Made of Stone

XXI. De todos os castigos do mundo


Eu sei que a maioria das pessoas, no processo de se descobrir com relação à sexualidade, passam por um momento de negação quando esta foge ao padrão. E eu até cheguei a passar por isto, mesmo que inconscientemente, mais novo do que poderia imaginar.

Só que, naquele momento, esta fase já havia passado. Esta fase foi deixada para trás no minuto em que meus lábios tocaram os dele, porque foi naquele minuto que me dei conta que queria fazer isto o resto da vida. E eu não me refiro à parte de “beijar um garoto”. Me refiro à parte de “beijar o Alex”.

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E, no fim, essa foi a mais profunda, a mais dolorosa, a mais extensa negação de todas.

Esqueça o mundo assustador lá fora para quem foge ao padrão heteronormativo! Esqueça aquela conversa séria com os pais, com os amigos, com o mundo sobre quem você é e do que gosta! Esqueça a dificuldade de se ter os mais básicos direitos humanos na maior parte do mundo por gostar de quem gosta!

Nada disto me assustava.

Gostar de alguém como o Alex, seja esta pessoa um garoto ou não, é que me aterrorizava até a medula. E se tem um defeito que me custa enfraquecer até os dias de hoje é o de me deixar ser controlado pelo medo.

*

No início, achei que todo o lance de castigo fosse apenas para me assustar, mas minha mãe seguiu em frente com o plano assim que levantei da cama após a conversa com o Will.

Eu estava proibido de sair por um mês inteiro. Eu devia ir do colégio para casa e de casa para o colégio nos dias de semana, proibido de fazer qualquer coisa diferente disto. Eu estava proibido de ver os meus amigos “más influências” fora do colégio. Eu estava proibido de ver filmes, séries ou de jogar videogames que fossem considerados, pela minha mãe, “violentos” e de “má índole”.

E estas eram as proibições que valiam por um mês. Não eram as únicas.

Eu devia circular em um calendário exatamente a data em que eu completaria os dezoito anos de idade para ficar registrado o momento em que eu pudesse ter - não toda, mas um pouquinho de - liberdade, e isto apenas se eu não estivesse mais sob o teto da minha mãe. Eu estava proibido de chegar perto de drogas lícitas até que eu completasse - pasmem - os trinta anos de idade. Não dezoito, não vinte e um, mas trinta. Eu também estava proibido de quebrar qualquer regra: de casa, do colégio, da sociedade, até que estivesse morto e enterrado.

Me defendi dizendo que Will não segue estas restrições e nem nunca seguiu, e ela rebateu dizendo que o Will não havia quase a matado do coração três vezes em um mesmo ano.

Ok, ela tem um ponto.

Desisti, enfim, ao consentir com o castigo.

Eu ainda podia usar o celular e conversar com eles por lá, então não seria tão ruim. E era exatamente isto que eu estava fazendo, conversando com eles - todos, menos Alex - no grupo quando alguém bateu na porta de casa.

Como o Alex estava me evitando tanto quanto eu estava evitando ele, nunca imaginei que ele apareceria na porta da minha casa menos de um dia depois da besteira que fizemos.

Foi uma besteira, não foi?

Amigos não se beijam.

— Alex? O que faz aqui?

Eu estava na sala, assistindo um reality show de confeitaria, porque minha mãe decidiu implicar com todos os outros filmes, apesar dela nem estar assistindo televisão. Estava se arrumando para sair com o Theodore, enquanto eu e Will estávamos atirados no sofá da sala naquele domingo parado e tedioso.

Minha mãe, já completamente arrumada, foi atender a porta antes que qualquer um de nós, e resultou ser o Alex. Dona Sarah ama o Alex de uma maneira impressionante, porque eu sei que ela sabe que ele tem outra face que não mostra, mas ainda assim o trata como um príncipe.

Ou agora, nem tanto.

— Caleb não disse que está de castigo e que está proibido de ver qualquer um de vocês?

Bom, se ele não sabia, agora ele sabe, né mãe?

Ponderei se levantava ou não, mas o olhar do Will sobre mim respondeu que eu seria decapitado caso entrasse na cozinha*. E eu tampouco sabia como olhar na cara do Alex agora.

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— Eu fiquei sabendo. — Ah, então você realmente visualizou a conversa no grupo sem dizer nada. — Mas eu queria me desculpar. Olha, a culpa foi minha por ontem — assumiu ele, com uma voz mansa que jamais ouvi dele na vida. — Nem o Caleb nem nenhum dos pest... — Pestinhas, Alex? Sério? — Nenhum dos mais novos tem culpa por ontem. Eu fiquei de responsável por eles, e pisei na bola.

Ouvi o Will dar uma risadinha ao meu lado, e dei um soco em seu braço.

Ouch, que agressivo! — reclamou, virando um tabefe nos meus cabelos.

— Realmente, você pisou na bola — concordou ela, dura. Nossa, minha mãe realmente havia enfurecido com minhas pequenas aventuras! — Esperava mais de você, Alex, principalmente por ser mais velho que eles — falou, com um toque de decepção na voz. — Eu sei o que adolescentes como vocês gostam de fazer hoje em dia, e até já imaginava que você aprontasse por aí com os amigos da sua idade, mas eu preciso lembrá-lo que o Caleb tem só catorze anos? Catorze, Alex! — enfatizou, chateada, ao passo que eu me encolhia no sofá. — E se alguma coisa grave houvesse acontecido?

Não bastou me dar sermão logo após o Will, ela ainda tinha que dar sermão para o Alex.

Ao meu lado, vi Will levantar-se e se dirigir até a cozinha, me olhando com diversão no processo. Encostou-se no batente da abertura que separava a sala da cozinha, de costas para mim, e ficou observando os dois dali.

Eu não podia vê-los, mas conseguia imaginar a pose de bom menino do Alex. Ele a desempenhava em frente dos nossos pais, dos professores, e até mesmo em frente aos pais dele - só que com raiva, neste último caso.

— Eu sei, eu sinto muito — pediu, com rapidez. — Eu fui um irresponsável, eu sei disto. Não precisa ser tão rígida com ele, não foi culpa dele, foi culpa minha — tentou, mais uma vez.

Will me olhou por cima do ombro com uma sobrancelha arqueada. Revirei os olhos e ele riu, voltando sua atenção para a conversa.

— Ora, Alex, você pode até ser o mais velho do grupinho de vocês, mas meu filho não é um santo — disse, me ofendendo, e eu vi Will rir às minhas custas. — Ele sabia muito bem o que tava fazendo.

Revirei os olhos novamente.

Não foi tão grave, afinal. Voltei para casa, são e salvo, e um pouquinho bêbado.

— Eu prometo pra a senhora que isto nunca mais vai acontecer.

— Tem razão, não vai — concordou minha mãe, cínica. — Vou me certificar de que não, e por enquanto, não quero vê-lo perto do Caleb. Nenhum de vocês — enfatizou. — Vai ser bom passarem um tempo separados pra pensarem no que fizeram.

— Não posso vê-lo? — perguntou, com a voz de cachorrinho abandonado.

Eu quis rir. A atuação é perfeita!

— Eu poderia abrir uma exceção para você, Alex, porque gosto muito de você, apesar de haver me decepcionado — falou, e eu revirei os olhos pela vigésima vez. Quero dizer, o sermão dela para comigo não mencionou, em momento algum, um “eu gosto muito de você, meu filho”. Minha mãe tem um preferido e não é nenhum dos filhos dela. — Mas estou prestes a sair e não quero correr o risco de fugirem pela janela mais uma vez — alfinetou ela, depois de uns segundos em silêncio, batendo na mesma tecla.

Havia enfatizado tanto o fato de eu haver saído pela janela que eu acho que a traumatizei. Se ao menos ela soubesse quantas vezes eu saí pela janela, no meio da madrugada, para jogar conversa fora com o Alex na rua...

— Mãe — chamou o Will, como quem não quer nada —, eu vou ficar em casa.

Arqueei as sobrancelhas.

— Will... — começou ela, mas ele continuou:

— Acho o castigo super justo, a senhora sabe — amansou, de forma parecida com o Alex —, mas também acho justo que eles possam vir aqui quando a gente tiver em casa. Se não você, então eu.

Ouvi minha mãe suspirar, e ficar uns segundos em silêncio.

Ah, não, ela está ponderando!

Sentei direito no sofá, nervoso, ao engolir em seco.

Até aquele momento eu estava tranquilo, porque tinha total certeza que o Alex não passaria pela porta. Não que eu quisesse ficar um mês sem as constantes visitas dos meus amigos, mas eu não queria ver o Alex agora. Nem amanhã. Nem nunca mais.

Tá, isto é mentira, mas também não é!

— Muito bem, Alex, pode entrar — concordou, ainda com um tom chateado.

Não! Não! Não!

Fiquei em pé, nervoso, e vi Will olhar por cima do ombro mais uma vez, divertido. Tive vontade de jogar o vaso de flores da mamãe na cabeça dele. Eu sei que ele estava me ajudando, mas sem querer, também estava fazendo o contrário!

— Pode ficar hoje, mas só porque o Will tá em casa — enfatizou, firme.

— Sim, senhora — respondeu ele, respeitoso.

Ouvi a movimentação das chaves e da minha mãe buscando pela sua bolsa na cozinha, antes do Will desencostar do batente para dar espaço para que Alex passasse.

Engoli em seco quando ele materializou-se na sala.

Desgraça, por que ele parece ainda mais bonito hoje?

No minuto que vi os olhos escuros pousarem em mim, minhas pernas fraquejaram e o estômago gelou. Estava usando roupas escuras, com exceção do boné virado para trás, nas cores do Yankees, que eu o havia presenteado.

Não soube interpretar sua expressão, nem pude ter ideia alguma do que estava pensando, e amaldiçoei os pensamentos privados dos humanos. Mas ele havia parado quando me viu e assim permaneceu, sem saber o que falar, e eu tampouco disse nada.

— Will — ouvi minha mãe, após abrir a porta —, olho neles!

— Sim, senhora — respondeu Will, feito um soldado.

Eu podia enxergá-lo atrás do Alex, olhando para a minha mãe antes que ela saísse, e sabia que a altura dos dois era parecida. Talvez Will ainda fosse poucos centímetros mais alto. Ainda assim, ainda assim, eu sentia como se Alex tomasse conta da sala inteira, porque ele era o Alex.

— Oi — disse ele, por fim.

Não entra em pânico, não entra em pânico, não entra...

— Oi — respondi, também, no automático.

Só vi que Will parou ao lado do Alex, com os braços cruzados e nos encarando com interesse quando ele pronunciou, debochado: — Oi.

Alex olhou para ele, forçando um sorriso, ao cumprimentá-lo propriamente também. Fiquei parado, como se estivesse colado ao chão, ao observar a cena.

— E então, Alex... — começou ele, analítico. — Vejo que você é responsável por muita coisa que meu irmãozinho faz — anunciou, e eu quis morrer, vendo Alex me relancear com hesitação. — Também foi na pequena aventura de vocês com o Ruggiero Mercado?

Arregalei os olhos, vendo Alex não saber disfarçar a surpresa, afastando o rosto como uma resposta defensiva, sob os olhos divertidos do Will.

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— Will, não enche — apressei-me em repreender, por fim, me mexendo. Caminhei até eles com rapidez antes de pegar a mão do Alex para arrastá-lo para o meu quarto. — Vem, Alex.

Will riu, e Alex se deixou ser puxado para o meu quarto, enquanto eu dirigia um olhar ameaçador para o Will, que não causou um pingo de medo nele, pela careta divertida que me devolveu.

Entrei no meu quarto com ele, soltando sua mão assim que me dei conta de que estava junto da minha, e me forcei a não olhá-lo na cara após. Me virei para fechar a porta, mas antes que o fizesse, Will resmungou lá da sala.

— Porta aberta — instruiu, atirado no sofá com o controle da televisão em mãos.

Encarei-o, incrédulo.

— Você não tá falan...

— Aberta — repetiu, sem tirar os olhos da TV, ao dar de ombros.

Com a porta na mão direita, encarando-o no sofá, desejei ter jogado aquele vaso de flores mais cedo.

Will não costumava dedicar tanto tempo para me encher o saco, especialmente quando começou a namorar com o seu professor. Lá, ele mal conseguia me enxergar quando estávamos no mesmo cômodo, com a cabeça nas nuvens. Agora que o seu namorado está em outra cidade, parece que todo o foco dele caiu sobre mim, justo quando mais precisava estar fora do centro de atenções de todo mundo.

Estalei a língua, dando as costas para ele ao deixar a porta como estava, mas vi que Alex soltou um risinho, sentado na minha cama, ao me encarar. Na cama onde nos beijamos, nesta mesma madrugada, menos de um dia atrás.

Sem saber o que dizer ou fazer, fiquei parado, encarando-o. Um poço de sutileza. Mas ele me encarou de volta, parecendo o total contrário do que eu estava: calmo, tranquilo e confortável.

Depois de alguns segundos de silêncio constrangedor, Alex piscou, franzindo o cenho ao quebrá-lo. — Me desculpa — pediu, fazendo-me querer enfiar a cabeça em um buraco caso se referisse ao beijo que eu queria fingir que não tinha acontecido. — Eu te meti nessa.

Pisquei, quase suspirando de alívio ao perceber que ele não se falava do beijo e sim, da fuga. Percebendo seu olhar julgador sobre mim, que ainda jazia em pé, sentei ao seu lado na cama e me arrastei para trás até sentir a parede fria nas costas.

Alex fez o mesmo, percebi com o canto de olho.

— Não — murmurei, sem conseguir olhá-lo na cara. — Essa foi a terceira vez esse ano. A maconha foi ideia da Grace e na briga você nem estava. Não é culpa sua — garanti, sério.

Alex fica em silêncio por um tempo antes de assentir.

— Tem razão, é tudo culpa da Grace — diz, sério, ao menear a cabeça positivamente.

Sem conseguir me impedir, encarei-o de canto de olho. Alex riu e eu me permiti rir também.

Relanceei a porta, pensando que o máximo que o Will veria da sala eram os nossos pés para fora da cama. Percebi que ele havia aumentado significantemente o volume da televisão e soube que era por respeito a mim.

Percebendo que caímos em silêncio outra vez, tentei uma forma desesperada de puxar assunto, que saiu péssima:

— E então...

Alex murmurou, tão brilhantemente quanto eu, uma resposta: — Então...

Sorri, mais de nervoso que qualquer coisa, mas ao menos ele ria também.

Meu deus, eu não devia estar tão nervoso. Vou morrer de insuficiência cardíaca aos catorze. Não consigo olhar na cara dele, não consigo dizer nada, e a única coisa que sei fazer com o meu corpo, neste momento, é me remexer no lugar.

Minha cabeça rodopia em um constante: eu não acredito que eu gosto deste traste!

— Me desculpa pelo sermão da minha mãe — consegui pronunciar, finalmente.

Alex pareceu aliviado.

— Que isso, eu adoro sua mãe! — respondeu, sincero. — Minha mãe não me dá muitos sermões, sabe? Ela é muito calma, nunca me põe em castigo, talvez pra equilibrar o quanto meu pai é filho da puta. — Então, sorriu. — Gosto que ela tenha me repreendido — revelou, e eu franzi o cenho. — Quer dizer que se importa. Eu sou quase como um terceiro filho pra ela — provocou, batendo o ombro no meu.

Fiz uma careta involuntária.

Alex, meu irmão! Era só o que me faltava!

Ele pareceu ler meu rosto. Inclinou o rosto para me olhar melhor, fixando os olhos em mim ao se demorar no processo, pela primeira vez desde que pôs os pés aqui em casa.

— O que foi? — perguntou, retoricamente, ao perder um tanto do sorriso. Senti que as orbes negras me engoliriam. — Não consegue me ver como um irmão?

Senti todo o sangue do corpo subir para o meu rosto, ao passo que meu coração acelerou como se quisesse sair do peito e correr porta afora.

Eu sei como você se sente, estranho órgão de bombear sangue.

Limpei a garganta, me remexendo na cama para que eu pudesse disfarçar um pouquinho o quão nervoso eu estava, mas tudo o que eu conseguia pensar era naquele beijo. Não só isto, mas no que se passava pela minha cabeça enquanto eu o beijava, enquanto eu o observava, enquanto eu o admirava a noite toda.

Eu gosto de você.

Eu gosto de você

Eu gosto de você.

Desviei o olhar, querendo calar meus pensamentos. Minha cabeça, meu coração, minhas mãos que tremiam. Eu gostaria de calar meu corpo inteiro, porque todo ele concordava e respondia à minha cabeça.

— Eu... Acho que um irmão já é o suficiente — respondi, apontando para a sala, de onde Will havia enfatizado que a porta deveria estar aberta.

Alex cobriu os dentes com os lábios para não sorrir, mas foi em vão. Desviou o olhar para frente e eu pude respirar de novo, agradecido pela quebra da intensidade.

— Eu não queria mesmo — respondeu, dando de ombros.

Sorri fraco, esperando que a estranheza da situação, os silêncios desconfortáveis, os desvios de olhares e tudo isto me engolisse logo.

— Muita ressaca? — perguntou, apontando para os remédios em cima da mesa junto a jarra de água, vazia.

— Hum, um pouco — admiti, envergonhado. — Vomitei depois que você saiu — contei, querendo bater a cabeça na parede ao perceber que já havia dito demais para quem não se lembra do beijo.

Caleb, seu demente, pensa antes de falar!

Droga, droga, droga.

Alex riu, e parece que aproveitou a deixa para querer me fazer cavar um buraco e me enfiar: — É mesmo? Logo depois ou...?

— Não sei, não lembro direito — respondi, talvez rápido demais para o normal.

Alex pensou por um momento e eu vi que ele não mexeu um músculo, analisando-me, antes de questionar: — Do quê?

Me remexo no lugar, mais uma vez.

— De muita coisa. Quero dizer — emendei, tentando pensar em como aperfeiçoar a mentira —, o fim da festa foi um borrão.

— Mas lembra que eu te trouxe — retrucou, imediatamente, e não foi uma pergunta.

Claro né, eu super esqueci de todo o fim da festa mas me lembrei que vomitei logo depois que você foi embora!

Meu eu interior bateu a cabeça em uma parede fictícia.

Dei de ombros, pensando. Pensando demais.

— No fundo, sei que foi você quem me trouxe, mas... — Cocei os cabelos. — Não... Não lembro de nada específico, só sei.

Faz total sentido, Caleb!

— Hum.

Evitei encará-lo, brincando com minha coberta, mas não demorou antes de prosseguir:

— Você diz que o fim da festa foi um borrão... — começou, e eu retesei o corpo inteiro. Lá vem! — Então não se lembra do beijo?

Fisicamente, senti como se houvesse me engasgado, e tive que esforçar para abrir a boca e para que algo saísse dela sem que fossem balbúcios.

Não! Por que você tem que mencionar isso??

— O quê? Eu não... — Engoli em seco. — Eu nem...

— Quer dizer que esqueceu seu primeiro beijo, é? — provocou, tirando-me do sofrimento. — Nem mesmo os outros pestinhas, bêbados, esqueceram.

Confesso que demorei alguns segundos para ligar os pontos.

Ah, meu primeiro beijo. É mesmo.

— Ah, isto.

Nem alívio consegui sentir, só vergonha, que provavelmente se espalhou fisicamente pelo meu rosto em forma de vemelhidão, apenas para completar minha miséria.

Alex sabe que eu estou mentindo. Ele sabe que eu me lembro. Ele sabe que foi nisto que eu pensei, porque minha reação praticamente me denunciou, e ele sabia antes de perguntar. Ele perguntou justamente para confirmar o que já sabia e eu, feito um pateta, entreguei de bandeja a resposta.

— Sim, “isto” — riu ele, soltando o ar pelo nariz. Aproximou-se alguns centímetros de mim, com um sorriso. — Do que pensou que eu tava falando?

Deixei os ombros caírem.

— Nada, de... Nada.

Não interessa que ele saiba que eu me lembro. Ele devia estar agradecendo por eu fingir que nada aconteceu. Ele pareceu arrependido o suficiente antes de ir embora de madrugada. Eu sei e ele sabe que a melhor coisa que fazemos é agir como se nada houvesse acontecido.

Ao menos, foi o que ele pareceu querer, tanto quanto eu.

— E então? — perguntou ele, baixinho, ao chamar minha atenção. O tom de voz mais sério, desta vez, me fez encará-lo de canto, percebendo que ele não me encarava desta vez. — Sabe agora?

Encarei-o abertamente pela primeira vez desde que sentei ao seu lado, me sentindo um pouco mais confortável ao perceber que as orbes negras não me encaravam.

— Sei o quê? — murmurei, temeroso.

Alex sorri, fraco.

— Uma vez te perguntei, bem aqui — falou, apontando com o indicador para a cama onde estávamos sentados —, se você já se conhecia. Você me disse que não, porque nunca havia beijado ninguém. E agora você beijou. Então eu te pergunto: você sabe agora?

Eu me lembro vividamente daquele dia. Foi nossa primeira conversa de madrugada, sobre o primeiro dos segredos que partilhei com o Alex, o da sua sexualidade.

Soube que pergunta real era a que ele fazia.

Você sabe sua sexualidade?

Você sabe se gosta de garotos ou de garotas ou de ambos ou de nenhum?

Eu já tenho uma ideia a respeito, mas eu preciso guardá-la para mim.

O problema não é admitir que, se eu gosto do Alex, é porque eu gosto de garotos. O problema é admitir que eu sei que gosto de garotos porque eu gosto do Alex.

E eu nem sei o motivo.

— Você já sabia quando eu te perguntei? — contrapus, depois de muito pensar.

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Alex me encarou, hesitando por um momento antes de assentir, desistente.

— Então me dê um tempo também — pedi, baixinho.

Alex sorriu, com carinho.

— Todo o tempo do mundo — diz, como uma promessa.

Algo na forma como diz aquilo fez parecer com que não se referisse apenas ao que falávamos. Engoli em seco, sentindo o estômago gelar uma vez mais.

Optei por desviar o olhar quando este se estendeu, a frase rodopiando na minha cabeça em um espiral. Aliás, tudo rodopia na minha cabeça neste dia. É a ressaca?

— Você não parece bem — apontou, chamando minha atenção novamente. Tem um sorriso de canto ao me observar dos pés à cabeça. — A primeira ressaca te pegou de jeito, foi?

Sorri, dando de ombros.

— É, acho que sim.

— Também recebeu sermão? — questionou, divertido.

Fiz uma careta, mas ri.

— Dois — falei, fazendo um gesto em direção à sala.

Isto trouxe uma ruga entre as sobrancelhas espessas dele, que se aproximou para perguntar mais baixinho: — Ele sabe sobre o mercadinho?

Suspirei. — Sabe.

E assim, pela primeira vez desde que Alex pôs os pés ali, pude sentir as coisas retornando à normalidade. Pela primeira vez, senti como se tudo pudesse voltar ao normal realmente. E que aquele beijo, por mais perfeito que tenha sido, não interferiria na nossa amizade.

É claro, se não falássemos sobre isto.

Depois de um tempo conversando, caímos em um silêncio confortável, mexendo nos nossos celulares. Alex já estava meio atirado na minha cama, o boné fora dos cabelos, que se viam amassados, enquanto eu continuava do mesmo jeito.

Ouvi a movimentação da sala e espiei para ver que Will levava travesseiro e coberta para sala e estava feito uma bola no sofá, o celular e o carregador ao lado junto de um pacote de salgadinho. Eu sabia que quando ele fazia isto queria dizer que ia maratonar alguma coisa, e logo ouvi os grunhidos de zumbis se espalharem pela sala.

Revirei os olhos.

Qual é a graça de zumbis comedores de gente?

Jamais vou entender.

Eu estava prestes a perguntar ao Alex se ele assistia essas séries chatas quando o vi sentar ereto ao meu lado, com os olhos em mim. Engoli a pergunta, vendo a hesitação em seu rosto, antes que ele suspirasse. Tirou algo do bolso da calça e arrastou-o na cama até que parasse ao meu lado.

— Falando em castigo...

Mencionou sobre a última coisa da qual conversamos: as especificações que minha mãe deu sobre meu castigo.

Peguei a identidade que havia visto de relance no dia anterior, morto de curiosidade, antes de ir direto ver o nome estampado nela. Arqueei as sobrancelhas, entendendo o motivo de Alex esconder seu nome a todo custo.

Absalom Alexander Cunningham Lacroix Young, nascido em 7 de agosto de 1998 - verdadeiramente em 2001 —, filho de Katya Lacroix Young e Henry Cunningham.

Absalom?

— Absalom? — perguntei, estranhando muito que este fosse o nome do Alex. Parecia até invenção dele. — Nunca nem ouvi falar.

Alex fez uma careta.

— Horrível, né? — perguntou, com cara de desgosto, mas riu em seguida. — Era o nome do meu avô, pai da minha mãe — explicou. — Eu lembro que eu gostava dele, sabe? Porque ele parecia gostar de mim, ao contrário do meu outro avô. Mas isso é tudo que lembro, porque ele morreu quando eu era bem novo. Eu devia ter uns cinco, seis anos. Não lembro direito.

Nossa.

Todas as pessoas da família das quais ele gostou de verdade morreram?

— Sinto muito — falei, sentido.

Alex sorriu, agradecido.

Nah, eu mal o conhecia. — Descartou, antes de suspirar. — De qualquer forma, a mãe só quis me dar esse nome por causa do vô, porque na história bíblica, ele não representa tanta coisa boa.

Encarei o nome mais uma vez, em sua identidade.

É, não adianta, não faço ideia de quem seja.

— Quem foi?

— Foi filho do rei Davi. Sabe? — questionou, me cutucando. — Davi era aquele cara baixinho que conseguiu matar o gigante Golias com cinco pedras e um estilingue. — Riu. — Acertou uma entre os olhos dele e o matou — explicou, pondo o dedo indicador entre os olhos para demonstrar.

Assenti, meio perdido.

— Me soa familiar.

Alex riu.

— Você é um péssimo evangélico!

— Não sou evangélico — retruquei, no automático.

— Nem eu — retrucou de volta o que eu já sabia. Então, deu de ombros. — Mas conheço bastante da bíblia. Minha mãe conseguia me levar na igreja quando eu era criança.

— Você odiava? — deduzi.

Alex riu.

— Sim, mas não era nada muito profundo, como agora — explicou, ajeitando-se na cama. — Era porque eu ficava entediado e sentia que ia morrer de sono.

Ri, lembrando da única vez em que pisei em uma igreja, que era católica. Era a missa de sete dias da morte da minha avó e eu era muito pequeno, mas lembro que as horas pareceram dias e que eu não aguentava mais ver aquele velho monologar em tom entediante.

Will me repreendeu por fazer sons de carro com a boca, e disse que não se faz “vrum vrum” no meio da igreja com o carrinho fictício em mãos quando todo mundo está enxugando as lágrimas, inclusive nossa mãe. Só que, o que mais marcou, foi que isto apenas a fez sorrir.

— Enfim, Absalom foi um dos filhos do rei Davi. Ele é retratado como um rebelde que quis roubar o trono do pai dele.

Arqueei uma das sobrancelhas.

— Sim, eu sei. Minha mãe soube bem escolher meu nome — riu-se, mas com amargura. — Ele não é bem visto pela bíblia por causa disto e pela morte do irmão, mas ele foi foda. Ele fez justiça com as próprias mãos, e foi condenado por isto.

Pisquei, virando-me em sua direção.

— Como assim?

Alex fez o mesmo, apoiado na parede, de frente para mim.

— O meio irmão dele, Amnon, estuprou a irmã deles, a Tamar. Amnon era o herdeiro do trono, e Davi não fez nada a respeito. — Alex arqueou uma das sobrancelhas. — Mas Absalom fez. Levou sua irmã para sua casa e cuidou dela, e depois, com ajuda de servos, ele assassinou o Amnon.

Pisquei algumas vezes, digerindo a história.

— Ele é mal visto por haver matado um estuprador? — perguntei, enfim, franzindo o cenho.

Afinal, ele acabou de contar que o tal do rei Davi havia matado alguém, um gigante que provavelmente causava horrores também. Qual a diferença?

Alex assentiu.

— É claro. Matar é errado — debochou, apoiando-se na cama. — Ainda mais quando é seu próprio irmão. E depois ele também tenta roubar o trono do pai, o que gera uma guerra entre eles, e no fim, apesar de Davi não haver matado o filho, seus servos o fizeram.

Assenti, ponderando.

— Soa como muitas das histórias da bíblia.

— Sim.

— Então o nome não é tão ruim, se você não o vê da mesma forma que os outros. — Mas bastou uma expressão torcida do Alex para eu perceber que não era bem assim. — Não?

Alex franziu o cenho, estalando a língua.

— Claro que é — murmurou, baixinho, melancólico. — Absalom foi uma história trágica. Ele é como todas as outras histórias trágicas. Ele fez alguma diferença, mesmo que distorcida, e foi condenado por isto. Enquanto empoderados, contemplados e idolatrados, até os dias de hoje, são aqueles que ficam de braços cruzados enquanto coisas terríveis acontecem à sua frente, por bem da moral e dos bons costumes — comentou, como se pensasse muito sobre isto. — São aqueles que interferiram pouco ou nem um pouco em todas as coisas terríveis que marcam a história da humanidade. É assim que o mundo funciona, até hoje. Os que nada fazem são protegidos, colocados em um pedestal, e quando morrem, irão direto para o céu. Os que se dignam a fazer alguma diferença, acabam mortos e esquecidos, e os que a sociedade não permite que caiam no esquecimento, têm sua imagem distorcida pelos demais.

Pisquei algumas vezes, me afastando um pouco dele de forma instintiva. O peso das palavras podia muito bem haver me socado no estômago.

Franzi o cenho, preocupado.

— Credo, Alex — consegui formular, finalmente.

A áurea ruim que começou com as palavras ficou concentrada na ruga entre suas sobrancelhas, onde havia demonstrado que Golias foi atingido. Minha voz pareceu trazê-lo de volta, porque suspirou e a ruga sumiu.

Deu de ombros, sem importância, quando focou os olhos pretos em mim. A agonia permanecia ali, a ponto de fisicamente me incomodar, quando ele finalizou: — Eu não quero terminar como aquele Absalom, Caleb — diz, com certa agonia. — Eu não quero ser uma história trágica. Eu não quero me esforçar a vida toda pra transformar a minha existência deturpada em algo que possa fazer diferença, apenas pra ser morto pelas mãos de alguém que devia me amar.

Engoli em seco, negando com a cabeça.

— Não diga isso — pedi, atento a apenas uma parte do que Alex disssera, que se destacou dentre todo o demais. — Alex, não existe nada de deturpado sobre você — garanti, buscando pelos seus olhos para implorar que ele acreditasse.

Alex piscou, desviando o olhar. Soltou o ar pelo nariz, balançando a cabeça com um sorriso amargo.

— Você nem imagina, Caleb — sussurrou, ainda sorrindo de maneira sinistra. — Você nem imagina.

— Não imagino porque não é verdade — retruquei, mas ele apenas sorriu, quase como se tivesse pena do meu conhecimento limitado.

Ora, era a cabeça dele que era limitada!

Como o gosto amargo permaneceu, tentei arrancar ao menos um sorriso dele. — Alex — chamei, sorrindo —, seu pai não vai te matar.

Ele até sorri, mas por pouco tempo.

— Existem vários tipos de morte, Caleb.

Antes que pensasse muito, puxei a mão dele e segurei com ambas as minhas. Assenti, considerando o que ele dizia, mas procurando uma forma de que ele considerasse o que eu diria.

— Tudo bem. Mas você não vai acabar como aquele cara. Sabe por quê? — Alex ergue os olhos para mim, atento. — Porque não importa qual seja o seu primeiro nome, você é o Alex — falei, porque era verdade. — Você nunca será “Absalom” para nós, não importa o que diga nessa identidade. Você sempre será o Alex pra todos, e foi você quem fez a sua própria imagem, não o seu nome... — Pensei um pouco, atrapalhado. — Não o seu nome, nem a sua origem, nem a sua família, nem um cara que a gente nem sabe se existiu mesmo. Só você pode construir quem você é. Ninguém mais.

Alex me encarou por tempo demasiado antes de suspirar e sorrir. Baixou os olhos para a sua mão entre as minhas e seu sorriso aumentou até que os olhos se tornassem pequeninos. Recuperei apenas uma das mãos, já que ele aproveitou a deixa para enlaçar os dedos nos meus. Apoiou o rosto na base da janela, me encarando com carinho.

— Promete não contar? — perguntou, murmurado, referindo-se ao nome que odiava.

Retribuí seu olhar, suspirando antes de apoiar meu rosto na parede também.

— Alguma vez contei?

Alex negou, satisfeito, sem nunca perder o sorriso.

Não sei quanto tempo ficamos assim, nos encarando, com os dedos entrelaçados enquanto eu fazia o possível para ignorar tudo o que sentia.

Não é fácil.

É como quando você é criança e tenta fingir não estar com medo do filme de terror que você tanto insistiu para assistir e que o fato de não querer dormir sozinho tem tudo a ver com os mosquitos que te incomodam no seu quarto e não com o possível monstro debaixo da cama.

Quiçá, talvez, fingir que não gosto do Alex tenha sido o pior dos castigos do mundo.