Made of Stone

XX. De todos os beijos do mundo - Pt. II


Na arte da pura ironia, eu só chamei a atenção do Alex novamente na hora que percorríamos o mesmo gramado de praticamente seis horas atrás, desta vez, para ir embora.

O táxi já nos esperava na frente, e eu tive uma dificuldade ainda maior de mover-me quando se tratou de caminhar muito em linha reta. Não sei se a dificuldade se aprofundou mais na parte de “caminhar muito” ou na parte do “em linha reta”.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Caleb?

Pisquei, girando o rosto na direção do Alex e me segurando na minha coisa que alcancei quando o fiz: em Mason.

Alex aproximou o rosto do meu com uma careta tão profunda que eu tive que me segurar para não rir. — Meu deus, Caleb, você tá bêbado também? — perguntou, tão chocado que eu soltei um riso pelo nariz.

— Não.

Por incrível que pareça, ele ainda ponderou se acreditava ou não em mim, estalando a língua ao optar pela segunda opção.

— E eu aqui pensando que você era o único sóbrio do rolê — resmungou ele, para si mesmo. — Por que ninguém me avisou? — Rabugento, dirigiu a fala para os outros quatro bêbados, que apenas ergueram os braços, negando saber de algo. Alex bufou, me olhando novamente. — Vou buscar uma garrafa d’água pra você, fiquem aqui.

Grace começou a rir, antes de se aproximar e pegar meu rosto com uma das mãos. Os olhos castanhos percorreram cada detalhe do meu rosto, minuciosa.

— Me ensina a ser plena assim, Caleb — pediu ela, rindo em seguida. — Primeiro, com a maconha. Agora, com o álcool!

Afastei sua mão, com uma careta.

— Caleb tem essa pokerface 24 horas por dia, não importa se tá bêbado ou não — ofendeu-me Ian, brincando.

— Não tô bêbado — garanti, firme, o que causou mais gargalhadas.

— Você foi o que mais bebeu! — acusou Maze, estalando a língua.

Eu daria um peteleco na sua cabeleira loira, mas então percebi que eu ainda estava apoiado no braço dele. Soltei, percebendo que era aquele apoio que havia firmado meu equilíbrio, voltando a apoiar-me nele, discretamente assim que o fiz.

O status de bêbado não seria tão ruim assim, porque eu poderia culpar todo e qualquer pensamento, sentimento e sensação estranhos no álcool. Se estou mesmo bêbado, isto explicaria muita coisa. Muita coisa para a qual eu gostaria de encontrar uma explicação alternativa.

— Toma, bebe essa água — ordenou Alex, quando retornou, ao entregar-me uma garrafinha. — Bebe muito dessa água, Caleb. Se sua mãe percebe que você tá bêbado, estamos ferrados!

— Eu não estou...

— Tá mais do que parece — retrucou ele, me levando para o táxi.

Mason e Grace eram os mais miúdos de nós seis, então eles foram no colo, respectivamente, do Alex e do Ian. Reclamaram o caminho inteiro, enquanto eu sentava na frente e Cristina atrás de mim. Eu nem consegui prestar atenção na conversa deles, porque só conseguia pensar no líquido do meu estômago chacoalhando com o carro.

Isto não é nada bom.

Eu fui o terceiro, por ordem do caminho, a ser deixado em casa. Como das duas vezes anteriores, o taxista estacionou o carro na esquina, para não chamar atenção, enquanto Alex descia comigo para me levar até em casa.

À esta altura do campeonato, eu já havia aceitado que meu equilíbrio realmente não estava dos melhores, e que não havia outra maneira de chegar em casa, se não apoiado com o corpo no Alex. Obtive um risinho de sua parte, como se me ver naquele estado fosse mesmo divertido.

Pé por pé, adentramos no portão de casa, fazendo-o ranger um pouco, o que me fez rir da expressão que o Alex fez quando isto aconteceu. Ele tapou minha boca com a mão, rindo também, antes de me arrastar até janela entreaberta do meu quarto para entrarmos.

Vantagens de ter uma casa de pobre só com térreo.

Caímos na minha cama, já que ela ficava grudada na parede da janela, o que me fez rir muito, mas quando vi que Alex ria também, percebi que era de mim.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O céu lá fora já dava indícios de amanhecer, a escuridão dele já se esvaíra por completo, dando espaço para um azulado que clareava mais a cada minuto. Dentro do meu quarto, entretanto, que ficou com a luz apagada para que não chamássemos atenção da mãe ou do Will, estava mais escuro.

Do jeito esparramado que caí na cama, permaneci, sentindo que se fechasse os olhos por um instante, só abriria vinte e quatro horas depois. Ri com o pensamento.

Shh — pediu, tapando minha boca com sua mão pela vigésima vez. Levantou-se, mantendo-a ali. — Vem, se ajeita. Vai ficar com dor nas costas depois — reclamou, me puxando para sentar e, em seguida, para levantar.

Obedeci, com certa dificuldade, embora Alex me segurasse pelo braço.

Nossa, eu estou mesmo bê...

Prendi a respiração, perdi o sorriso e a linha de pensamento quando Alex fungou meu pescoço.

Fungou. Meu. Pescoço.

Alarguei os olhos, em choque. Estarrecido, apenas pisquei ao passo que, feito um cão, ele farejava com rapidez tanto meu pescoço quanto minha camisa, a qual puxou com os dedos para levá-la ao nariz.

Alex fez uma careta.

— Como imaginei — resmungou, dando as costas e abrindo meu guarda-roupa, tateando-o no escuro, alheio ao fato de que eu estava morrendo de ataque cardíaco. — Tá cheirando a álcool e abacaxi — concluiu, referindo-se a um dos drinks que misturei em algum momento com a cerveja.

Subitamente, todos os pensamentos acerca do Alex que me incomodaram a noite inteira retornaram como um tapa na cara. O chão debaixo dos meus pés parecia haver sumido, e junto dele minha resistência à verdade.

Porque é verdade, não é mesmo?

Eu sinto algo por ele. Algo que é o total contrário do que representa a palavra “preconceito”, algo que combate esta palavra todos os dias, algo que mantém as pessoas unidas, ao invés de desuni-las.

Porque era ele, me respondi. Era ele quem eu queria beijar de verdade.

Eu queria que ele me beijasse no lugar de qualquer garota, no lugar de qualquer garoto, no lugar de qualquer outra pessoa. Eu queria tanto que era nele em quem eu pensava quando trocava saliva com outro alguém.

— Venha — chamou, me tirando no transe.

É dele que eu...

Alex puxou minha caminha e passou-a pela minha cabeça em dois segundos, com uma agilidade que levou um frio à minha barriga desnuda e um arrepio me subiu à coluna. Abri a boca para dizer alguma coisa que não havia pensado direito, mas o único que saiu foi um arquejo quando ele puxou o zíper da minha calça para baixo. Como reflexo, segurei sua mão com ambas as minhas, como se minha vida dependesse disto.

Alex parou, me encarando pela primeira vez desde que entrou na missão de cuidar do bêbado que sou, com a expressão surpresa.

Então, ele a relaxou com divertimento, ao passo que eu nem piscava.

— Tá com vergonha? — perguntou, o óbvio. — Eu nem tô vendo nada nessa escuridão — defendeu. — Só vou vestir um pijama em você.

— M-mas eu...

Shh — repetiu, antes de puxar minha calça para baixo, me deixando seminu e exposto.

Meu corpo inteiro aqueceu como se eu estivesse em combustão, contrariando com as pernas que tremiam feito gelatina como se eu tivesse no Alasca.

Me encolhi.

Socorro, não consigo respirar direito.

— Ergue a perna, vamos — pediu, paciente, embora as mãos não fossem tanto, porque já erguia a perna por mim antes de enfiar a calça do pijama nela.

Apressei-me em ajudá-lo, envergonhado até a alma, me perguntando por que eu devia ser tratado feito um inválido se eu mesmo podia fazer tudo aquilo. Mas bastou olhar para o Alex, abaixado aos meus pés, para perceber que o simples movimento de olhar para baixo fazia minha cabeça girar e meu estômago revirar.

Apoiei-me em seu ombro, impedindo que eu caísse, e ele riu mais uma vez.

Em seguida, passou a camisa do pijama pela minha cabeça sem delicadeza alguma, com a mesma agilidade com a qual tirou a anterior.

— Pronto — disse, quase ao mesmo tempo que me desequilibrei e caí para o lado, sentado na cama. — Opa.

Ajudou-me a sentar direito, com os pés no chão, e subiu ao meu lado, sentando por sobre as próprias pernas ao ficar de frente para a janela, enquanto eu encarava o lado contrário dela. Mexeu nos meus cabelos, me encarando com satisfação pelo seu trabalho ali comigo.

Pisquei, confuso com a tontura e o revirar de estômago, sem saber o que era efeito do álcool e o que era efeito do Alex.

— Caleb — chamou minha atenção, diminuindo o sorriso com preocupação, ao acariciar meu rosto com carinho —, você tá bem?

Eu não podia ver os olhos negros com nitidez devido à escuridão do quarto, mas a luz que vinha da janela, em um azulado mais claro de quando chegamos, me permitia ver sua silhueta e seu rosto com clareza. O meio sorriso estava ali, completando-o.

Assenti, por fim, o som do silêncio ensurdecedor do quarto me trazendo para a realidade.

Ele olhou para a janela novamente, inclinando o corpo em direção a ela ao ficar de joelhos na cama, se preparando para sair, antes de voltar a olhar para mim. — Tudo bem se eu te deixar agora? — questionou, provavelmente pensando nos demais, dos quais eu nem lembrava, que esperavam no carro.

Tudo bem se eu te deixar agora?, perguntou, como se aquela pergunta fizesse sentido. Não estaria tudo bem se me deixasse nem agora nem nunca. E, desde que me dei conta de que já estávamos no fim do ano, eu não deixava de pensar que ele se formaria no colégio e iria para longe.

Tudo bem se eu te deixar agora?

Não!

Franzi o cenho, negando.

Fechei a mão em sua camiseta solta, impedindo-o de sair, tornando a negar.

— Não — murmurei, sem pensar. — Não vai.

Não vai agora, não agora, justo agora que as coisas começaram a fazer um pouquinho de sentido em mim!

Alex piscou algumas vezes, me analisando com cautela, parecendo não saber o que dizer. Não soltei sua camisa, e usei dela para puxá-lo mais para perto, fazendo com que ele acabasse sentado novamente.

— Caleb...

Soltei o ar pelo nariz, negando com a cabeça.

— Não — pedi, não querendo ouvir nada.

Seus olhos pareciam aflitos ao escanear meu rosto inteiro, como se tentasse me decifrar. Não fez ou disse qualquer coisa, e eu tampouco. Eu nem saberia. Havia certa agonia em seu olhar, e uma melancolia que eu não conseguia entender o motivo.

Por que sempre tão triste, Alex?

Quando percebi, engolido pelos seus olhos enigmáticos, eles estavam próximos o suficiente para que eu volvesse a sentir aquele mesmo frio na barriga. Senti sua respiração doce por sobre mim, entendendo o que ele queria dizer sobre abacaxi.

Quando nossos narizes se encostaram, meus olhos fecharam como que por um passe de mágica. Meu coração batia tanto que eu podia ouvi-lo dentro de mim, e se aquilo era um infarto, eu não me importava de morrer.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

No fundo, eu estava esperando pela decepção ao senti-lo afastar-se de mim, e ter aquele beijo congelado no tempo, jamais concretizado.

Jamais um engano foi tão lindo.

O leve toque dos seus lábios nos meus me fez querer chorar, trazendo à tona um sentimento que eu sequer podia entender. Um calor no peito, uma dormência no corpo e a sensação de que tudo ficaria bem, a despeito de todo o caos que serpenteia este "tudo".

Tive que abrir os olhos para me certificar de que era verdade. Alex também abria os seus, ao passo que se afastava poucos milímetros com se para se certificar de que eu não ia morrer do coração. Ou talvez fosse eu quem quisesse se certificar disto, não importa.

Senti a respiração pesar ainda mais ao observar aquela seriedade deslumbrante, os olhos tremeluzindo ao me observar e a boca entreaberta, deixando escapar uma respiração trêmula. Uma eternidade pareceu passar-se enquanto eu enxergava a mesma hesitação que eu sentia em aproximar-me novamente refletida em seu olhar. Até que, enfim, ela desvanecesse.

Nossos lábios se encontraram novamente, e eu joguei para o fundo da consciência a noção chocada de que aquilo estava acontecendo de verdade.

Apressado, friccionei ainda mais nossos lábios em um selinho demorado, sentindo-o corresponder. Alex colocou a mão em meu peito e deslizou-a um pouco para baixo, para a minha barriga, causando um arrepio muito bem-vindo na minha nuca, antes de fechar-se na minha blusa de forma semelhante a que eu o segurava.

Seus lábios moveram-se sobre os meus, atrevendo-se a deslizarem em um beijo praticamente casto, mas que parecia corromper toda e cada célula do meu corpo a cada milésimo de segundo que se estendia.

Eu me sentia cada vez mais dele e menos meu.

O beijo foi calmo, cauteloso, paciente. Havia uma ternura e um carinho desmedível que tocavam no mais profundo do meu ser, me fazendo sentir completo. Podia ter durado uma eternidade, e ainda assim não seria o suficiente.

Só que o Alex não permitiu que o contato mágico se estendesse tanto.

Tudo tão lento, mas que passou tão rápido.

Abri os olhos e senti, mais do que vi, sua testa colar na minha.

— Caleb — sussurrou, a voz trêmula, ao deslizar o rosto até que sua bochecha direita estivesse na minha. Sua respiração estava nervosa, e eu ainda podia sentir sua mão fechada em punho na minha camisa. — Acho melhor eu ir agora.

Afastei meu rosto para poder enxergá-lo direito, mas não era necessário vê-lo para perceber que sua última fala foi um pedido. Um pedido agoniado para que eu o deixasse ir para longe de mim. Um pedido doloroso que eu ouviria mais e mais vezes ao longo dos anos que viriam, e que eu acabaria acatando sem nunca, jamais querer acatar.

Assenti, cabisbaixo, sob os olhos pretos, sentindo que eles me diziam que aquilo fora um erro e que jamais se repetiria novamente.

Com isto em mente, aproximei-me o suficiente para roçar o nariz em seu rosto, como uma despedida daquele universo paralelo do qual tínhamos que sair.

— Tá bom — murmurei, assentindo mais uma vez.

Senti-o movimentar-se na cama, e foquei os olhos nele quando se apoiava nesta para subir em direção à janela, assim que eu o soltei.

Alex hesitou, no entanto, virando o rosto para mim. Não pude ler sua expressão, mas vislumbrei o indício de um sorriso em seus lábios antes que eles os trouxesse, como um impulso, para deixar um beijo em meu nariz.

— Tá bom — repetiu, deixando um último carinho em meus cabelos antes de sair.

Apoiou-se na janela e pulou para fora, empurrando-a para o lugar de modo que ela não ficasse escancarada. Ouvi os passos na grama quando se afastou e o mínimo barulho no portão quando este rangeu, e mais nada.

E então, tudo o que eu pude ouvir foi minha respiração calma. Meus lábios ainda podiam sentir os dele, como se houvessem sido marcados da forma mais doce do mundo.

Não sei quanto tempo fiquei parado, da mesma forma como ele me deixou, me ponderando se aquilo havia mesmo acontecido fora da minha imaginação. Talvez o álcool tenha um efeito ainda mais danificador no cérebro adolescente de catorze anos.

Será que o meu primeiro beijo com uma garota foi tão sem sal que eu me propus a imaginar um segundo com o Alex para que eu sentisse algo?

Que idiota, me dei por conta.

Mesmo que eu houvesse tido que imaginar um beijo com o Alex para sentir algo, não muda o fato de que eu precisei imaginar um beijo com o Alex para sentir algo. Não importa quantas vezes eu me faça a mesma pergunta, a resposta não vai vir diferente.

Eu gosto - gosto! - do Alex, exatamente deste jeito.

Arregalei os olhos, subitamente consciente do silêncio ensurdecedor do ambiente em guerra com o barulho retumbante da minha cabeça. Senti minha respiração acelerar, agitando o meu estômago, a consciência batendo em mim - em especial, na minha cabeça, que latejava.

A consciência da cama abaixo de mim, da janela ao lado, da porta fechada, da minha família do lado de lá, e de toda a noite que se passou desde que eu pulei por aquela janela e até o momento que eu retornei por ela.

Minha respiração acelerou, ao passo que eu olhava ao redor do quarto vazio e escurecido, e em seguida para a janela entreaberta do meu quarto, de onde vinha uma brisa fria. Senti o corpo tremer e a cabeça girar toda vez que eu a movia, mas nada se comparava ao meu estômago irritado, e a boca que, agora, salivava.

Eu vou vomitar.

Cheguei a pensar em ir, aos tropeços, até o banheiro, mas não deu tempo. Tão logo pus os pés no chão, mil vezes pior que da primeira vez, eu coloquei tudo para fora.

Nojento.

Em um looping que não parecia ter fim, ouvi a porta se abrir e a luz ser acesa, maltratando meus olhos. Ergui os olhos e vi o rosto duplicado da minha mãe, preocupada ao se abaixar e me ajudar a sentar na cama.

Ela perguntou algumas vezes o que havia de errado, mas acho que percebeu o que acontecia em questão de segundos. Sua expressão tornou-se irritada, e até mesmo magoada, ao pegar as roupas que eu usei para sair atiradas de qualquer jeito na cadeira e levá-las ao nariz.

Me deixou sozinho, mas logo retornou com uma água e com um remédio para o estômago. Deixou a jarra e o copo na cabeceira da cama, e uma bacia ao lado da cama, e em seguida limpou meu rosto, juntou minhas roupas sujas e limpou o chão, suspirando umas vinte vezes seguidas com frustração.

Por fim, pronunciou as temíveis palavras que rondaram minha cabeça até que eu dormisse:

— Amanhã a gente conversa.

*

Depois de haver acordado várias vezes com a boca seca, e depois de haver tomado duas jarras inteiras de água, me mexendo o menos possível devido a tontura que persistiu, eu finalmente dormi bem pela manhã.

Esperei pela minha mãe, mas quem apareceu foi o Will, com uma comida leve em um prato e um comprimido. Ao contrário dela, ele não parecia preocupado, e sim, divertido. Frisava os lábios para não sorrir tão abertamente, me observando de forma graciosa.

— Sabe, Caleb — começou ele, sentando-se na cadeira e puxando ela para perto da cama —, quando eu tentava imaginá-lo no futuro, eu não conseguia ser muito criativo. Mas agora vejo que nem tinha necessidade, porque você tá ficando igualzinho a mim.

Revirei os olhos, e Will gargalhou, fazendo minha cabeça latejar.

— Sabe que minha primeira ressaca foi com catorze também? — questionou, divertido.

Fiz uma careta, estalando a língua.

— Eu não vou beber tanto como você — retruquei, até ponderando comigo mesmo se algum dia eu viria a pôr uma gota de álcool na boca novamente.

Me dava calafrios só de imaginar, e meu estômago reclamou em resposta.

Will me dirigiu aquele olhar de mãe, quando ela está prestes a dizer: “quando você tiver seus filhos, você vai entender do que eu estou falando”. Já podia até ouvi-lo dizer: “quando você estiver bebendo todo fim de semana com os amigos, vai entender do que eu estou falando”, mas ele foi curto e breve.

— Você que pensa.

Revirei os olhos novamente.

— Por que tá aqui? — perguntei, já desconfiando que a mãe o tivesse mandado.

Will riu mais uma vez. — A mãe me contou o que tava acontecendo, e eu não pude evitar ver com meus próprios olhos — brincou, bagunçando meus cabelos, mas tapeei sua mão. — Ela também queria que eu conversasse com você sobre isso.

Eu sabia!

Will perdeu um pouco do sorriso, dirigindo um olhar cauteloso por sobre mim. — Ela não sabe como falar com você — verbalizou o que ela já tinha me dito algumas vezes. — Você é muito fechado, sabe? Eu concordo com ela. — Desviei o olhar, soltando um muxoxo. — Você sabe que pode conversar com a gente sobre qualquer coisa, né?

Ajeitei-me na cama, puxando uma das almofadas para abraçar.

— Eu sei.

— Então por que não conversa? — retrucou, sagaz.

— O que quer que eu diga? — resmunguei, realmente perdido na conversa.

Não é como se tivéssemos que conversar sobre tudo o que se passa na nossa cabeça, especialmente com a família. Algumas coisas é bom manter para nós mesmos.

Will suspirou, parecendo ponderar por um instante, quando algo pareceu passar pela sua cabeça. Estreitou os olhos, me encarando com cautela.

— Hum — murmurou, me encarando —, você poderia me contar, por exemplo, sobre o Ruggiero Mercado.

Mesmo na minha cabeça tomada de ressaca, aquelas palavrinhas-chave fizeram as engrenagens dela funcionarem como novas, e me toquei na hora do que ele estava falando.

Pudera, eu evitava sequer passar na frente daquela rua toda vez que circulava por lá!

Arregalei os olhos no automático, quase me engasgando. Will, como resposta, fez o mesmo, desacreditado.

— Como...?

— Então era mesmo você! — acusou, chocado. Abri e fechei a boca, mas não tinha nada que eu pudesse dizer. Will deixou a cabeça cair pra trás, ainda com a boca aberta. — Eu não acredito que era você.

Com confusão, fiquei encarando-o, sem saber o fazer.

Como ele sabia sobre aquilo?

Ele voltou os olhos verdes para mim, parecendo ler-me.

— Eu fui lá uns tempos atrás e ele disse que meu irmão e seus amigos haviam roubado dele — pronunciou, a acusação nas palavras. Me encolhi. — Defendi dizendo que ele devia ter se enganado, que devia ter sido alguém parecido com você, já que você tá mais crescido — debochou da última palavra — e jamais faria algo assim.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Estalou a língua.

— Aquilo... — comecei, sem saber por onde começar. — Aquilo foi... — Suspirei. — Aquilo não foi planejado.

Will foi o que revirou os olhos dessa vez, apoiando as costas na cadeira de rodinhas.

— Nossa, isso torna tudo melhor — ironizou, com escárnio. Desviei o olhar para a janela, mas podia sentir os dele em mim. — Mamãe tem razão. O roubo, a maconha, a briga, e agora isto — diz, apontando para o comprimido que trouxe. — Agradeça aos céus que ela nem sabe sobre o mercado, porque você estaria morto e enterrado caso ela soubesse. Melhor — corrigiu, rapidamente, apontando para si —, agradeça a mim.

Apesar da gabação, eu estava mesmo agradecido.

— Obrigado — resmunguei, e ele revirou os olhos.

Aproximou-se mais de mim, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos verdes tornando-se um tanto compreensivos.

— Tudo bem pisar na bola, sabe, ainda mais na sua idade — amenizou —, mas você tem que ter noção de que pisou. Inclusive, acho que a mamãe não pensou nisto, mas eu fico imaginando onde você estava quando se embebedou dessa forma — disse, astuto, e eu engoli em seco — e só consigo imaginar que não foi em um lugar menos proibido do que o fato de se embebedar tendo catorze anos.

Ah, relaxa! Podia ter sido em uma boate onde entrei com identidade falsa, mas foi só em uma casa onde haviam vários adolescentes menores de idade com álcool...

A parte ruim do Will me dando bronca ao invés da nossa mãe é que ele sempre vai entender e saber mais do que ela. Inclusive, porque tinha a minha idade no que parecia ser pouco tempo atrás e não é de uma geração tão diferente. Will sabe exatamente onde cutucar, enquanto a mamãe vai às cegas.

— Eu sei que foi errado — resmunguei, porque sabia mesmo.

Will suspirou. — Saber que é errado é diferente de entender o porquê de ser errado. Mais ainda — continuou, filosofando —, saber que é errado é diferente de não querer fazer errado. Eu bem sei.

Fiquei quieto, não sabendo o que ele queria que eu dissesse em seguida.

Will me observou da cabeça bagunçada aos pés descalços, analítico. Desconfortável, peguei o comprimido da cama e joguei na boca, querendo que a conversa acabasse logo.

— Não vai me contar nada mesmo? — insistiu, enfim, embora houvesse curiosidade em sua voz.

Pisquei algumas vezes, desviando o olhar, ao encher o copo e levá-lo à boca para engolir o comprimido.

Ficou com alguém? — soltou, e eu quase me engasguei.

— Will! — reclamei, assim que engoli o remédio, sentindo todo o sangue do meu corpo subir à cabeça.

Ele riu.

— O quê? — perguntou, se fazendo de desentendido. — Não precisa ficar com vergonha, eu só quero saber mais sobre o meu irmãozinho — provocou, idiota.

— Não estou — retruquei, emburrado. — E não vou falar sobre isso.

Apesar de que eu estava mesmo aliviado por haver beijado pela primeira vez na vida, sendo que eu era o único atrasado do rolê. Mason até tem uma semi namorada, pelo amor de deus!

— Ah, qual é? Não faz tanto tempo assim que você vinha babar sobre a Laurel — acusou, o que me fez sorrir.

— A garota dos cabelos vermelhos.

De fato, eu era mesmo encantado por ela, mas embora não parecesse tanto tempo atrás para o Will, para mim parecia há uma eternidade.

Porque faz uma eternidade que eu conheço o Alex.

Pisquei, desnorteado.

Alex.

De repente, uma série de imagens soltas me vieram à cabeça, como as de um sonho que demorei a recordar. Como quando você se recorda de uma parte do sonho que teve à noite no meio de sua rotina, e pensa: “ah, é mesmo”, quando as imagens se completam.

Alex me trazendo para casa, caindo junto de mim na cama, e rindo do meu riso. Sua mão por sobre minha boca, pedindo silêncio, e suas mãos por sobre mim. Me despindo, me vestindo, me cheirando, me beijando. Seus lábios por sobre os meus.

Não.

Aquilo não pode ter acontecido mesmo.

Mas a festa aconteceu, e o álcool aconteceu, porque esta conversa com o Will está acontecendo.

Recordei-me dos olhos negros por sobre mim após eu haver beijado a garota, e do calafrio que senti ao deparar-me com ele. Aquilo havia acontecido também, no meio da festa.

Encarei a roupa suja jogada no cesto ao lado da porta, atrás do Will, aquela que usei na madrugada, e a imagem de Alex enfiando o nariz em minha camisa me atingiu direto na barriga, que formigou ao recordar-se também.

O som do zíper havia arrepiado até minha alma.

Aquilo havia mesmo acontecido.

E o seu cheiro de álcool, de cigarro mascarado com perfume e de suor.

E o seu gosto doce junto do meu.

E a sensação de haver perdido a mim mesmo.

E de haver amado me perder.

— Caleb?

— Foi só um sonho — verbalizei, na defensiva, tentando me convencer.

Will acabou soltando um som pelo nariz, o que chamou minha atenção, e finalmente foquei os olhos nele, dando-me conta da saia justa na qual me meti. Os olhos verdes me encaravam com tamanha dimensão que apenas fizeram meu rosto, já quente pela memória, esquentar ainda mais.

Minha respiração estava falha só de ver as cenas se desenrolarem como um expectador na minha mente, e eu tinha certeza que eu estava da cor de um tomate.

Will não podia saber o que estava se passando na minha mente - e vamos agradecer à privacidade da nossa cabeça por isto! -, mas decidiu provocar assim mesmo. Aproximou o rosto de mim, com um meio sorriso. — Foi mesmo?

Engoli em seco, sentindo as orelhas arderem pela vergonha, ainda mais se tratando do que devia estar passando pela cabeça dele. Franzi o cenho, pegando minha almofada e atirando na cara idiota do meu irmão. Ele gargalhou, levantando-se com ela em mãos.

— Não se preocupa, Caleb. Isto — disse, referindo-se à minha lembrança, ao pausar o riso — eu realmente não quero saber.

Argh, que embaraçoso!

— Cala a boca, Will — resmunguei, olhando para o outro lado do quarto.

— É, pois é — disse ele, dirigindo-se para a porta. Finalmente! — Espero que você se lembre disso quando quiser se embebedar dessa forma de novo.

Soltei um resmungo, esfregando o rosto.

Will, no entanto, parou na porta antes de virar-se para mim.

— Ah, quase esqueci! — disse, me dirigindo um olhar maquiavélico, parecendo desfrutar de haver deixado esta parte por último. — Enquanto você se arrepende das besteiras que fez sob o efeito do álcool, já vai pensando se elas valeram um mês da sua vida.

Franzi o cenho, dirigindo-lhe um olhar interrogativo.

— Você tem sido um mau menino, Caleb — lamuriou ele, falso, parecendo amar cada segundo —, e maus meninos ficam de castigo por um mês. Mamãe mandou um beijo — acrescentou, significativo.

Em seguida, ele saiu, fechando a porta atrás de si.

Eu a encarei, de boca aberta, pelo que pareceram anos.

Nunca, em toda a minha vida, eu fiquei de castigo.

Escorreguei pela cama até estar deitado, encarando o teto com melancolia. Fechei os olhos, respirando fundo, antes de tatear a cama até o meu celular, que continha mais notificações de mensagens do que achei humanamente possível.

Mensagens no nosso grupo, falando sobre a noite anterior, nas conversas privadas com todos, que vieram se certificar de que eu estava vivo, notificações de fotos em que fui marcado nas redes sociais.

Mas nada, absolutamente nada, vinha do Alex.

Engoli em seco.

Assim fica difícil fingir que nada aconteceu.

Abri a foto em que tiramos antes que Alex e Ian saíssem, no pátio do Jake. Estávamos todos abraçados, em ordem: Mason, Ian, Alex, eu e Grace. Alex tinha os dois braços ocupados, um envolvendo o primo e outro envolvendo a mim. Tinha um sorrisão no rosto, porque ria de algo que Bruno dizia, antes que tirasse a foto.

Dei um zoom em nós dois, me sentindo minúsculo debaixo de seu abraço, percebendo que eu estava olhando para o seu sorriso bem na hora que a foto foi tirada.

Suspirei, vendo que apesar do sumiço, ele havia curtido a foto publicada por Bruno.

No fundo, a verdade sobre eu negar com todas as minhas forças aquele beijo - porque aconteceu - era porque eu não queria encarar o motivo por detrás dele.

Se eu admitisse que aquilo havia mesmo acontecido, eu teria que admitir que eu queria que acontecesse. Se aquilo não havia sido um sonho, então nada do que eu senti e do que eu pensei haviam sido parte desse sonho.

Tudo o que pensei, tudo o que percebi, tudo o que senti.

Era tudo real.

Droga, Alex.

De todos os beijos do mundo, por que logo o seu?