. — Você acabou de admitir!

— O quê? — questionei, perdido, me perguntando ainda se havia dito em voz alta e não em pensamento. — Não! — neguei, certo de que não. — Tá maluco?

Alex gargalhou.

— Não! — defendeu-se. — Você acabou de dizer que não acredita que eu precise que alguém admita. Ou seja, eu não preciso que ninguém admita, porque eu sei e você sabe também — acrescentou, colocando a mão no meu peito — que eu sou lindo! — Abriu os braços. — Não é preciso ninguém admitir porque é de conhecimento geral!

Confesso que demorei a entender sua linha de raciocínio e assim que o fiz, ri junto dele, revirando os olhos para seu nível de idiotice.

O que a pessoa não faz para ter razão, não é mesmo?

Alex riu ainda mais da minha expressão incrédula e então puxou o caderno e arrancou a folha com o seu desenho. Encarou-a por um tempo antes de levar uma mão para a minha e enroscar os dedos nos meus.

Implorei para que eu não tremesse e ele não percebesse o tipo de efeito horrendo que ele tem sobre mim.

— Obrigado — murmurou, esboçando um sorriso bonito.

Engoli em seco, sem atrever-me a soltar sua mão, e assenti feito um robô.

Senti o coração acelerar instantaneamente, assustado com o movimento repentino, quando ele aproximou o rosto do meu e encostou os lábios na minha bochecha em um beijo casto. No intuito de fechar as mãos em punhos pelo nervosismo, acabei enlaçando ainda mais meus dedos nos dele, apertando sua mão na minha.

Aí se vai minha ideia de não transparecer o que sentia!

Alex apertou a minha mão de volta e, assim que os lábios já não mais estavam na minha pele, ele roçou o nariz em meu rosto de uma maneira muito parecida com a daquela noite.

Afastou-se por completo e me deu poucos segundos para me recuperar do ataque cardíaco antes de puxar algum assunto, após pigarrear. Meu único alento era que ele parecia tão desconfortável quanto eu fiquei.

No fim, Alex acabou deixando o desenho na cama do meu quarto antes de ir embora.

E eu fiquei o resto da tarde pensativo, a respeito de tudo.

A respeito dele haver me tratado da mesma forma que sempre tratou, deixando para trás esses quase dois meses desde o beijo em que ficamos um tanto estranhos um com o outro. E por falar em “dois meses”, a respeito desses quase dois meses que ainda tínhamos antes da virada do ano. A respeito do pouco tempo que eu teria com ele antes que ele seguisse essa ideia teimosa de ir para longe de tudo e de todos por causa dos pais. A respeito dos pais...

Dos seus.

Dos meus.

A respeito do meu pai.

Minha mãe chegou quando já havia escurecido. Magic seguia adormecido, mas desta vez no tapete, porque eu o coloquei para baixo quando o horário da minha mãe chegar se aproximava. Ela deixou as chaves e a bolsa no balcão. Me perguntou se estava tudo bem por ali e eu assenti, ainda perdido em pensamentos aleatórios sobre tudo.

— O que foi? — perguntou, percebendo a áurea ruim.

Eu a sentia no peito, na cabeça, e ela se espalhava por todo o meu corpo, feito um vírus. Me sentia anestesiado, sem poder mover-se, diante de uma catástrofe.

O tempo passou rápido demais.

O que sinto pelo Alex aconteceu rápido demais e estava demorando tempo demais para passar. Com certeza, não teria passado ainda quando ele fosse embora, o que faria doer ainda mais a sua partida.

E o tempo simplesmente não parava.

Eu sou novo demais e não me lembro direito da minha infância, porque ela fica cada vez mais longe. Mais e mais longe.

Encarei minha mãe, angustiado.

— Mãe...

— Sim?

— Por que ele foi embora?

Ela franziu o cenho, confusa. — Quem?

Ele — repeti, porque sabia que ela odiava seu nome e eu odiava chamá-lo de “pai”. — Você disse que ele foi embora, mas eu não consigo entender — confessei, frustrado. — Eu sei que eu tava aqui, mas eu não lembro. Eu era muito novo, não consigo lembrar. E você não fala sobre isso, e o Will não fala sobre isso, e meus tios não falam sobre isso, e eu não entendo.

A compreensão passa pelo rosto dela, assombrando-o de uma maneira sinistra. No entanto, a confusão e a cautela se sobressaem ao passo que ela tenta me compreender.

— Como... — tentou uma vez, mas desistiu. — Por quê...? — Desistiu mais uma vez.

Seus olhos se tornam dolorosamente piedosos e ela engole em seco. Balança a cabeça para espantar algum pensamento antes de sentar-se na mesinha da sala, em frente a mim.

— Caleb, seu pai nos deixou porque não nos amava — explica, com cautela, como se temesse me machucar. — Nenhum de nós. Meu bem, eu sei que isso é horrível, mas...

Balancei a cabeça.

— Eu sei disso — interrompi. — É por isso que não entendo. Ele não nos amava, não se importava com a gente, só com ele mesmo. E o que ele tinha aqui ele não teria em qualquer outro lugar — apontei, o que girava e girava na minha cabeça desde que Alex me perguntou sobre o meu pai. — Por que ele iria embora?

Afinal, aquilo era perfeito para alguém como ele porque era o contrário de perfeito para nós. Ele não tinha mais nada além da gente, além do dinheiro da mamãe, além da nossa casa. Ele tinha tudo o que ele precisava, e ele não se importava com ninguém além dele mesmo.

Então por que largar tudo?

Por que ir embora?

Minha mãe inspirou e expirou fundo algumas vezes, ainda alguma confusão passando pelo rosto dela, como se não compreendesse como que eu não sabia a resposta para a minha própria pergunta.

Devia ser porque eu estava junto dela, mas eu era novo, eu não lembro da ordem dos acontecimentos.

Minha mãe, piedosa, suspirou, passando a mão no rosto com certa aflição.

— Eu só quero entender — justifiquei-me, nervoso, me sentindo culpado pela dor que passava pelo rosto dela.

Ela levantou-se momentaneamente para sentar ao meu lado no sofá e pegar minha mão na dela. — Eu sei, meu filho, eu sei — apressou-se em dizer. — Eu só... — Engoliu em seco, os olhos enchendo d’água. — E-eu não consigo falar sobre isso. Eu não posso falar sobre e-ele — gaguejou, a voz trêmula. — Eu sinto muito. Eu sei que é um bloqueio meu e que vocês mereciam melhor que isso, mas toda vez q-que e-eu...

Neguei, um nódulo na garganta.

— Desculpa — pedi, pensando que nunca devia ter trazido o assunto à tona. — Me desculpa.

— Não é sua culpa, meu bem. É minha. É toda minha — garantiu, colocando a mão no peito. Suspirou, limpando as lágrimas rapidamente com a outra mão antes de me olhar nos olhos. — Eu só preciso que você entenda que eu quis que ele fosse — falou, firme. — Eu ordenei que ele fosse. Eu ameacei denunciá-lo caso não fosse. Ele ficou com medo e partiu — explicou, simplesmente. — E nós ficamos bem. Nós estamos bem, não estamos?

Assenti, apesar de não ter certeza se aquela era toda a verdade.

Eu queria acreditar nela, queria mesmo, e acreditar no potencial que ela tinha de erguer a voz e demandar que aquele cara horrível saísse de casa. Mas nas poucas memórias que eu tenho, ela chegava a se encolher de medo dele, assim como eu e meu irmão.

Não consigo imaginá-la se impondo, e mesmo que ela o fizesse, mesmo que ela conseguisse se livrar do medo que sentia dele e expulsá-lo de casa, eu não consigo imaginá-lo obedecendo.

Não consigo imaginar aquele cara com medo de nada.

Apenas nós com medo dele.

— Por que tá pensando nisso, meu bem? — questionou, preocupada, ao segurar meu rosto entre mãos.

Forcei um sorriso, encarando os olhos castanho-esverdeados.

— Não estou.

Ela sorriu com fraqueza antes de me soltar e me analisar com atenção. Limpou o rosto mais uma vez, fungando, antes de tornar a sorrir com tristeza.

— Sabe que eu e o Theo quase cancelamos o noivado um dia desses?

Uni as sobrancelhas, confuso com o tópico que ela trouxe e surpreso pelo conteúdo deste.

Neguei, perdido.

— Não percebeu que ele ficou uns dias sem aparecer aqui?

Pensei um pouco a respeito e limitei-me a assentir.

Não quis mencionar que pouco me importei se ele estava aqui ou não, quase que agradeci mentalmente cada dia da sua ausência.

— Tivemos uma briga feia, basicamente por causa de tópicos como esse — contou, referindo-se ao assunto anterior. — Coisas das quais eu preciso falar e não consigo. Coisas que preciso trabalhar em mim mesma e não consigo. Coisas que afetam ele também — explicou. Assenti, curioso. — Então eu dei pra trás. Eu entreguei a aliança e vim embora, eu terminei tudo — revelou, surpreendendo-me. — Tive a sorte de que ele não deixaria as coisas por isso mesmo e que não desistiria de mim.

— Por que fez isso?

Ela suspirou, fazendo um carinho rápido nos meus cabelos. — Eu fiquei com medo.

— Do quê? — insisti, ainda sem compreender.

— Quando a gente ama alguém, é normal sentir medo — contou, encarando o vazio, antes de explicar: — Medo de amar.

Arqueei as sobrancelhas, analisando-a.

Eu entendo o que isso quer dizer - e não quis entrar em detalhes na minha cabeça sobre o porquê de eu compreender tão bem -, mas não entendia o que isso tinha a ver com o assunto anterior.

— Você amava o meu pai? — tentei, perdido.

Ela franziu o cenho, focando os olhos em mim.

— Não, Caleb, não — negou, movendo a cabeça. — Eu não o amava. Talvez seja isso o que me dê mais medo. Eu não o amava e ainda assim saí tão machucada. Aqui — especificou, com a mão no peito, o que fez o meu se apertar. — Me assusta pensar no que pode acontecer quando estou amando.

Pisquei algumas vezes, pensativo.

— Não é mais fácil acontecer do contrário?

Minha mãe me encarou por um tempo com uma expressão que não pude decifrar, perdida em pensamentos próprios, antes de piscar e sorrir.

— Você é tão sensato, meu bem — disse, balançando a cabeça como se fosse inacreditável. — Tão novo, mas tão evoluído. Tenho tanto orgulho de você, sabia? — perguntou, a mão segurando meu queixo para admirar-me melhor. — Me faz pensar que eu fiz alguma coisa certa quando os criei. Apesar de que...

Porém, não continuou, a expressão tornando-se preocupada.

Remexi-me no lugar, a curiosidade coçando. — De que...?

Minha mãe suspirou mais uma vez, parecendo cansada, e os olhos tornaram-se melancólicos ao me observar com piedade.

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— Não sei se é uma coisa boa, saber tanto quando tão jovem — murmurou, baixinho. — Entender demais sobre a vida e viver de menos. Crescer rápido demais — sussurrou, por fim, uma ruga aprofundando-se entre as sobrancelhas escuras. — Você e o Will são muito diferentes. Você é mais parecido comigo — revelou —, e isto me assusta tanto!

Os olhos lacrimejaram uma vez mais, e sua voz trêmula me trouxe uma sensação ruim.

Pisquei, tentando entender o raciocínio de mãe.

Eu era fisicamente mais parecido com ela mesmo. A cor dos cabelos, alguns traços. Mas não parecia ser que ela se referisse a isto.

— Como assim?

— Não diga a ele, mas seu irmão é mais parecido com o pai de vocês — murmurou baixinho, relanceando o quarto do Will, como se temesse que ele ouvisse. — Eu sinto como se ele houvesse herdado algumas características feias do seu pai e as transformado em algo lindo. — Sorriu, e eu não pude evitar sorrir também, embora receoso pelo que viria a seguir. — Eu não tive a chance de ver muito de você ainda Caleb, talvez por ser tão novo — pareceu ponderar consigo mesma —, mas eu morro de medo que você herde as minhas características feias e não saiba lidar com isto.

Senti um nódulo na garganta.

Peguei sua mão, a pele já um tanto flácida pela idade, contrastando com o rosto que ainda parecia tão jovem a despeito das rugas da idade.

— Mãe — murmurei, a garganta travada —, não tem nada de feio sobre você.

A frase me lembrou de algo parecido que disse algumas semanas atrás.

“Alex, não existe nada de deturpado sobre você”, eu havia dito, sob olhos negros que discordavam veementemente de mim.

Se as más pessoas fossem tão duras consigo mesmas quanto as boas, o mundo seria um lugar melhor.

Ela limpou o rosto, os olhos na mesma discordância que se encontravam nos olhos do Alex. — Quisera eu que isto fosse verdade, Caleb, quisera eu — murmurou, triste. — Fiquei tanto tempo mantendo tudo para mim, sofrendo em silêncio, achando que podia fazer tudo sozinha, que quando aprendi a usar a minha voz, já era tarde demais para mim. Não para vocês, espero que não — acrescentou, preocupada —, mas para mim.

Abri a boca para retrucar o quanto tudo aquilo era bobagem, mas ela finalizou com algo que eu jamais esquecerei:

— Não deixe que o mesmo aconteça com você, meu filho — pediu, olhando-me nos olhos com certa súplica. — Nunca.

Engoli em seco, sentindo a importância que aquilo tinha para ela infiltrar-se na minha pele.

Seria isso que ela quis dizer o tempo todo?

Eu sou quieto e não comunicativo a ponto dela nem saber o que se passa comigo, a ponto de nem me conhecer por completo, a ponto de não conseguir entender que importância o passado com o meu pai tinha para mim se já havíamos nos livrado dele. Sinceramente, nem eu conseguia entender.

E eu já guardo muita coisa para mim, já sofro em silêncio, já penso que posso fazer tudo sozinho. Eu sou parecido com ela neste quesito, e foi isso que ela quis dizer.

Não deixe que seja tarde demais para você também, foi o que quis pedir.

— Não vou — garanti, por fim, firme.

E por dentro, jurei para mim que não iria mesmo.